terça-feira, 29 de julho de 2014

LIVRO HISTÓRIA DOS HEBREUS - GUERRA DOS JUDEUS CONTRA OS ROMANOS


II Parte Guerra dos Judeus Contra os Romanos Advertência Se a História dos Judeus mostrou-nos que josefo merece ser colocado entre os melhores escritores de todos os tempos, a sua obra que trata da guerra contra os romanos, a qual compreende a primeira e a maior parte deste segundo volume, não permite duvidar de que ele superou a si mesmo. Várias razões contribuíram para tornar este livro uma obra-prima: a magnitude do assunto, os sentimentos que produzia em seu coração a ruína de sua pátria e a parte que ele tivera nos principais acontecimentos dessa sangrenta guerra. Que outro assunto poderia igualar-se ao deste grande assédio que mostrou a toda a terra como uma única cidade teria sido obstáculo à glória dos romanos, se Deus, por castigo de seus crimes, não a tivesse fulminado com os raios de sua cólera? Que sentimentos de dor podem ser mais vivos que os de um judeu e de um sacerdote ao ver em subverterem-se as leis do seu país, das quais nenhum outro jamais foi tão zeloso e reduzir-se a cinzas o soberbo Templo, objeto de sua devoção e de seu zelo? Que parte maior pode ter um historiador em sua obra, do que ser obrigado a mencionar as principais ações de sua vida e a trabalhar para sua própria glória, revelando, sem bajulação, a dos vencedores e ao mesmo tempo referindo-se ao que devia à generosidade desses dois admiráveis príncipes, Vespasiano e Tito, aos quais cabe a honra de ter terminado essa grande guerra? Mas, como encontramos nesta história tantas coisas notáveis, creio que os que a lerem descobrirão com prazer, num resumo mais exato — como o de Josefo, em seu prefácio — o que ela contém para passar, em seguida, da idéia geral aos particulares que dela dependem. A obra está dividida em sete livros. O primeiro e o segundo, até o capítulo 28, são um resumo da história dos judeus, referida no primeiro volume, já publicado, desde Antíoco Epifânio, rei da Síria, que depois de ter saqueado o Templo, quis abolir a religião, até Floro, governador da Judéia, cuja avareza e crueldade foram a primeira causa dessa guerra, que eles sustentaram contra os romanos. Esse resumo é tão agradável que Josefo aparentemente quis mostrar que podia, como excelente pintor, representar com tanta arte os mesmo objetos, em maneiras diferentes, que não sabemos à qual dar o prêmio. No primeiro volume, essas histórias foram interrompidas pela narração de coisas acontecidas ao mesmo tempo; aqui, são escritas na seqüência e dão aos leitores a satisfação de ver num único quadro, o que havia visto em vários, separadamente. Depois do capítulo 28 do segundo livro e até o fim, Josefo narra o que se passou depois da perturbação suscitada por Floro, até a derrota do exército romano, comandado por Céstio Galo, governador da Síria. No começo do terceiro livro, Josefo mostra o espanto que causou ao imperador Nero esse infeliz resultado de suas armas, o que poderia ter suscitado a revolta de todo o Oriente e diz que tendo lançado os olhos para todos os lados, só encontrou Vespasiano, que poderia sustentar o peso de uma guerra tão importante e lhe deu, então, a chefia e o comando. Em seguida, aborda de que modo esse grande general, acompanhado por Tito, seu filho, entrou na Galiléia, de que Josefo, autor desta história, era governador e o sitiou em jotapate, onde depois da maior resistência que se poderia imaginar, ele foi aprisionado e levado a Vespasiano, e como Tito tomou várias outras praças e realizou feitos de incrível valor. Vemos no quarto livro: Vespasiano conquistar o restante da Galiléia; a divisão dos judeus em Jerusalém; os facciosos, que tomavam o nome de zelotes, tornarem-se senhores do Templo, sob o comando de João de Giscala; Anano, sumo sacerdote, levar o povo a sitiá-los; os idumeus virem em seu auxílio, praticarem crueldades incríveis e depois se retirarem; Vespasiano tomar diversas praças da Judéia, bloquear Jerusalém com a resolução de sitiá-la e desistir desse intento por causa da morte dos imperadores Nero, Galba e Oton; Simão, filho de Joras, outro chefe dos facciosos, ser recebido pelo povo em Jerusalém; Vitélio, que se havia apoderado do império, depois da morte de Oton, tornar-se odioso e desprezível por sua crueldade e por sua devassidão; o exército comandado por Vespasiano declará-lo imperador; e, por fim, Vitélio ser assassinado em Roma, depois da derrota de suas tropas, por Antônio Primo, que tinha abraçado o partido de Vespasiano. O quinto livro aborda a formação em Jerusalém de uma terceira facção, da qual Eleazar foi o chefe, e depois, como essas três facções se reduziram a duas, como era antes, e de que modo elas se faziam guerra; aí vemos também a descrição de Jerusalém, das torres de Hípicos, de Fazael e de Mariana, da fortaleza Antônia, do Templo, do sumo sacerdote e de várias outras coisas notáveis: o cerco dessa grande cidade, executado por Tito; as incríveis amarguras e os atos de valor extraordinários que se praticaram de ambos os lados; a extrema carestia que afligiu a cidade e as espantosas crueldades dos facciosos. O sexto livro apresenta a horrível miséria a que Jerusalém se viu reduzida: a continuação do assédio com o mesmo ardor que antes; e de que maneira, depois de um grande número de combates, Tito, tendo forçado o primeiro e o segundo muros da cidade, tomou e destruiu a fortaleza Antônia e atacou o Templo, que foi incendiado, não obstante o que esse príncipe tentou fazer para impedi-lo e como, finalmente, se apoderou de todo o restante. No sétimo e último destes livros vemos como Tito destruiu Jerusalém, exceto as torres de Hípicos, de Fazael e de Mariana; a maneira como louvou e recompensou seu exército; os espetáculos que deu ao povo da Síria, as horríveis perseguições feitas aos judeus em várias cidades; a incrível alegria com a qual o imperador Vespasiano e Tito, que tinha sido declarado César, foram recebidos em Roma e seu soberbo triunfo; a tomada dos castelos de Herodiom, de Macherom e de Massada, que eram os únicos lugares que os judeus ainda ocupavam na Judéia, e como os que defendiam esta última mataram-se todos com suas mulheres e filhos. Eis, em geral, o que contém a História da Guerra dos judeus contra os Romanos: não há ornamentos com que esse grande personagem não a tenha enriquecido. Ele não perdeu nenhuma ocasião de embelezá-la, com descrições admiráveis de províncias, de lagos, de rios, de fontes, de montanhas, de diversas raridades e de edifícios, cuja magnificência passaria por uma fábula, se o que ele diz pudesse ser posto em dúvida. Mas vemos que ninguém houve que ousasse contradizê-lo, embora a excelência de sua história tivesse suscitado contra ele tanta inveja. Podemos dizer com verdade que, quer ele fale da disciplina dos Romanos na guerra, quer descreva os combates, as tempestades, os naufrágios, a carestia ou o triunfo, tudo aí é de tal modo perfeito, que ele se torna senhor da atenção de todos os que o lêem. Eu não tenho receio de acrescentar, que nenhum outro, sem excetuarmos Tácito, lhe foi superior nos discursos, tão nobres eles são, fortes, persuasivos, sempre presos ao assunto e proporcionados às pessoas que falam e às quais se fala. Podemos louvar também o juízo e a boa fé desse verdadeiro historiador, pelo equilíbrio que ele conserva entre os louvores que os romanos merecem por terem terminado tão grande guerra e os que são devidos aos judeus, por tê-la sustentado, embora vencidos, com indômita coragem, sem que seu reconhecimento pelos favores que devia a Vespasiano e a Tito, nem seu amor pela pátria, o tenham feito pender contra a justiça mais do lado de uns do que de outros. Mas, o que eu encontro nele de mais estimável é que ele não deixa, em todos os fatos, de louvar a virtude, de estigmatizar o vício e de fazer reflexões excelentes sobre o adorável proceder de Deus e sobre o temor que devemos ter de seus juízos rigorosos. Podemos afirmar com sinceridade que jamais se viu um exemplo maior que o da ruína dessa ingrata nação, dessa soberana cidade e desse augusto Templo, pois que ainda que os romanos fossem os senhores do mundo e esse cerco tenha sido obra de um dos maiores príncipes de que eles possam vangloriar-se em ter tido por imperador, o poder desse povo vitorioso sobre todos os outros e o heróico valor de Tito lhe teriam, em vão, formado o desígnio, se Deus não os tivesse escolhido para executores da justiça. O sangue de seu filho derramado pelo mais horrível de todos os crimes foi a única causa verdadeira da ruína dessa infeliz cidade. Foi a mão de Deus que pesou sobre o infeliz povo; que, apesar da terrível guerra que o acossava de fora, era ainda internamente muito mais espantosa, pela crueldade daqueles judeus desnaturados, mais semelhantes a demônios do que a homens. Eles fizeram perecer pelas armas e pela horrível carestia de que eles eram os autores um milhão e cem mil pessoas, e reduziram o restante a não poder esperar a salvação a não ser dos próprios inimigos, lançando-se nos braços dos romanos. Efeitos tão prodigiosos da vingança pela morte de Jesus poderiam passar por incríveis aos que não têm a felicidade de ser iluminados pela luz do evangelho, se não fossem referidos por um homem, dessa mesma nação, tão ilustre como Josefo, pelo seu nascimento, pela sua condição de sacerdote e pela sua virtude. Claro, parece-me, que Deus querendo se servir do seu testamento para autorizar verdades tão importantes, conservou-o por um milagre, quando, depois da tomada de jotapate, dos quarenta que se haviam retirado com ele numa caverna, foi lançada a sorte, tantas vezes, para se saber quais seriam os que deveriam ser mortos primeiros. Ele e um outro, somente, ficaram com vida. Isso mostra que devemos dar a esse historiador uma posição bem diferente do que a todos os demais, pois, enquanto eles abordam acontecimentos humanos, embora dependentes das ordens da divina providência, parece que Deus lançou seus olhos sobre ele para fazê-lo servir ao maior dos seus desígnios. Não devemos considerar somente a ruína dos judeus como o mais espantoso efeito da justiça de Deus e a imagem mais terrível da vingança que ele exercerá no último dia, contra os réprobos. Devemos também considerá-la como uma das provas mais brilhantes que lhe aprouve dar aos homens acerca da divindade de seu filho, pois tão prodigioso acontecimento tinha sido predito por JESUS CRISTO, em termos precisos e claros. Ele tinha dito aos seus discípulos, mostran-do-lhes o Templo de Jerusalém, que todos aqueles grandes edifícios seriam de tal modo destruídos que não ficaria pedra sobre pedra. Ele lhes havia dito que quando vissem as armas rodear Jerusalém deviam saber que sua desolação estaria próxima (Mc 1 3.2; Lc 19.44; 21.20; 21.23,24). Ele tinha notado em particular as espantosas circunstâncias dessa desolação: "Ai", disse Ele, "das mulheres que estiverem grávidas ou tiverem crianças de peito, naqueles dias, pois esse país será oprimido por males e a cólera do céu cairá sobre esse povo. Eles passarão pelo fio da espada; serão levados escravos para todas as nações e Jerusalém será calcada aos pés pelos gentios". Por fim, Ele tinha declarado que o efeito dessas profecias estava prestes a acontecer; que o tempo se aproxima (Mt 23.33) e mesmo que aqueles que eram do seu tempo poderiam vê-lo. "Eu vos digo, em verdade", disse ele, "que tudo isso virá acontecer sobre essa raça que existe hoje" (Mt 23.36). Todas estas coisas tinham sido preditas por JESUS CRISTO e escritas pelos evangelistas, antes da revolta dos judeus, e quando não havia ainda nenhuma probabilidade de tão estranha mudança. Assim como a profecia é o maior milagre e a maneira mais poderosa com que Deus autoriza a sua doutrina, essa profecia de JESUS CRISTO, à qual nenhuma outra é comparável, pode ser o encerramento e término das provas que deram a conhecer aos homens a sua missão e origem divina, pois nenhuma outra jamais foi tão pontualmente realizada. Jerusalém foi destruída por completo pelo primeiro exército que a sitiou e não ficou o menor vestígio daquele soberbo Templo, admiração do universo e objeto de orgulho dos judeus, e os males que os oprimiram correspondem claramente a essa terrível predição de JESUS CRISTO. Mas, para que tão grande acontecimento pudesse servir também de aviso aos que deviam ainda nascer no correr dos tempos, como aos que dele foram espectadores, era além disso necessário, como eu já disse, que a história fosse escrita por uma testemunha fidedigna. Para isso, era necessário que fosse um judeu e não um cristão, para que dele não se pudesse suspeitar, de ter anexado os fatos às profecias. Era ainda necessário que fosse uma pessoa de alto nível social, a fim de que estivesse a par de tudo. Era necessário que tivesse visto com os próprios olhos tantas coisas prodigiosas que deveria relatar, a fim de que se lhe pudesse dar fé. Por fim, era preciso que fosse um homem capaz de corresponder, pela grandeza de sua eloqüência e de sua inteligência, à magnitude de tal assunto. Todas essas qualidades exigidas para tornar esta história perfeita, em todos os seus particulares, encontram-se em Josefo, o que torna evidente que Deus o escolheu para convencer a todos os entes racionais da verdade desse maravilhoso acontecimento. E certo que não parece que tendo contribuído dessa maneira à divulgação do evangelho, ele tenha aproveitado, nem tenha tomado parte nas graças que se difundiram no seu tempo, com tanta abundância, sobre toda a terra. Mas se nisso temos motivo de lastimar a sua infelicidade, temos também motivo de abençoar a providência de Deus, que fez servir sua cegueira ao nosso bem, pois as coisas que ele escreveu de sua pátria, com relação aos incrédulos são incomparavelmente mais fortes para a consolidação da fé cristã do que se ele tivesse abraçado o cristianismo. Assim, podemos dizer dele, em particular, o que o apóstolo diz de todos os judeus: "Que sua infelicidade enriqueceu o mundo com os tesouros da fé e que sua pouca luz serviu para iluminar todos os povos: Delictum corum divitae sunt mundi et diminutio eorum divitae gentium" (Rm 11.12). A segunda obra de Josefo, contida neste segundo volume, além de sua vida, escrita por ele mesmo, é uma resposta dividida em dois livros, ao que Ápio e outros tinham escrito contra sua história dos judeus, contra a antigüidade de sua descendência, contra a pureza de suas leis e contra o proceder de Moisés. Nada pode ser mais forte do que esta resposta. Josefo prova irrefutavelmente a antigüidade de sua nação, pelos historiadores egípcios, fenícios, caldeus e mesmo pelos gregos. Ele mostra que tudo o que Ápio e esses outros autores alegaram em desabono dos judeus são fábulas ridículas, tal como a pluralidade de seus deuses, e revela de maneira admirável a grandeza dos feitos de Moisés e a santidade das leis que Deus entregou aos judeus por seu intermédio. O martírio dos macabeus vem em seguida. É um trabalho que Erasmo, tão célebre entre os sábios, chama de obra-prima de eloqüência: confesso que, não compreendo como, tendo dela com razão uma opinião tão vantajosa, ele a parafraseou e não a introduziu. Jamais cópia saiu mais diferente do original. Apenas sp reconhecem alauns dos seus traços principais e se eu não me engano, nada pode elevar mais a fama de Josefo, do que sendo ele tão hábil, tendo querido embelezar sua obra, ao contrário, tanto lhe diminuiu a beleza. Mostra também como devemos apreciar Josefo porque não escreve como quase todos os gregos, de maneira muito extensa, mas com um estilo conciso, afirma que só quer dizer o necessário. Muito me admiro de que não se fez até agora nenhuma tradução desse martírio, a partir do grego, quer para o latim, quer para o francês, pelo menos que tenha chegado ao meu conhecimento. Genebrard, em vez de traduzir Josefo, traduziu Erasmo. Eu me limitei fielmente ao original grego, sem seguir em absolutamente, esta paráfrase de Erasmo, o qual inventa nomes que não estão, nem em Josefo, nem na Bíblia, para dá-los à mãe dos macabeus e a seus filhos. Parece que Josefo só relata esse célebre martírio, autorizado pela Escritura Sagrada, para provar a verdade das palavras que escreveu no princípio, cujo fim é mostrar que a razão é a senhora das paixões; ele lhe atribui um poder sobre elas, de que haveria motivo de se admirar, se fosse estranho que um judeu ignorasse que esse poder só pertence à graça de JESUS CRISTO. Ele contenta-se em dizer que só entende falar da razão acompanhada de justiça e de piedade. Assim, todas as obras de Josefo estão compreendidas nestes dois volumes, que eu determinei traduzir. Fílon, embora judeu como ele, também escreveu em grego sobre uma parte do mesmo argumento, mas que ele trata como filósofo e não como historiador; entre seus escritos, que são tão apreciados, nenhum o é mais, do que aquele que descreve sua embaixada ao imperador Caio Calígula, de que Josefo fala com elogio no capítulo 10 do livro 18 de sua história dos judeus. Julguei que esse trabalho, tendo tanta relação com ele, nos daria muito prazer, vermos pela tradução que eu fiz, a maneira diferente de escrever desses dois grandes personagens. A de Josefo é sem dúvida muito mais breve e não tem nada do estilo asiático, que muitas vezes me obrigou a dizer em poucas palavras o que Fílon diz em muitas linhas. Poderíamos escrever a história deste imperador, unindo o que estes dois célebres autores escreveram, pois Fílon aborda tão particular e eloqüentemente os feitos de sua vida, como Josefo nobre e excelentemente escreveu sobre o que se passou em sua morte. Uma e outra foram tão extraordinárias que convém se conservem tais imagens, para a posteridade, a fim de animar cada vez mais os bons príncipes a merecer, por sua virtude, tanto amor por sua memória, quanto de horror se sente por aqueles que se mostraram indignos da posição que ocupam no mundo. Uma exposição muito longa obriga a grande atenção, porque não se sabe onde descansar; por isso dividi em capítulos este tratado de Fílon, os dois livros de Josefo contra Ápio e o martírio dos macabeus, onde não havia nenhum. Quanto à história da guerra dos judeus contra os romanos, eu não segui nos livros e nos capítulos a divisão de Rufino, que encontramos nas publicações bilíngües, gregas e latinas, porque me pareceu ruim. Mas limitei-me, como fez Genebrard, à das publicações gregas, que são sem dúvida muito melhores. Nada mais me resta a acrescentar; como estes dois volumes compreendem toda a antiga história sagrada, desejo que não sejam lidos apenas por divertimento e por curiosidade, mas que se procure aproveitar, pelas considerações úteis de que fornecem tanta matéria. Foi esse o motivo que me levou a empreender esta tradução; do contrário, ela ter-me-ia, aos oitenta anos, feito empregar em vão muito tempo e dar-me muito trabalho numa idade na qual só devemos pensar em nos preparar para a morte. O tradutor

LIVRO HISTÓRIA DOS HEBREUS - 2ª PARTE


Livro Nono CAPITULO 1 O PROFETA JEÚ REPREENDE JOSAFÁ, REI DEJUDÁ, POR TER UNIDO ARMAS COM O REI ACABE, DE ISRAEL. ELE RECONHECE A SUA FALTA, E DEUS O PERDOA. SEU ADMIRÁVEL PROCEDER. VITÓRIA MIRACULOSA QUE ELE OBTÉM SOBRE OS MOABITAS, OS AMONITAS E OS ÁRABES. IMPIEDADE E MORTE DE ACAZIAS, REI DE ISRAEL, COMO O PROFETA ELIAS HAVIA PREDITO, FORÃO, SEU IRMÃO, SUCEDE-O. ELIAS DESAPARECE. JORÃO, AUXILIADO POR JOSAFÁ E PELO REI DA IDUMÉIA, OBTÉM UMA GRANDE VITÓRIA SOBRE MESA, REI DOS MOABITAS. MORTE DE JOSAFÁ, REI DE JUDÁ. 370. 2 Crônicas 19. Quando Josafá, rei de Judá, após ter unido as suas tropas com as de Acabe, rei de Israel, contra Hadade, rei da Síria, como vimos, voltou de Samaria a Jerusalém, o profeta )eú veio à sua presença e repreendeu-o por ter ajudado um rei tão ímpio. Disse-lhe que Deus estava muito irritado e que lhe conservara a vida, tirando-o das mãos dos inimigos, por causa de sua virtude. O religioso príncipe, comovido com grande arrependimento pela sua falta, recorreu a Deus e aplacou-lhe a cólera com orações e sacrifícios. Percorreu então todo o reino, para instruir o povo nos mandamentos de Deus e para exortá-lo a adorar e a servir a Deus de todo o coração. Colocou magistrados em todas as cidades e recomendou-lhes muito expressamente que fizessem justiça a todos, sem se deixar corromper, quer pela nobreza, quer pelas riquezas, quer pelo talento de qualquer pessoa, pois deviam lembrar que Deus, que conhece todas as coisas, mesmo as mais ocultas, vê todas as ações dos homens. Depois de regressar a Jerusalém, constituiu também juizes, escolhidos por ele dentre os principais sacerdotes e levitas, e recomendou-lhes, como aos demais, que administrassem com perfeita justiça. Ordenou que, quando houvesse em outras cidades assuntos importantes e difíceis, que merecessem ser examinados com mais cuidado e precisão que os comuns, eles os deveriam levar a Jerusalém perante os magistrados, porque se deveria crer que a justiça não seria em nenhum outro lugar tão bem distribuída quanto na capital do reino, onde estavam o Templo de Deus e o palácio onde os reis habitavam. Nos cargos principais, colocou Amarias, sacerdote, e Zebadias, que era da tribo de Judá. 371. 2 Crônicas 20. Nesse entretempo, os moabitas e os amonitas, unidos aos árabes, a quem haviam chamado em seu socorro, entraram com um grande exército nas terras de Josafá e acamparam a trezentos estádios de Jerusalém, perto do lago Asfaltite, no território de En-Gedi, muito fértil em bálsamos e em palmeiras. Josafá, surpreendido que tivessem adentrado tanto o seu reino, mandou reunir no Templo todo o povo de Jerusalém para rogar a Deus que o ajudasse contra tão poderosos inimigos e os castigasse pelo seu atrevimento. Disse-lhe com humildade que tinha o direito de esperar auxílio, porque Ele mesmo dera ao seu povo a posse do país do qual aquelas nações os queriam expulsar, e, quando os seus antepassados construíram e consagraram o Templo em honra a Ele, eles puseram toda a sua confiança no auxílio dEle, sem duvidar que Ele lhes seria sempre favorável. O príncipe fez acompanhar essa oração com lágrimas, e o povo em geral, tanto os homens quanto as mulheres, fez o mesmo. Então, o profeta Jaaziel adiantou-se e disse em alta voz, dirigindo-se ao rei e àquela grande multidão, que os seus votos haviam sido ouvidos. Deus combateria por eles e lhes daria a vitória. Deveriam partir no dia seguinte para enfrentar o inimigo, até uma colina denominada Ziz (isto é, "eminência", em hebreu), que está entre Jerusalém e En-Gedi, pois ali os encontrariam. Não teriam necessidade de se servir das armas, porque seriam apenas espectadores do combate que Deus travaria, Ele mesmo, em favor deles. Ante as palavras do profeta, o rei e todo o povo prostraram-se com o rosto em terra, deram graças a Deus e o adoraram. Os levitas, com acompanhamento de música, cantaram hinos em seu louvor. 372. No dia seguinte, ao raiar do dia, o rei Josafá se pôs em campo e, quando chegou ao deserto que está abaixo da cidade de Tecoa, disse às tropas que não havia necessidade de combater, como num dia de luta, pois toda a sua forca consistia em sua perfeita confiança no auxílio que Deus prometera por meio de seu profeta. Seria suficiente fazer marchar os sacerdotes com as suas trombetas e os levitas com os seus cantores, para dar graças a Deus pela vitória alcançada e pelo triunfo já obtido sobre os inimigos. Essa ordem tão santa, de tão piedoso rei, foi recebida com respeito por todo o exército e rigorosamente executada. Deus infundiu então tal cegueira no Espírito dos amonitas e dos povos que a eles se haviam juntado que eles próprios se tomaram por inimigos e, transportados de furor, mataram-se uns aos outros, com tanta animosidade e raiva que não restou um só com vida de todo aquele imenso número, e o vale onde isso ocorreu ficou juncado de cadáveres, josafá, transbordando de alegria, deu graças a Deus por aquela vitória tão milagrosa, pois quem obteve a glória de conquistá-la não havia tomado parte nela nem corrido perigo algum. Ele permitiu depois que os soldados saqueassem o campo dos inimigos e despojassem os mortos. Levaram três dias inteiros para isso, tão grande era o número de mortos e tantas as riquezas. No quarto dia, o povo reuniu-se num vale para cantar louvores a Deus e as maravilhas de seu poder, por isso deu-se àquele lugar o nome de Vale dos Louvores, que conserva ainda hoje. Esse piedoso e glorioso príncipe, após regressar com o seu exército para Jerusalém, passou vários dias fazendo sacrifícios e festas públicas, em regozijo e ação de graças pelo favor que ele e todo o seu povo haviam recebido de Deus, tendo Ele mesmo combatido no lugar deles e destruído os inimigos com o efeito prodigioso de seu soberano poder. A fama dessa vitória sobrenatural espalhou-se entre as demais nações, e não puderam elas duvidar de que esse grande soberano fosse particularmente querido de Deus. Conceberam um tão alto conceito de sua justiça e honestidade que a conservaram durante todo o resto de seu reinado. 373. Como ele era amigo de Acazias, rei de Israel, filho de Acabe, equiparam juntos uma grande frota para navegar ao Ponto e à Trácia, mas esses navios naufragaram, porque não eram grandes o suficiente para ser dirigidos, e assim eles abandonaram o projeto. 374. 2 Reis 1. Vamos agora falar de Acazias. Ele sempre morou em Samaria e foi tão mau quanto o seu pai e o seu avô. Foi grande imitador da impiedade de jeroboão, que por primeiro levou o povo a se afastar da adoração ao verdadeiro Deus. No segundo ano do reinado desse rei jovem e mau, os moabitas recusaram-se a pagar-lhe o tributo que deviam a Acabe, seu pai. Um dia, ao descer uma galeria do palácio, ele caiu e, tendo-se ferido muito, mandou consultar o oráculo de Myiode, deus de Ecrom, para saber se ele ficaria curado daquele ferimento. Deus ordenou ao profeta Elias que fosse à presença dos enviados do rei perguntar-lhes se o povo de Israel não tinha Deus, pois o rei os estava mandando consultar um deus estrangeiro. Depois que Elias desempenhou a sua incumbência, ordenou-lhes que fossem dizer ao seu senhor que ele morreria daquele ferimento, e eles voltaram ao seu país. Acazias, assustado por vê-los voltar tão depressa, perguntou-lhes o motivo, e eles responderam que haviam encontrado um homem, o qual os impedira de ir além e ordenara que lhe dissessem, da parte de Deus, que aquela doença iria agravar-se gradualmente. O rei perguntou como era o homem, e eles relataram que era todo coberto de pêlos e trazia as vestes presas por um cinto de couro. Acazias percebeu então que se tratava de Elias, e enviou um oficial com cinqüenta soldados para prendê-lo. O oficial achou-o sentado no alto de um monte e ordenou-lhe que o seguisse, para ir falar com o rei. E, se ele não o fizesse espontaneamente, levá-lo-ia à força. Elias respondeu que lhe mostraria com fatos que era um verdadeiro profeta. Dizendo essas palavras, rogou a Deus que fizesse descer fogo do céu para castigar aquele oficial e todos os seus soldados. Imediatamente apareceu no céu um turbilhão de chamas, que os reduziu a cinzas. A notícia foi levada ao rei, e ele enviou outro oficial, com igual número de soldados, que ameaçou do mesmo modo levar à força o profeta, se ele não quisesse ir de boa vontade. Elias renovou a sua oração, e fogo do céu devorou também aquele oficial e todos os seus soldados, tal como sucedera aos anteriores. O rei enviou então um terceiro oficial e mais cinqüenta soldados. Como esse era mais sensato, ele aproximou-se do profeta, saudou-o cortesmente e disse-lhe: "Não ignorais sem dúvida que é contra o meu desejo e somente para obedecer à ordem do rei que vos venho falar, como os precedentes. Por isso rogo-vos que tenhais compaixão de nós e venhais voluntariamente falar com o rei". Elias, comovido pelas maneiras respeitosas do oficial, seguiu-o. Quando chegou junto do rei, Deus inspirou-lhe o que devia dizer, e ele assim falou ao soberano: "O Senhor diz: Como não me quisestes reconhecer por vosso Deus e não me julgastes capaz de predizer o que vos aconteceria de mal, mas mandastes consultar o deus de Ecrom, declaro-vos que morrereis". 375. Pouco tempo depois, essa profecia realizou-se. Como Acazias não tinha filho, Jorão, seu irmão, sucedeu-o no trono. Imitou igualmente o seu pai em impiedade e abandonou, como ele, o Deus de seus antepassados, para adorar os deuses estrangeiros. Fora isso, ele era muito hábil. Foi sob o seu reinado que Elias desapareceu, sem que jamais se tenha podido saber o que aconteceu a ele. Ele deixou, como já disse, Eliseu, seu discípulo. E bem podemos ver nas Sagradas Escrituras que Elias e Enoque, o qual viveu antes do dilúvio, desapareceram do meio dos homens, mas nunca se soube que tenham morrido. 376. 2 Reis 3. Jorão, depois de ocupar o trono de Israel, resolveu fazer guerra a Mesa, rei dos moabitas, porque este se recusava a pagar-lhe o tributo de duzentos mil carneiros com sua lã, que pagava ao rei Acabe, seu pai. Mandou então pedir ao rei josafá que o ajudasse, tal como fizera a Acabe, seu pai. josafá respondeu que não somente o ajudaria, mas levaria com ele o rei da Iduméia, que era seu dependente. Jorão ficou muito grato por essa resposta e foi a Jerusalém agradecer-lhe. Josafá recebeu com grande magnificência esse príncipe e o rei da Iduméia, e eles resolveram entrar no país inimigo pelos desertos da Iduméia, que era o lado pelo qual os moabitas menos esperavam ser atacados. Os três reis partiram juntos em seguida e, depois de haver marchado durante sete dias e de ter perdido o rumo, por falta de bons guias, encontraram-se em tão grande penúria e com tanta sede que os cavalos morriam por falta de água. Como Jorão era de natureza impaciente, ele perguntava a Deus, murmurando contra Ele, que mal haviam feito para entregar assim três reis nas mãos dos inimigos, sem combate. Josafá, que, ao contrário, era um príncipe muito religioso, consolava-o, e indagou se não havia no exército algum profeta de Deus a quem pudessem consultar a respeito do que fazer em tal contingência. Um dos servidores de Jorão declarou ter visto Eliseu, filho de Safate, que era discípulo de Elias. Logo os três reis, por conselho de Josafá, foram procurá-lo em sua cabana, que ficava fora do acampamento, e pediram-lhe, particularmente jorão, que lhes revelasse o resultado daquela guerra. Ele respondeu ao príncipe que o deixasse descansar e fosse consultar os profetas de seu pai e de sua mãe, que também eram verdadeiros. Jorão insistiu e rogou-lhe que falasse, pois estava em jogo a vida de todos. Eliseu tomou então a Deus por testemunha e afirmou com juramento que só lhe responderia em consideração a Josafá, que era um príncipe justo e temente a Deus. Disse em seguida que fizessem vir um músico com instrumentos. Quando ele começou a tocar, o profeta, cheio do Espírito de Deus, disse aos três reis que mandassem fazer uns regos na torrente, e eles veriam que, embora o ar permanecesse imóvel, sem vento algum, e sem que caísse do céu uma gota de água, os regos ficariam cheios e forneceriam a eles e a todo o exército água para matar a sede. Disse mais o profeta: "E esse não será o único favor que recebereis de Deus, pois com o auxílio dEle vencereis os vossos inimigos, tomareis as mais belas e as mais fortes de suas cidades e devastareis o seu país: cortareis as suas árvores, fareis secar as suas fontes e desviareis o curso de seus regatos". Assim falou-lhes o profeta, e no dia seguinte, antes do nascer do sol, viu-se a torrente completamente cheia de água, proveniente da Iduméia, distante três dias de caminho, onde Deus fizera cair chuva, e todo aquele grande exército teve água em abundância para beber. O rei dos moabitas, ao saber que os três reis marchavam contra ele pelo deserto, reuniu todas as suas forças para enfrentá-los nas fronteiras de seu território, a fim de barrar-lhes a entrada. Mas quando ele chegou perto da torrente, o revérbero dos raios de sol na água fizeram-nas parecer vermelhas, e todos as tomaram por sangue, imaginando que o desespero causado pela sede fizera os inimigos matarem-se reciprocamente. Com essa falsa convicção, os moabitas pediram permissão ao seu rei para saquear o acampamento e, tendo-a obtido, partiram precipitada e desordenadamente, como quem tem certeza de encontrar presa fácil. Mas logo se viram rodeados de todos os lados pelos inimigos, que mataram parte deles e puseram o resto em fuga. Os três reis entraram no país, tomaram o que quiseram, destruíram várias cidades, espalharam o cascalho da torrente sobre as terras mais férteis, cortaram as melhores árvores e entupiram as fontes. Destruíram tudo e sitiaram o próprio rei, que procurava pôr-se a salvo. (Vendo-se em perigo, o soberano tudo fizera para escapar. Saiu da cidade com setecentos homens escolhidos e tentou atravessar o campo inimigo do lado que ele julgava menos defendido. Mas isso não lhe foi possível, e ele teve de voltar.) O desespero então levou-o a fazer o que não se pode descrever sem horror. Ele tomou o príncipe, seu filho mais velho e sucessor, e sacrificou-o sobre as muralhas da cidade, à vista dos sitiantes. Tão terrível espetáculo comoveu os três reis, enchendo-os de tanta compaixão que, levados por um sentimento de humanidade, levantaram o cerco, e cada qual voltou para o seu país. josafá viveu muito pouco depois disso. Morreu em Jerusalém, na idade de sessenta anos, dos quais reinara apenas vinte e cinco. Enterraram-no com a magnificência que merecia tão notável soberano e tão grande imitador das virtudes de Davi. CAPÍTULO 2 JEORÃO, FILHO DEJOSAFÁ, SUCEDE-O. ÓLEO MULTIPLICADO MILAGROSAMENTE POR ELISEU EM FAVOR DA VIÚVA DE OBADIAS. HADADE, REI DA SÍRIA, MANDA TROPAS PARA PRENDÊ-LO, MAS DEUS OS FERE COM CEGUEIRA, E ELISEU OS CONDUZ A SAMARIA. HADADE SITIA FORÃO, REI DE ISRAEL. ASSÉDIO LEVANTADO MILAGROSAMENTE, SEGUNDO APREDIÇÃO DE ELISEU. HADADE É ESTRANGULADO POR HAZAEL, QUE USURPA O REINO DA SÍRIA E DE DAMASCO. HORRÍVEL IMPIEDADE E IDOLATRIA DE JEORÃO, REI DE JUDÁ. ESTRANHO CASTIGO COM QUE DEUS O AMEAÇA. 377. 2 Crônicas 21. josafá, rei de ]udá, deixou vários filhos, jeorão, que era o mais velho, sucedeu-o no trono, como ele havia ordenado. A mulher de Jeorão, como vimos, era irmã de Jorão, rei de Israel, filho de Acabe, que, ao regressar da guerra contra os moabitas, levara Eliseu com ele para Samaria. Os feitos desse profeta são tão memoráveis que julguei dever relatá-los aqui, segundo o que está escrito nos Livros Santos. 378. 2 Reis 4. A viúva de Obadias, mordomo do rei Acabe, veio dizer ao profeta que, não tendo meios de restituir o dinheiro que seu marido havia emprestado para alimentar os cem profetas que, como Eliseu devia saber, ele salvara da perseguição de jezabel, os credores queriam tomá-la como escrava e também aos seus filhos. E, por causa dessa dificuldade em que se encontrava, recorria a ele, para rogar que tivesse piedade dela. Eliseu perguntou-lhe se ela possuía alguma coisa. A mulher respondeu que só lhe restava um pouco de óleo. O profeta então mandou-lhe que tomasse emprestado dos vizinhos algumas vasilhas vazias, fechasse a porta do quarto e enchesse os vasos com óleo, com a firme confiança de que Deus os encheria a todos. Ela fez o que ele ordenou, e a promessa do profeta realizou-se. Ela foi logo contar-lhe o resultado. Ele disse-lhe então que vendesse o óleo: uma parte do dinheiro serviria para pagar as dívidas, e o resto deveria ser guardado para sustentar os filhos. Assim, ele satisfez a pobre mulher e livrou-a da perseguição dos credores. 379. 2 Reis 6. Eis um outro grande feito do profeta: Hadade, rei da Síria, pôs homens de emboscada para matar Jorão, rei de Israel, quando este fosse à caça, mas Eliseu foi avisá-lo e impediu assim que ele fosse morto. Hadade ficou encolerizado por ver frustrada a sua esperança, tanto que ameaçou matar todos os que havia encarregado daquela missão, pois, tendo falado somente a eles, alguém devia tê-lo traído e avisado o inimigo. Um deles então protestou, dizendo que eram todos inocentes daquele crime e que o rei deveria entender-se com Eliseu, a quem nenhum de seus intentos era segredo, os quais o profeta referia a Jorão. Hadade aceitou essas razões e ordenou que procurassem saber em que cidade estava o profeta. Hadade soube que ele estava em Dota e para lá enviou um grande número de soldados, a fim de prendê-lo. Penetraram na cidade à noite, para que ele não pudesse escapar, porém o criado de Eliseu o soube e bem cedo, todo trêmulo, correu a contar ao profeta. Este, que confiava no socorro do alto, disse-lhe que nada temesse e rogou a Deus que o tranqüilizasse, fazendo-lhe conhecer a grandeza de seu poder infinito. Deus o ouviu e permitiu que o servo contemplasse uma grande multidão de cavaleiros e carros armados, prontos para defender o profeta. Eliseu rogou a Deus também que cegasse de tal modo os sírios que eles nada pudessem ver. Deus consentiu, e o profeta meteu-se no meio deles, perguntando a quem procuravam. Responderam que procuravam Eliseu, o profeta. Ele disse-lhes: "Se quiserdes seguir-me, levar-vos-ei até a cidade onde ele está". E, como Deus não somente lhes tirara a vista, mas obscurecera-lhes também o Espírito, eles o seguiram. Eliseu levou-os a Samaria. O rei Jorão, por seu conselho, rodeou-os com todas as suas tropas e fechou as portas da cidade. Então o profeta rogou a Deus que lhes tirasse a cegueira, e assim se fez. Não se pode descrever a surpresa e o terror daqueles homens ao se acharem no meio dos inimigos. Jorão perguntou ao homem de Deus se queria que os matasse, a flechadas, e ele respondeu que o proibia terminantemente, porque não era justo matar prisioneiros que não haviam sido vencidos na guerra e que nenhum mal tinham feito ao país, mas que Deus os entregara nas mãos do rei por um milagre. Ele devia, ao contrário, tratá-los bem e enviá-los de volta ao seu rei. Jorão seguiu o conselho, e Hadade concebeu tal admiração pelo homem de Deus e pelas graças com que Ele favorecia o seu profeta que enquanto Eliseu viveu não usou mais de ardil algum contra o rei de Israel, determinando combatê-lo somente em luta aberta. Dessa forma, entrou em Israel com um grande exército. Jorão, não se julgando capaz de lhe resistir, encerrou-se em Samaria, confiando em suas fortificações. Hadade, julgando que não podia tomar a cidade à força, resolveu cortar-lhe os víveres e assim começou o cerco. A falta de todas as coisas necessárias à vida foi logo tão grande que a cabeça de um asno era vendida por oitenta peças de prata, e um sextário de estrume de pomba, de que se serviam em lugar de sal, custava cinco. Tal miséria fez Jorão temer que alguém, levado pelo desespero, fizesse os inimigos entrar na cidade e por isso inspecionava pessoalmente todos os guardas. Numa dessas rondas, uma mulher veio lançar-se aos seus pés, rogando-lhe que tivesse piedade dela. Ele julgou que ela desejava alguma coisa para comer e rudemente respondeu que ele não tinha nem eira nem lagar de onde lhe pudesse tirar alimento. A mulher retrucou que não era isso o que estava pedindo, mas apenas que fosse juiz de uma questão entre ela e uma de suas vizinhas. O rei, então, pediu-lhe que expusesse a sua dúvida. A mulher contou que ela e a vizinha estavam morrendo de fome e, tendo cada uma um filho, entraram em acordo para comê-los, pois não viam outro modo de salvar a própria vida. Ela matara o seu, e ambas o haviam comido, mas agora a outra mulher, contrariando o ajuste, não queria matar o dela e até o havia escondido. Essas palavras comoveram tanto o soberano que ele rasgou as próprias vestes e começou a gritar. Cheio de cólera contra Eliseu, determinou matá-lo, porque, podendo o profeta obter de Deus, com as suas orações, o livramento de tantos males, se negava a pedi-lo. Assim, ordenou que fossem imediatamente cortar-lhe a cabeça, e os soldados partiram para executar a ordem. O profeta, que estava descansando em sua casa, ciente da ordem por uma revelação de Deus, disse aos seus discípulos: "O rei, sendo filho de um homicida, mandou os seus homens para me cortar a cabeça. Ficai perto da porta, porém, para mantê-la fechada a esses assassinos, quando virdes que se aproximam, pois o rei se arrependerá de ter dado essa ordem e virá aqui ele mesmo, em seguida". Fizeram o que ele havia determinado, e Jorão, arrependido de ter dado a ordem e com receio de que a executassem, veio apressadamente para impedi-los e lamentou o pouco interesse do profeta pelos seus sofrimentos e pela infelicidade do povo, pois não se dignava pedir a Deus que os livrasse de tantos males. 2 Reis 7. Então Eliseu prometeu que, no dia seguinte, à mesma hora, ele teria tal abundância de víveres em Samaria que a medida de farinha de trigo seria vendida a um sido no mercado, e duas medidas de cevada não custariam mais. Como o príncipe não podia duvidar das predições do profeta, após haver constatado tantas vezes a sua veracidade, a esperança de um feliz futuro deu-lhe tal alegria que o fez esquecer a infelicidade presente. Os que o acompanhavam não ficaram menos alegres, exceto um dos oficiais, que comandava o terço das tropas e em quem o rei tinha plena confiança. Ele disse a Eliseu: "O profeta, o que prometeis ao rei não é possível, ainda que Deus faça chover do céu farinha e cevada". Respondeu Eliseu: "Não duvideis, porque o vereis com os vossos próprios olhos. Mas somente o vereis, não participareis dessa felicidade". E aconteceu como ele predisse. Havia entre os samaritanos um costume segundo o qual os leprosos não podiam ficar nas cidades. Por esse motivo, quatro homens de Samaria, vítimas dessa doença, residiam fora dos muros. Como não tinham absolutamente nada para comer e nada podiam esperar da cidade, por causa da extrema carestia a que estava reduzida, e como sabiam que não deixariam de morrer de fome, quer fossem pedir esmola, quer ficassem em casa, julgaram melhor entregar-se aos inimigos. Porque se estes tivessem compaixão deles, lhes salvariam a vida, e se os matassem, seria uma morte muito mais suave que a outra, que lhes era inevitável. Depois de tomar essa resolução, partiram para o acampamento dos sírios. No entanto Deus tinha feito aquele povo ouvir durante a noite um rumor semelhante ao de cavalos e de carros, como se um grande exército os viesse atacar. Isso causou-lhes tal espanto que eles abandonaram as suas tendas e disseram a Hadade, seu rei, que o rei do Egito e os reis das ilhas tinham vindo em auxílio de Jorão, e já se ouvia o retinir de suas armas. Como Hadade havia também escutado o ruído, facilmente prestou fé às palavras deles, sem que ele ou os seus soubessem o que fazer. Então fugiram, com tanta precipitação e em tal desordem que nada levaram de seus bens e das riquezas de que o acampamento estava cheio. Os leprosos entraram no campo inimigo e lá encontraram em abundância toda espécie de bens, sem ouvir o menor ruído. Avançaram ainda mais e entraram numa tenda, onde, não encontrando ninguém, beberam e comeram o quanto quiseram. Apoderaram-se de vestes, de dinheiro e de grande quantidade de ouro e prata, que enterraram num campo fora do acampamento. Passaram a outra tenda e ainda a duas outras, onde fizeram o mesmo, sem encontrar ninguém. Então não tiveram mais dúvidas de que os inimigos haviam fugido e lastimaram não terem levado ainda aquela notícia ao rei e aos seus concidadãos. Por isso se apressaram e foram gritar às sentinelas que os inimigos se haviam retirado. As sentinelas avisaram o corpo da guarda mais próximo da pessoa do rei, que ao tomar ciência do fato reuniu em conselho os seus chefes e servidores particulares e disse-lhes que aquela retirada dos sírios era suspeita. Tinha motivo para temer que Hadade, ansioso por tomar a cidade pela fome, tivesse fingido retirar-se, a fim de que os sitiados fossem saquear o acampamento. Assim, ele voltaria de repente, cercá-los-ia de todas as partes, matando-os facilmente, e tomaria a cidade sem resistência alguma. Seu parecer era de que não se incomodassem com o que acontecera e continuassem como antes. Um dos presentes a esse conselho, que estava entre os mais sensatos, acrescentou, depois de elogiar tal parecer, que julgava muito apropriado enviar dois cavaleiros para observar o que se passava no campo até o Jordão. Se fossem apanhados pelos inimigos, os outros saberiam conservar-se prudentemente em guarda, para não cair no mesmo perigo. E, se eles fossem mortos, estariam apenas antecipando um pouco a própria morte, pois não tinham como conter a carestia. O rei aprovou a proposta e ordenou imediatamente aos cavaleiros que fossem observar o campo inimigo. Eles voltaram dizendo que não haviam encontrado uma pessoa sequer no acampamento e tinham visto o caminho inteiramente coberto de armas e de grãos, que eles haviam lançado fora para fugir mais depressa. Então Jorão permitiu aos seus que fossem saquear o campo dos sírios. Recolheram uma enorme riqueza de despojos, pois, além de grande quantidade de ouro, prata, cavalos e gado, encontraram tanto trigo e cevada que parecia um sonho. Assim esqueceram logo os males passados, e houve abundância, tal como Eliseu havia predito: duas medidas de cevada se vendiam por um sido, e a medida de farinha, pelo mesmo preço. Essa medida continha um módio e meio, da Itália. O único que não teve parte em tão feliz mudança foi o oficial que acompanhava do rei quando este fora falar com Eliseu. O príncipe ordenara-lhe que ficasse à porta da cidade, para impedir que as pessoas, na pressa de sair, matassem umas às outras. E ele foi sufocado, vindo a morrer, como o profeta havia predito. 380. 2 Reis 8. Hadade retirou-se para Damasco e lá soube do terror que invadira o seu exército sem que aparecesse qualquer inimigo, mas sabia também que aquele pavor fora enviado por Deus. Sentiu muito desgosto ao constatar que Ele lhe era tão contrário, e ficou gravemente enfermo. Avisaram-no então de que Eliseu vinha a Damasco, e ele ordenou ao mais fiel de seus servos, de nome Hazael, que fosse encontrá-lo com presentes e perguntasse se ele sararia. Hazael mandou carregar quarenta camelos com os mais saborosos frutos do país e com objetos preciosos e, depois de saudar o profeta, apresentou-lhe as dádivas do rei, perguntando em seu nome se devia esperar a cura. O profeta respondeu que Hadade morreria, mas proibiu Hazael de dar-lhe a notícia. Essas palavras deixaram Hazael muito aflito, e Eliseu, por seu lado, derramou lágrimas à vista dos males que se seguiriam ao seu povo após a morte de Hadade. Hazael rogou a Eliseu que lhe dissesse o motivo daquele penar, e o profeta respondeu: "Choro por causa dos males que fareis sofrer os israelitas. Pois fareis morrer os seus melhores homens, reduzireis a cinzas as suas pra-ças-fortes, esmagareis os seus filhos com pedras e não poupareis nem mesmo as grávidas". Hazael, assustado com essas palavras, perguntou-lhe como aquilo poderia acontecer e que probabilidade havia de ele conquistar tão grande poder. Então o profeta declarou que Deus havia revelado que ele reinaria sobre a Síria. Hazael contou a Hadade que este devia esperar a saúde e, no dia seguinte, asfixiou-o com um pedaço de linho molhado e apoderou-se do reino. Ele tinha, ademais, muitos méritos e conquistou de tal modo o afeto dos sírios e dos habitantes de Damasco que eles o têm ainda hoje, tal como a Hadade, no número de suas divindades e prestam-lhe contínua honra, por causa dos benefícios que receberam de ambos, dos soberbos templos que eles construíram e de tantos embelezamentos de que a cidade de Damasco lhes é devedo-ra. Enaltecem também a antigüidade de sua descendência, pois ainda vivem, mil e cem anos depois. Jorão, rei de Israel, informado da morte de Hadade, julgou que nada mais tinha a temer e que passaria tranqüilo o resto de seu reinado. 381. 2 Reis 11; 2 Crônicas 21. Voltemos a Jeorão, rei de Judá. Não havia ele subido ao trono, e seu mau governo logo se revelou, pelo assassinato dos próprios irmãos e dos homens mais ilustres do reino, aos quais Josafá, seu pai, dedicara grandíssima estima. Ele não se contentou em imitar aqueles reis de Israel que primeiro violaram as leis de nossos antepassados e mostraram a sua impiedade para com Deus, mas os sobrepujou a todos em muitas espécies de crimes e aprendeu de Atalia, sua mulher, filha de Acabe, a prestar aos deuses estrangeiros sacrílegas adorações. Assim, dia a dia, ele cada vez mais irritava a Deus, por causa de sua impiedade e pela profanação das coisas mais santas de nossa religião. Deus, no entanto, não o quis exterminar, por causa da promessa que fizera a Davi. Os idumeus, todavia, que antes lhe eram submissos, sacudiram o jugo, começando Dor matar o seu próprio rei, que sempre fora fiel a josafá, e colocando outro em seu lugar. Jeorão, para vingar-se, entrou à noite naquele país com muitos carros e soldados de cavalaria e destruiu algumas cidades e aldeias da fronteira, sem ousar contudo ir além. Mas essa expedição, em vez de torná-lo temível àqueles povos, levou ainda outros a se revoltar contra ele, e os que habitam o país de Libna não o quiseram mais reconhecer como soberano. A loucura e o furor desse rei chegou a tal excesso que ele obrigou os súditos a adorar falsos deuses nos lugares mais elevados dos montes. Certo dia, estando ele muito agitado, trouxeram-lhe uma carta de Eliseu, na qual o profeta o ameaçava com uma terrível vingança da parte de Deus, pois, em vez de observar as suas leis, como os seus predecessores, ele preferira imitar os erros abomináveis dos reis de Israel, obrigando a tribo de Judá e os habitantes de Jerusalém, tal como Acabe fizera aos israelitas, a abandonar o culto ao verdadeiro Deus para adorar ídolos. E, a tudo isso acrescentara ainda o assassinato dos próprios irmãos e de tantos homens de bem. Por isso receberia o merecido castigo: o seu povo cairia sob a espada dos inimigos, e os cruéis vencedores não poupariam nem as esposas nem os filhos dele. Ele veria com os próprios olhos saírem-lhe as entranhas de seus corpos e então iria se arrepender, porém seria tarde demais, e o seu arrependimento não o impediria de morrer em meio a muitas dores. CAPÍTULO 3 MORTE HORRÍVEL DE JEORÃO, REI DE JUDÁ. ACAZIAS, SEU FILHO, SUCEDE-O. 382. Algum tempo depois, os árabes que estão perto da Etiópia, auxiliados por um grande número de outros bárbaros, entraram no reino de Jeorão. Saquearam-no totalmente e mataram todas as suas mulheres e filhos, com exceção de um, chamado Acazias. Jeorão, segundo a predição com que o profeta o havia ameaçado, contraiu uma horrível doença e morreu depois de haver sofrido o que não se pode descrever. O povo, em vez de lastimá-lo, sentiu tal aversão por sua memória que, julgando-o indigno de receber qualquer honra, não quis que ele fosse enterrado no sepulcro de seus antepassados. E Deus assim o permitiu, segundo a minha opinião, para mostrar o horror que Ele nutria pela impiedade desse soberano. Jeorão reinou quarenta e oito anos, e Acazias, seu filho, sucedeu-o. CAPÍTULO 4 JORÃO, REI DE ISRAEL, SITIA RAMOTE. É FERIDO E RETIRA-SE AJEZREE PARA SE MEDICAR, DEIXANDO JEÚ NO COMANDO DO EXÉRCITO PARA CONTINUAR O CERCO. O PROFETA ELISEU CONSAGRA JEÚ REI DE ISRAEL, COM ORDEM DE DEUS PARA ELE EXTERMINAR TODA A FAMÍLIA DE ACABE. JEÚ DIRIGE-SE A JEZREEL, ONDE ESTÁ JORÃO, REI DE ISRAEL. ACAZIAS, REI DEJUDÁ, SEU SOBRINHO, VISITA JORÃO. 383. Jorão, rei de Israel, acreditando poder reconquistar a cidade de Ramote-Gileade, sitiou-a, depois da morte do rei da Síria, com grande exército, sendo ferido nesse cerco por uma flecha atirada por um sírio. Como o ferimento não era mortal, ele retirou-se para a cidade de Jezreel, a fim de tratar a ferida, deixando o cerco a cargo de Jeú, filho de Josafá, que comandava as suas tropas. Esse general tomou a cidade num assalto, e Jorão resolveu continuar a guerra aos sírios logo que se tivesse curado do ferimento. Nesse mesmo tempo, o profeta Eliseu ordenou a um de seus discípulos que tomasse o óleo santo e fosse a Ramote consagrar Jeú rei de Israel e declarar-lhe que o fazia por ordem de Deus. Feito isso, o discípulo deveria se retirar em seguida, como quem está fugindo, a fim de que ninguém fosse tido como suspeito de cumplicidade naquele ato. O discípulo encontrou Jeú assentado entre os seus oficiais, conforme dissera o profeta, e pediu para falar-lhe em particular. Jeú levantou-se e levou-o ao seu aposento. Ali o profeta derramou-lhe o óleo santo sobre a cabeça e disse-lhe: "Deus vos consagra rei de Israel, para vingar o crime cometido por Jezabel, quando, contra toda espécie de justiça, derramou o sangue dos profetas. Ele vos ordena que extermineis completamente a descendência de Acabe, bem como a de Jeroboão, a de Nabate, seu filho, e a de Baasa, por causa de sua impiedade". Terminando de falar essas palavras, o profeta retirou-se do quarto apressadamente. Jeú voltou para junto daqueles que havia deixado. Perguntando eles o que viera fazer aquele homem, que parecia ter perdido o juízo, ele respondeu: "Tendes razão em falar assim, pois ele falou-me como um louco". A curiosidade de saber o que o homem dissera os fez insistir em que jeú contasse o que se passara, e ele disse: "Revelou-me ele que a vontade de Deus é fazer-me rei". A essas palavras, eles puseram os seus mantos em terra, uns sobre os outros, para que Jeú se sentasse sobre eles, como em um trono, e o proclamaram rei ao som de trombetas. O novo soberano marchou em seguida com todo o exército para Jezreel, onde, como dissemos, o rei estava fazendo curar o seu ferimento. Acazias, rei de Judá, filho de sua irmã, tinha vindo visitá-lo. Jeú, para surpreender Jorão e não falhar em sua empresa, pediu a todos os soldados que, se quisessem dar uma prova de que o haviam escolhido de boa mente para rei, impedissem que Jorão soubesse de sua chegada. CAPÍTULO 5 JEÚ MATA JORÃO, REI DE ISRAEL, E ACAZIAS, REI DE JUDÁ. 384. O exército de Jeú obedeceu com alegria a essa ordem e ocupou de tal modo as estradas que iam a Jezreel que era impossível avisar o rei de sua chegada. Jeú, sobre o seu carro, acompanhado pelo melhor de sua cavalaria, marchou para a cidade. Quando já estava perto, a sentinela avisou que via aproximar-se um grupo de cavaleiros. O rei ordenou a um dos seus que fosse verificar quem eram. O cavaleiro foi a Jeú e disse-lhe que o rei o mandava para saber como iam as coisas no exército. Jeú respondeu-lhe que não se devia impressionar e que o seguisse. A sentinela, vendo que o cavaleiro, em vez de voltar, tinha-se reunido ao grosso dos cavaleiros, foi avisar jorão, que mandou um segundo, ao qual Jeú também reteve. A sentinela avisou Jorão novamente, e então ele subiu ao carro, acompanhado por Acazias, rei de Judá, para ver ele mesmo o que se passava. Jeú marchava vagarosamente. Jorão alcançou-o no campo de Nabote e perguntou-lhe se tudo ia bem no exército, jeú, em vez de responder, perguntou-lhe como se podia vangloriar de ter por mãe uma feiticeira e uma mulher sem honra. Essas palavras fizeram Jorão ver claramente que jeú havia tramado a sua ruína, e ele disse ao rei Acazias: "Fomos traídos!" Ao mesmo tempo, girou o carro, para voltar à cidade, mas Jeú o deteve com uma flechada, que lhe atravessou o coração e o fez cair morto fora do carro. E, lembrando-se de ter ouvido o profeta Elias dizer ao rei Acabe, pai de Jorão, que ele e toda a sua geração morreriam no mesmo lugar em que injustamente se insurgira contra Nabote, ordenou a Bidcar, general de um terceiro grupo de suas tropas, que lançasse o corpo de jorão nas terras de Nabote. E assim a profecia realizou-se. Temendo receber o mesmo tratamento que Jorão, o rei Acazias desviou o seu carro para tomar outro caminho. Jeú perseguiu-o até uma pequena colina, onde lhe desferiu também uma flechada, que o feriu. Acazias desceu do carro, montou num cavalo e fugiu a todo galope até a cidade de Megido, onde morreu em conseqüência do ferimento. Levaram o seu corpo a Jerusalém, onde ele foi enterrado, após haver reinado somente um ano e mostrado que era muito pior que seu pai. CAPÍTULO 6 JEÚ, REI DE ISRAEL, FAZ MORRER JEZABEL, OS SETENTA FILHOS DE ACABE, TODOS OS PARENTES DESSE SOBERANO, QUARENTA E DOIS PARENTES DE ACAZIAS, REI DE JUDÁ, E EM GERAL TODOS OS SACERDOTES DE BAAL, O FALSO DEUS DOS TÍRIOS, AO QUAL ACABE MANDARA CONSTRUIR UM TEMPLO. 385. Quando jeú fez a sua entrada em Jezreel, a rainha Jezabel veio a uma janela, para vê-lo chegar. Estava adornada e bem vestida e disse ao vê-lo aproximar-se: "Eis o fiel servidor, que assassinou o seu senhor!" A essas palavras, Jeú ergueu os olhos, perguntou quem ela era e mandou que descesse. Ela não quis fazê-lo, e ele então ordenou aos eunucos que estavam com ela que a atirassem para baixo. Os homens obedeceram, e a miserável princesa, caindo, espatifou-se de tal modo sobre as pedras do calçamento que elas ficaram manchadas com o seu sangue. Ela morreu depois, sob as patas dos cavalos que lhe passaram por cima. Jeú ordenou que ela fosse sepultada com a honra devida à grandeza de seu nascimento, sendo de família real, mas apenas foram encontradas as extremidades de seu corpo, pois os cães haviam comido o resto. Isso fez o novo rei lembrar a profecia de Elias, o qual predissera que ela morreria daquele modo, em Jezreel. 386. Acabe deixara setenta filhos, e estavam todos em Samaria. Jeú, para experimentar a disposição dos samaritanos para com ele, escreveu aos precepto-res dos jovens príncipes e aos principais magistrados da cidade, dizendo que escolhessem para rei um dos filhos de Acabe que julgassem digno de reinar e que se vingasse de quem lhe matara o pai, pois eles possuíam armas, cavalos, carros, soldados e praças-fortes. Os magistrados e os habitantes, não se julgando em condições de resistir a um homem que matara dois reis tão poderosos, responderam-lhe que não conheciam outro soberano senão ele e que estavam prontos a fazer tudo o que ele lhes mandasse. Diante de tal resposta, ele escreveu aos magistrados que, se deveras estavam assim dispostos, lhe mandassem as cabeças de todos os filhos de Acabe. Ao receber essa carta, mandaram eles chamar os preceptores dos príncipes e ordenaram-lhes que fizessem o que Jeú lhes mandara. Homens cruéis obedeceram no mesmo instante, puseram as cabeças num saco e enviaram-nas a )eú. Ele estava à mesa com alguns de seus familiares quando as trouxeram, e ordenou que as colocassem em dois montes de ambos os lados da porta do palácio. No dia seguinte, de manhã, foi vê-las e disse ao povo: "É verdade que matei o rei meu senhor. Mas quem matou estes?" Queria assim dar-lhes a entender que tudo acontecera por vontade de Deus e por ordem dEle, pois, como fora predito pelo profeta Elias, Ele exterminaria Acabe e toda a sua descendência. Mandou em seguida matar todos os parentes de Acabe que ainda estavam vivos e depois partiu para Samaria. Encontrou pelo caminho quarenta e dois parentes de Acazias, rei de Judá, e perguntou-lhes para onde iam. Responderam que iam saudar Jorão, rei de Israel, e Acazias, o rei que estava com ele, pois não sabiam que ele havia matado ambos. Jeú mandou prendê-los e os fez morrer também. Logo depois, Jonadabe, que era um homem de bem e seu velho amigo, veio procurá-lo e louvou-o por haver fielmente cumprido as ordens de Deus, exterminado toda a descendência de Acabe. Jeú disse-lhe que subisse ao seu carro para acompanhá-lo a Samaria e ter a satisfação de constatar que ele não perdoaria a um só dentre os maus, mas faria passar a fio de espada todos os falsos profetas e sedutores do povo, que o levavam a abandonar a Deus para adorar falsas divindades, pois nada poderia ser mais agradável a um homem de bem como ele que ver sofrerem os ímpios o castigo que merecem. Jonadabe obedeceu, subiu ao carro e foi com ele a Samaria. Jeú continuou a procurar e a matar todos os parentes de Acabe e, para impedir que algum dos profetas dos deuses falsos daquele príncipe pudesse escapar, serviu-se de um ardil. Mandou reunir todo o povo e declarou que, tendo resolvido intensificar o culto que se prestava aos deuses de Acabe, nada queriam fazer acerca daquele assunto sem o parecer dos sacerdotes e dos profetas. Assim, queria que todos, sem exceção, viessem ter com ele, a fim de oferecerem um grande número de sacrifícios a Baal, deus deles, no dia de sua festa, e quem faltasse seria castigado com a pena de morte. Marcou depois um dia para a cerimônia e mandou publicar a sua ordem em todas as partes do reino. Depois que chegaram os sacerdotes e os profetas, mandou entregar-lhes as vestes e, acompanhado por Jonadabe, seu amigo, foi encontrá-los no templo, cuidando para que ninguém se misturasse a eles, pois, dizia ele, não queria que os profanos tomassem parte naquelas santas cerimônias. Quando os profetas e os sacerdotes estavam se preparando para oferecer os sacrifícios, ele ordenou a oitenta de seus guardas, de toda confiança, que os matassem a todos, a fim de vingar com a morte deles o desprezo que por tanto tempo manifestaram para com a religião de seus antepassados. E ameaçou-os de morte também, caso poupassem um só deles. Os guardas executaram rigorosamente a ordem recebida e, também por ordem do rei, atearam fogo ao palácio real, a fim de purificar Samaria das muitas abominações e sacrilégios ali cometidos. Baal era o deus dos tírios, ao qual Acabe, para agradar a Etbaal, rei de Tiro e de Sidom, seu sogro, mandara construir e consagrar um templo em Samaria, ordenando profetas e todas as outras coisas necessárias para prestar honra a esse deus. Jeú permitiu, no entanto, que os israelitas continuassem a adorar os bezerros de ouro. Embora Deus tivesse isso como coisa muito desagradável, não deixou de prometer, por meio de seu profeta, que a posteridade de Jeú, por ter este castigado a impiedade, reinaria sobre Israel até a quarta geração. CAPÍTULO 7 ATALIA, VIÚVA DEJEORÃO, REI DEJUDÁ, TENTA EXTERMINAR TODA A DESCENDÊNCIA DE DAVI.JOIADA, SUMO SACERDOTE, SALVA JOÁS, FILHO DE ACAZIAS, REI DE JUDÁ, COLOCA-O NO TRONO E MANDA MATAR ATALIA. 387. 2 Reis 7 7; 2 Crônicas 22 e 23. Atalia, filha de Acabe, rei de Israel, e viúva de Jeorão, rei de Judá, vendo que Jeú matara Jorão, irmão dela, e que exterminava toda a sua descendência, não tendo poupado nem mesmo Acazias, seu filho, rei de Judá, resolveu também exterminar toda a descendência de Davi, para que nenhum dos descendentes deste pudesse subir ao trono. Nada ela omitiu na execução de seu desígnio, e apenas um dos filhos de Acazias escapou, o que aconteceu deste modo: Jeoseba, irmã de Acazias e mulher de Joiada, sumo sacerdote, entrou no palácio e encontrou no meio daquela carnificina um menino de nome Joás, de apenas um ano de idade, o qual fora ocultado por sua ama. Ela então o apanhou e levo-o, sem que nenhum outro, a não ser o marido, tivesse ciência disso. Criou-o no Templo durante os seis anos em que Atalia reinou em Jerusalém. No fim desse tempo, joiada persuadiu cinco oficiais a se unir a ele para tirar a coroa de Atalia e colocá-la sobre a cabeça de Joás. Obrigaram-se todos, com juramento, a guardar segredo e conceberam firme esperança de realizar o seu intento. Esses cinco oficiais foram depois a toda parte convocar, em nome do sumo sacerdote, os sacerdotes, os levitas e os principais das tribos a se dirigirem a Jerusalém. Depois que lá chegaram, Joiada disse-lhes que, se lhe prometessem com juramento guardar um segredo inviolável, comunicaria a eles um assunto muito importante para todo o reino, no qual ele tinha necessidade de seu auxílio. Eles prometeram-no e juraram. Então ele mostrou-lhes o único príncipe que restava da descendência de Davi e disse: "Eis aí o vosso rei, o único que resta da família daquele que, bem sabeis, Deus revelou e predisse que reinaria para sempre sobre vós. Assim, se quiserdes seguir o meu conselho, sou de opinião que uma terça parte de vós tome o cuidado de conservar este príncipe no Templo, outra terça parte se apodere de todas as avenidas e a terça parte restante monte guarda à porta pela qual se vai ao palácio real, que ficará aberta. Os que não tiverem armas fiquem no Templo, onde ninguém entrará armado, exceto os sacerdotes". Escolheu em seguida alguns sacerdotes e levitas para que, armados, ficassem junto da pessoa do novo rei, a fim de lhe servirem de guardas, com ordem de matar a todos os que lá quisessem entrar com armas e cuidar somente da conservação da pessoa do príncipe. Todos aprovaram o conselho e se puseram a executá-lo. Joiada então abriu o depósito de armas que Davi construíra no Templo, distribuiu tudo o que lá encontrou aos sacerdotes e aos levitas e colocou-os ao redor do Templo, tão próximos uns dos outros que poderiam dar-se as mãos e impedir a entrada de outras pessoas. Levaram em seguida o jovem rei e o coroaram. Joiada consagrou-o com óleo santo, e todos os assistentes, batendo palmas em sinal de alegria, exclamaram: "Viva o rei!" 388. Atalia ficou não menos surpresa que perturbada com essa notícia e saiu do palácio acompanhada pelos seus guardas. Os sacerdotes deixaram-na entrar no Templo, mas os que haviam sido colocados ao redor dele repeliram os guardas e o resto do séquito. Quando a altiva princesa viu o jovem príncipe sentado no trono e com a coroa na cabeça, rasgou as próprias vestes e ordenou que matassem aquela criança, da qual se estavam servindo para organizar uma revolta contra ela e usurpar o reino. )oiada, em oposição, ordenou aos oficiais de que falamos que a agarrassem e a levassem à torrente de Cedrom, para que lá recebesse o castigo merecido, pois não se deveria macular o Templo com o sangue de tão detestável pessoa. Acrescentou que matassem também imediatamente qualquer um que se pusesse a defendê-la. Executou-se em seguida a ordem: quando ela estava fora da porta, por onde saíam as cavalgaduras do rei, mataram-na. 389. Depois de tão grande mudança, Joiada mandou reunir no Templo todos os que estavam armados, bem como o povo, e os fez jurar que serviriam fielmente o novo rei, velariam pela sua conservação e trabalhariam pelo progresso do reino. Obrigou Joás a prometer, de sua parte, também com juramento, que prestaria a Deus a honra que lhe era devida e jamais violaria as leis outorgadas por Moisés. Todos correram em seguida ao templo de Baal, que Atalia e seu marido, o rei jeorão, haviam feito construir para agradar ao rei Acabe, em detrimento do Deus verdadeiro e Todo-poderoso, e o derrubaram, arrasando-o completamente. Mataram ainda Mata, que nele era o sacerdote. Joiada, segundo a determinação do rei Davi, entregou a guarda do Templo aos sacerdotes e aos levitas, determinando que duas vezes por dia oferecessem a Deus sacrifícios solenes, como a Lei o mandava, acompanhados de incensação, e escolhessem algum dos levitas para guardar as portas do Templo, para só deixarem entrar quem estivesse purificado. Depois que o sumo sacerdote assim dispôs todas as coisas, levou do Templo para o palácio real o jovem príncipe, acompanhado por aquela grande multidão. Puseram-no sobre o trono. As aclamações de júbilo renovaram-se, e, como não havia ninguém que não se julgasse feliz, porque a morte de Atalia lhes causava grande tranqüilidade, toda a cidade de Jerusalém passou vários dias em festas e banquetes. O jovem rei, cuja mãe se chamava Zíbia, era da cidade de Berseba e tinha então, como já dissemos, apenas sete anos. Foi muito religioso e zeloso das leis de Deus durante o tempo em que Joiada viveu e desposou, por conselho deste, duas mulheres, das quais teve filhos e filhas. CAPÍTULO 8 MORTE DEJEÚ, REI DE ISRAEL. JEOACAZ, SEU FILHO, SUCEDE-O. JOÁS, REI DE JUDÁ, RESTAURA O TEMPLO EM JERUSALÉM. MORTE DE JOIADA, SUMO SACERDOTE. JOÁS ESQUECE-SE DE DEUS E ENTREGA-SE A TODA ESPÉCIE DE IMPIEDADE. MANDA APEDREJAR ZACARIAS, SUMO SACERDOTE E FILHO DE JOIADA, QUE O REPREENDIA. HAZAEL, REI DA SÍRIA, CERCA JERUSALÉM. JOÁS ENTREGA-LHE TODOS OS SEUS TESOUROS PARA FAZÊ-LO LEVANTAR O CERCO. É MORTO PELOS AMIGOS DE ZACARIAS. 390. Hazael, rei da Síria, fez guerra a Jeú, rei de Israel, e devastou todo o país que as tribos de Rúben, Gade e metade da de Manasses ocupavam, além do Jordão. Sem que jeú pensasse em impedi-lo, saqueou também as cidades de Gileade e de Basã, incendiou tudo e não poupou nenhum dos que lhe caíram nas mãos. Esse infeliz rei de Israel, cujo zelo aparente havia sido mera hipocrisia, desprezou as leis de Deus por um orgulho sacrílego. Reinou vinte e oito anos e jeoacaz, seu filho, sucedeu-o. 391. 2 Reis 12; 2 Crônicas 24. Como a conservação do Templo fora inteiramente negligenciada sob o reinado de Jeorão, de Acazias e de Atalia, Joás, rei de judá, resolveu restaurá-lo e ordenou a joiada que enviasse levitas a todo o reino para obrigar os súditos a contribuir cada qual com meio sido de prata. Joiada julgou que o povo não daria de boa mente essa contribuição e assim não cumpriu a ordem. Joás, no vigésimo terceiro ano de seu reinado, declarou-lhe que o considerava malvado e ordenou-lhe que fosse mais cuidadoso no futuro e provesse a restauração do Templo. O sumo sacerdote então imaginou um meio de obrigar o povo a contribuir de boa vontade. Mandou fazer um cofre de madeira, bem fechado, com uma abertura por cima, como uma fenda, que foi posto no Templo, junto do altar. Cada um, segundo a sua devoção, deveria depositar ali uma contribuição para a restauração do Templo. Essa maneira de pedir a restauração foi agradável ao povo, que se acotovelava, à porfia, para nele depositar ouro e prata. O sacerdote e o secretário encarregado da guarda do tesouro do Templo esvaziavam todos os dias o cofre na presença do rei e, depois de contar e anotar a soma que lá havia, tornavam a colocá-lo no lugar. Quando já havia dinheiro suficiente, o sumo sacerdote e o rei mandaram vir os operários e o material necessário. Terminada a obra, empregaram o restante do ouro e da prata, que era em grande quantidade, para fazer as taças, os copos e outros vasos próprios para o serviço divino. Não se passava um dia em que não se oferecesse a Deus um grande número de sacrifícios. Observou-se essa praxe com rigor durante todo o tempo em que o sumo sacerdote viveu. Ele morreu na idade de cento e trinta anos, e o sepultaram no túmulo dos reis, tanto por causa de sua rara probidade quanto por haver ele conservado a coroa na família de Davi. Logo o rei Joás e, à sua imitação, os principais do país se esqueceram de Deus. Entregaram-se a toda sorte de impiedade e pareciam ter prazer em calcar aos pés a religião e a justiça. Deus repreendeu-os severamente, por meio dos profetas, que lhes mostraram o quanto Ele estava irritado contra eles. Mas eles estavam tão empedernidos no pecado que nem as ameaças nem o exemplo dos horríveis castigos que seus antepassados haviam sofrido por caírem nos mesmos crimes os trouxeram de volta ao cumprimento do dever. Tanto cresceu o seu frenesi que Joás, esquecendo os favores que devia a Joiada, mandou apedrejar Zacarias no próprio Templo pelo fato de este, por inspiração divina, havê-lo exortado na presença de todo o povo a agir com justiça no futuro e por ameaçá-lo com grandes castigos, caso continuasse no pecado. Zacarias era filho de joiada e lhe sucedera no cargo de sumo sacerdote. Esse santo homem, ao morrer, tomou a Deus por testemunha de como o príncipe, em recompensa ao salutar serviço que lhe prestava e também pelo trabalho de seu pai, fora injusto e cruel a ponto de fazê-lo morrer daquele modo. 392. Deus não tardou muito tempo em castigar esse tão grande crime. Hazael, rei da Síria, entrou com um grande exército no reino de Joás. Ele tomou, saqueou e destruiu a cidade de Gate e sitiou Jerusalém. Joás foi tomado de tal medo que, para se ver livre desse grande perigo, lhe entregou todos os tesouros do Templo, bem como os dos reis seus predecessores, e todos os presentes oferecidos a Deus pelo povo. Isso contentou a ambição daquele soberano, que levantou o cerco e retirou-se. Mas Joás não pôde evitar o castigo que merecia. Foi vítima de uma grave enfermidade, e os amigos de Zacarias o mataram no leito, para vingar a morte do amigo e do filho de um homem cuja memória era tida em tão grande veneração. O mau príncipe tinha então quarenta e sete anos. Enterraram-no em Jerusalém, porém não no sepulcro dos reis, porque não foi julgado digno disso. CAPÍTULO 9 AMAZIAS SUCEDE A JOÁS, SEU PAI, NO REINO DE JUDÁ.JEOACAZ, REI DE ISRAEL, QUASE DOMINADO POR HAZAEL, REI DA SÍRIA, RECORRE A DEUS, E ELE O AJUDA.JEOÁS, SEU FILHO, SUCEDE-O. MORTE DO PROFETA ELISEU, QUE PREDIZ A VITÓRIA DEJEOÁS SOBRE OS SÍRIOS. O CORPO DO PROFETA RESSUSCITA UM MORTO. MORTE DE HAZAEL, REI DA SÍRIA. HADADE, SEU FILHO, SUCEDE-O. 393. 2 Reis 14; 2 Crônicas 25. Amazias sucedeu a Joás, seu pai, no reino de Judá. No reino de Israel, Jeoacaz já havia sucedido a Jeú, seu pai, no vigésimo primeiro ano do reinado de Joás. Jeoacaz reinou dezessete anos e não somente se assemelhou ao pai, mas também aos primeiros reis de Israel que tão abertamente haviam desprezado a Deus. E, embora tivesse grande poder, Hazael, rei da Síria, obteve tão grandes vantagens sobre ele, tomou-lhe tantas praças-fortes e fez tão grande mortandade entre os seus soldados que lhe restavam somente dez mil homens de infantaria e quinhentos cavaleiros. Realizava-se o que vatici-nara o profeta Eliseu a Hazael, quando garantiu que este reinaria na Síria e em Damasco, depois de matar o rei Hadade. Jeoacaz, estando reduzido a tal extremo, recorreu a Deus, rogando-lhe que o protegesse e não permitisse que ele caísse sob o domínio de Hazael. O soberano Senhor do Universo fez então ver que Ele não somente concede os seus favores aos justos, mas também aos que se arrependem de tê-lo ofendido, e que, em vez de destruí-los, como eles merecem — e Ele bem pode fazê-lo —, se contenta em castigá-los. Ele escutou favoravelmente esse príncipe e restituiu a paz ao seu país, fazendo-o reconquistar a primitiva felicidade. 394. 2 Reis 13. Depois da morte de Jeoacaz, Jeoás, seu filho, sucedeu-o no reino de Israel, no trigésimo sétimo ano do reinado de Joás, rei de Judá, e reinou dezesseis anos. Não se pareceu com Jeoacaz, seu pai, mas foi um homem de bem. O profeta Eliseu, que então estava muito avançado em anos, caiu gravemente enfermo. Jeoás foi visitá-lo e, vendo-o prestes a exalar o último suspiro, começou a chorar e a lastimá-lo, dizendo que o profeta era o seu pai, o seu protetor e todo o seu amparo e que enquanto ele viveu não tivera necessidade de recorrer às armas para vencer os inimigos, porque sempre os sobrepujara sem combater, graças ao auxílio de suas profecias e orações. Mas agora que ele ia deixar o mundo ficava desarmado e sem defesa, exposto ao furor dos sírios e dos outros povos que lhe eram contrários. Assim, ser-lhe-ia muito mais vantajoso morrer com ele que ficar com vida, porém abandonado e sem o seu auxílio. O profeta ficou tão comovido com essas queixas que, depois de o consolar, ordenou que lhe trouxessem um arco e flechas e disse em seguida ao príncipe que entesasse o arco e atirasse as flechas. Jeoás atirou apenas três, e então o profeta lhe disse: "Se tivésseis atirado mais, teríeis destruído toda a Síria. Como, porém, vos contentastes em atirar somente três, vencereis os sírios somente em três combates e reconquistareis somente as cidades que eles tiraram de vossos antecessores". Eliseu, pouco depois de assim falar, morreu. Era um homem de eminente virtude e visivelmente ajudado por Deus. Viram-se os efeitos maravilhosos e quase incríveis de suas profecias, e a sua memória ainda hoje é tida em grande veneração por todos os hebreus. Fizeram-lhe um magnífico túmulo, como merece uma pessoa a quem Deus cumula de tantas graças. Aconteceu que alguns ladrões, depois de matarem um homem, lançaram-no nesse túmulo. E o cadáver, apenas por tocar o corpo do profeta, voltou à vida, ressuscitado, o que nos mostra que não somente durante a vida, mas também depois da morte, ele havia recebido de Deus o poder de fazer milagres. 395. Morreu Hazael, rei da Síria, e Hadade, seu filho, sucedeu-o. Jeoás, rei de Israel, venceu-o em três batalhas e reconquistou as cidades que Hazael, seu pai, havia tirado aos israelitas, como predissera o profeta Eliseu. jeoás, morrendo também, foi substituído por seu filho jeroboão II no trono do reino de Israel. CAPÍTULO 10 AMAZIAS, REI DEJUDÁ, AJUDADO POR DEUS, DERROTA OS AMALEQUITAS, OS IDUMEUS E OS GABALITANOS. ESQUECE-SE DE DEUS E OFERECE SACRIFÍCIOS AOS ÍDOLOS. COMO CASTIGO PELO SEU PECADO, É VENCIDO E FEITO PRISIONEIRO POR JEOÁS, REI DE ISRAEL, A QUEM É OBRIGADO A ENTREGAR JERUSALÉM. É ASSASSINADO PELOS SEUS PARTIDÁRIOS. UZIAS, SEU FILHO, SUCEDE-O. 396. No segundo ano do reinado de Jeoás, rei de Israel, Amazias, rei de Judá, cuja mãe, Jeoadã, era de Jerusalém, sucedeu-o, como dissemos, no reino de seu pai. Embora fosse ainda muito jovem, manifestou extremo amor pela justiça. Começou o seu reinado vingando a morte de seu pai e não perdoou aos que, declarando-se amigos dele, o haviam tão cruelmente assassinado. Porém não causou mal algum aos seus filhos, porque a Lei proíbe castigar os filhos pelos pecados dos pais. Resolveu fazer guerra aos amalequitas, aos idumeus e aos gabalitanos e recrutou para esse fim, em seus territórios, trezentos mil homens, os mais jovens com cerca de vinte anos. Deu-lhes chefes e mandou cem talentos de ouro a jeoás, rei de Israel, a fim de que o ajudasse com cem mil homens. 2 Reis 14; 2 Crônicas 25. Quando estava prestes a se pôr em campo com aquele grande exército, um profeta ordenou-lhe, da parte de Deus, que devolvesse os israelitas, porque eram ímpios, e certamente ele seria vencido caso se servisse deles. Ao passo que, com o auxílio de Deus, as suas próprias forças lhe seriam suficientes para derrotar os inimigos. Isso o surpreendeu e deixou-o aborrecido, porque já entregara o dinheiro combinado para a manutenção da tropa. O profeta, contudo, exortou-o a obedecer à ordem de Deus, que podia compensá-lo generosamente por aquela perda. Ele obedeceu e devolveu os cem mil homens sem exigir a devolução do dinheiro. Marchou contra os inimigos, venceu-os num grande combate, matou dez mil no campo e fez um número igual de prisioneiros, aos quais mandou levar para um lugar denominado A Grande Rocha, perto da Arábia, de onde mandou lançar todos abaixo. Conseguiu também ricos despojos. Nesse mesmo tempo, todavia, os israelitas que ele havia despedido, julgando-se ofendidos, devastaram-lhe o país até Bete-Semes, levaram um grande número de cabeças de gado e mataram três mil habitantes dessa cidade. 397. Amazias, orgulhoso com o êxito de suas armas, esqueceu-se de que tudo devia a Deus e, por uma ingratidão sacrílega, em vez de lhe referir toda a glória, abandonou o seu divino culto para adorar as falsas divindades dos amalequitas. O profeta veio falar com ele e disse que muito se admirava de vê-lo agora ter em boa conta e adorar como verdadeiros os deuses que não haviam sido capazes de defender contra ele os seus próprios adoradores nem de impedir que matasse um grande número deles e aprisionasse também uma grande quantidade e levasse escravos outros ainda, com os seus ídolos, a Jerusalém, juntamente com os despojos. Essas palavras encolerizaram Amazias de tal modo que ele ameaçou matar o profeta, caso este se atrevesse a continuar falando daquele modo. Ele respondeu que ficaria quieto, mas Deus não deixaria de castigá-lo como ele merecia. O orgulho de Amazias crescia cada vez mais, e ele sentia prazer em ofender a Deus, em vez de reconhecer que toda a sua felicidade vinha dEle e de dar-lhe graças. Ele escreveu pouco depois a Jeoás, rei de Israel, ordenando-lhe que o obedecesse com todo o seu povo, assim como as dez tribos que ele governava haviam obedecido a Salomão e a Davi, seus antepassados. E, se não o fizesse voluntariamente, que se preparasse para a guerra, pois ele a declararia e resolveria a questão pelas armas. Jeoás respondeu-lhe nestes termos: "O rei Jeoás ao rei Amazias. Havia antigamente no monte Líbano um cipreste muito grande e um cardo. O cardo mandou pedir ao cipreste a filha deste em casamento para o seu filho, mas ao mesmo tempo que lhe fazia esse pedido uma fera veio sobre ele e o esmagou. Servi-vos deste exemplo, para que não empreendais coisa alguma acima de vossas forças e não vos orgulheis demasiado por causa da vitória que conquistastes contra os amalequitas, pondo-vos em risco de vos perderdes com todo o vosso reino". Amazias, irritadíssimo com essa carta, preparou-se para a guerra, e Deus a ela o impelia, sem dúvida para fazer cair sobre ele a sua vingança. Quando os exércitos se enfrentaram e enquanto a luta se preparava, o exército de Amazias viu-se de repente tomado de grande terror, enviado por Deus, por Ele não lhes ser favorável, de modo que fugiram incontinenti, mesmo antes de travarem combate, abandonando Amazias à mercê do inimigo. Jeoás, tendo-o em seu poder, disse-lhe que não podia evitar a morte senão abrindo a ele e a todo o seu exército as portas de Jerusalém. O desejo de salvar a própria vida fez com que ele persuadisse os habitantes da cidade a aceitar aquela condição. Jeoás, depois de abater quatrocentos côvados das muralhas da cidade, entrou triunfante sobre o seu carro na capital do reino, seguido por todo o seu exército, tendo Amazias perto de si como prisioneiro. Ele carregou todos os tesouros que estavam no Templo e todo o ouro e toda a prata que encontrou no palácio do rei. Deu liberdade a Amazias e voltou a Samaria. Isso aconteceu no décimo quarto ano do reinado de Amazias. Vários anos depois, esse infeliz príncipe, vendo que os próprios amigos tramavam contra ele, fugiu para a cidade de Laquis. Mas isso não o salvou. Eles o perseguiram e o mataram, levando o seu corpo a Jerusalém, onde foi enterrado com as cerimônias ordinárias das homenagens aos reis. Eis de que modo terminou miseravelmente os seus dias, no vigésimo ano de seu reinado, que foi o qüinquagesimo quarto de sua vida, castigado como merecia por haver desprezado a Deus e abandonado a verdadeira religião para adorar os ídolos. Uzias, seu filho, sucedeu-o. CAPITULO 11 O PROFETA JONAS PREDIZ A JEROBOÃO II, REI DE ISRAEL, QUE ELE VENCERÁ OS SÍRIOS. HISTÓRIA DESSE PROFETA, ENFIADO POR DEUS A NÍNIVE PARA PREDIZER A RUÍNA DO IMPÉRIO DA ASSÍRIA. MORTE DEFEROBOÃO II. ZACARIAS, SEU FILHO, SUCEDE-O. EXCELENTES QUALIDADES DE UZIAS, REI DE JUDÁ, QUE FAZ GRANDES CONQUISTAS E FORTIFICA JERUSALÉM. SUA PROSPERIDADE O FAZ ESQUECER DE DEUS. DEUS O CASTIGA DE MANEIRA TERRÍVEL. JORÃO, SEU FILHO, SUCEDE-O. SALUM ASSASSINA ZACARIAS, REI DE ISRAEL, E USURPA A COROA. MENAÉM MATA SALUM E REINA DEZ ANOS. PECAÍAS, SEU FILHO, SUCEDE-O. PECA ASSASSINA-O E REINA EM SEU LUGAR. TIGLATE-PILESER, REI DA ASSÍRIA, FAZ-LHE CRUEL GUERRA. VIRTUDES DEFOTÃO, REI DEFUDÁ. O PROFETA NAUM PREDIZ A DESTRUIÇÃO DO IMPÉRIO ASSÍRIO. 398. 2 Reis 14. No décimo quinto ano do reinado de Amazias, rei de Judá, Jeroboão II sucedeu a Jeoás, seu pai, no reino de Israel e durante os quarenta anos em que ele reinou sempre teve, tal como os seus predecessores, sua residência em Samaria. Nada se poderia acrescentar à impiedade desse soberano e à sua inclinação para a idolatria, que o levou a fazer coisas extravagantes, atraindo sobre o seu povo males infinitos. O profeta Jonas predisse-lhe que ele venceria os sírios e levaria os limites do reino até a cidade de Hamate, do lado norte, e até o lago Asfaltite, do lado sul, que eram os antigos limites da terra de Canaã, fixados por Josué. Jeroboão II, animado por essa profecia, declarou guerra aos sírios e conquistou todo o país, conforme Jonas havia predito, do qual se tornaria senhor. Como prometi narrar sincera e fielmente tudo o que está escrito nos Livros Santos, não devo passar em silêncio o que eles referem acerca desse profeta. Deus ordenou a Jonas que fosse anunciar aos habitantes de Nínive, grande e poderosa cidade, que o império da Assíria, de que era a capital, seria destruído. Essa ordem pareceu-lhe perigosa a ponto de ele decidir não a executar. Como se pudesse esconder-se dos olhos de Deus, ele embarcou em Jope, a fim de fugir para a Cilícia. Porém se levantou uma tão grande tempestade que o piloto do barco e os marinheiros, vendo-se em perigo de naufragar, faziam votos pela sua salvação. Jonas era o único que, retirado a um canto e coberto com a sua capa, não imitava o exemplo deles. A tempestade crescia cada vez mais, e eles imaginaram logo que alguém dentre eles atraíra aquela infelicidade. Para saber quem era, tiraram a sorte, e ela caiu sobre o profeta. Perguntaram-lhe quem ele era e que motivos o levavam a empreender aquela viagem. Ele respondeu que era hebreu e profeta do Deus Todo-poderoso, e, se queriam evitar o perigo de que estavam ameaçados, teriam de lançá-lo ao mar, porque era o único culpado. De início, não quiseram fazê-lo, pois julgavam desumanidade atirá-lo às águas, expondo assim a uma morte certa um estrangeiro que lhes havia confiado a vida. Quando se viram prestes a morrer, todavia, o desejo de salvar as próprias vidas e a insistência do profeta fizeram-nos decidir lançá-lo ao mar. No mesmo instante, a tempestade cessou. Diz-se que um grande peixe o engoliu e, depois de ele ter passado três dias em seu ventre, ele o restituiu vivo e sem ferimento algum à praia do Ponto Euxino, de onde ele partiu para Nínive, depois de pedir perdão a Deus, e anunciou ao povo que eles perderiam bem depressa o império da Ásia. 399. 2 Reis 14 e 15. Voltemos agora a jeroboão II, rei de Israel. Ele morreu depois de reinar feliz durante quarenta anos, e foi enterrado em Samaria. Zacarias, seu filho, sucedeu-o. Uzias, do mesmo modo, no quarto ano do reinado de Jeroboão II, sucedeu a Amazias no reino de Judá. Nasceu este de Jecolias, mulher de Amazias. Ela era de Jerusalém. 400. 2 Crônicas 26. O rei Urias tinha tanta bondade e amor pela justiça e era tão corajoso e previdente que essas excelentes qualidades, unidas, levaram-no a realizar grandes empreendimentos. Venceu os filisteus e tomou-lhes muitas cidades, entre as quais Gate e Jabné, da qual abateu as muralhas. Atacou os árabes, vizinhos do Egito, e construiu uma cidade perto do mar Vermelho, onde deixou uma forte guarnição. Ele também subjugou os amonitas, tornando-os tributários. Reduziu ao seu domínio todos os países que se estendem até o Egito e empregou em seguida todo o seu cuidado na restauração e fortificação de Jerusalém. Mandou consertar e refazer as muralhas, que estavam em muito mau estado, pela incúria de seus predecessores, inclusive aquele espaço de quatrocentos côvados que Jeoás, rei de Israel, mandara derrubar ao entrar triunfante na cidade, após aprisionar o rei Amazias. Mandou também reedificar várias torres com altura de cento e cinqüenta côvados e construiu fortificações nos lugares mais afastados da cidade. Fez ainda vários aquedutos. Ele criava um número enorme de cavalos e de gado, porque a região é rica em pastagens. Como amava muito a agricultura, mandou plantar uma grande quantidade de árvores frutíferas e toda espécie de plantas. Mantinha trezentos e setenta mil soldados, todos escolhidos, armados com espadas, arcos, fundas, escudos e couraças de bronze, distribuídos em regimentos e comandados por dois mil bons oficiais. Mandou também fazer uma grande quantidade de máquinas de atirar pedras e dardos, grandes ganchos e instrumentos semelhantes, próprios para os ataques e as guerras. O orgulho de tão grande prosperidade envenenou o Espírito do soberano e corrompeu-o de tal modo que esse poder passageiro e temporal o fez desprezar o poder eterno e subsistente de Deus. Não observou mais as suas santas leis e, em vez de continuar a praticar a virtude, procedeu à imitação do pai na impiedade, entregando-se ao crime. Assim os seus felizes empreendimentos e a glória de tantas ações beneméritas só serviram para destruí-lo e para fazer ver o quanto é difícil aos homens conservar a moderação na prosperidade. No dia de uma festa solene, ele revestiu-se dos paramentos sacerdotais e entrou no Templo para oferecer a Deus as incensações no altar de ouro. O sumo sacerdote Azarias, acompanhado por oitenta sacerdotes, correu e disse-lhe que aquilo não era permitido. Proibiu-lhe passar além e ordenou que saísse, para não irritar a Deus com aquele incrível sacrilégio. Uzias ficou de tal modo encolerizado que o ameaçou de morte, bem como a todos os outros sacerdotes, se não permitisse que ele fizesse o que desejava. Mal pronunciou essas palavras, sentiu-se um terrível tremor de terra. O alto do Templo abriu-se, e um raio de sol feriu o ímpio rei no rosto. No mesmo instante, ele ficou coberto de lepra. O mesmo tremor de terra dividiu também em dois, num lugar próximo da cidade, de nome Eroge, o monte que está voltado para o ocidente, do qual uma metade foi levada a quatro estádios dali contra outro monte, que está voltado para o levante, o que barrou toda a estrada principal e cobriu de terra os jardins do rei. Os sacerdotes, vendo o rei coberto de lepra, imaginaram facilmente a causa. Disseram que aquele castigo era um sinal visível da justiça de Deus e ordenaram que ele saísse da cidade. A sua extrema confusão tirou-lhe a ousadia de resistir, e ele obedeceu. Assim, foi castigado pela sua impiedade para com Deus e pela temeridade que o levara a se elevar acima da sua condição humana. Ele passou algum tempo fora da cidade, onde viveu como um homem qualquer, enquanto Jotão, seu filho, dirigia os destinos da nação. Urias morreu de desgosto por ver-se reduzido àquele estado. Tinha sessenta e oito anos, dos quais reinara cinqüenta e dois. Foi enterrado em seus jardins, em um sepulcro separado, e Jotão sucedeu-o. 401. 2 Reis 15. Quanto a Zacarias, rei de Israel, ele reinava havia apenas seis meses, quando Salum, filho de jabes, assassinou-o e usurpou o trono. Mas Salum desfrutou somente um mês do governo que tão grande crime lhe outorgara. Menaém, general do exército, que então estava na cidade de Tirza, marchou com todas as suas forças para Samaria, combateu-o, venceu-o e o matou. Por sua conta, pôs a coroa na própria cabeça e voltou a Tirza com o exército vitorioso. Os seus habitantes, porém, não quiseram reconhecê-lo e fecharam-lhe as portas. Então ele devastou toda a área, tomou a cidade à força e matou todos os seus habitantes, não poupando nem mesmo as crianças. Desse modo, foi cruel contra a sua própria nação, tanto que não se teria coragem de agir assim nem mesmo para com os bárbaros. E ele não procedeu com maior humanidade durante os dez anos de seu reinado em Israel. Pul, rei da Assíria, declarou-lhe guerra, e ele, não se sentindo bastante forte para resistir, deu-lhe mil talentos de dinheiro para conservar a paz. Exigiu em seguida a mesma quantia do povo, por uma imposição de cinqüenta dracmas por cabeça. Morreu logo depois, e foi enterrado em Samaria. Pecaías, seu filho, sucedeu-o e não herdou menos a sua crueldade que o trono, porém reinou somente dois anos. Peca, filho de Remalias, chefe de campo de um regimento de mil homens, matou-o à traição num banquete com vários outros de seus familiares. Ele apoderou-se do trono e reinou vinte anos, sem que se possa dizer se ele era mais ímpio ou mais injusto. Tiglate-Pileser, rei da Assíria, fez-lhe guerra, apoderou-se de toda a área de Gileade, de toda a região que está além do Jordão e daquela parte da Galiléia próxima de Quedes e de Hazor, aprisionou todos os habitantes e levou-os escravos para o seu reino. 402. 2 Crônicas 27. jotão, filho de Uzias, rei de Judá, e de )erusa, que era de Jerusalém, reinava nessa época. Nenhuma virtude faltava a esse príncipe, pois ele foi tanto religioso para com Deus quanto justo para com os homens. Tomou grande cuidado em restaurar e embelezar essa grande cidade. Mandou refazer o átrio e as portas do Templo e reerguer uma parte das muralhas, que havia caído. A isso acrescentou torres grande e fortes e eliminou todas as desordens do reino. Venceu os amonitas, impôs-lhes um tributo de cem talentos, dez mil medidas de trigo e outras tantas de cevada por ano. Aumentou de tal modo a extensão e a força do país que ele era não menos temido por seus inimigos quanto amado pelo seu povo. 403. Durante o seu reinado, um profeta, de nome Naum, predisse a ruína do império da Assíria e a destruição de Nínive, nestes termos: "Tal como às vezes as águas de um grande reservatório são agitadas pelo vento, assim se verá igualmente todo o povo de Nínive agitado e perturbado pelo temor, e a sua hesitação será tão grande que num mesmo tempo dirão uns aos outros: Fujamos! Outros dirão: Não! Fiquemos para apanhar o nosso ouro e a nossa prata. Mas nenhum deles seguirá esse conselho, porque eles preferirão salvar a vida, e não os seus bens. Assim, só se ouvirão entre eles gritos e lamentações. O seu terror será tão grande que muito mal sobreviverão, e as suas cidades ficarão irreconhecíveis. Para onde irão então os leões e as mães dos leõezinhos? Nínive, diz o Senhor, eu te exterminarei, e não se verão mais sair de ti os leões aue assustavam o mundo". O profeta acrescentou várias outras coisas semelhantes com relação a essa poderosa cidade, as quais não refiro para não aborrecer os leitores. Cento e quinze anos depois, constatou-se a veracidade dessa profecia. CAPÍTULO 12 MORTE DEJOTÃO, REI DEJUDÁ. ACAZ, SEU FILHO, QUE ERA MUITO ÍMPIO, SUCEDE-O. REZIM, REI DA SÍRIA, E PECA, REI DE ISRAEL, FAZEM-LHE GUERRA. ESSES REIS SE SEPARAM. PECA É VENCEDOR, EM UMA BATALHA SANGRENTA. O PROFETA OBEDE LEVA OS ISRAELITAS A RESTITUIR OS PRISIONEIROS. 404. 2 Reis 18; 2 Crônicas 28. Jotão, rei de Judá, morreu na idade de quarenta e um anos, depois de reinar dezesseis, e foi enterrado no sepulcro dos reis. Acaz, seu filho, sucedeu-o. Esse soberano foi muito ímpio: calcou aos pés as leis de Deus e imitou os reis de Israel em suas abominações. Ergueu em Jerusalém altares sobre os quais sacrificou aos ídolos, chegando a oferecer o próprio filho em holocausto, segundo o costume dos cananeus, e cometeu vários outros crimes detestáveis. Rezim, rei da Síria e de Damasco, e Peca, rei de Israel, que já era inimigo de Acaz, declararam-lhe guerra e o sitiaram em Jerusalém. Mas a cidade estava tão fortemente defendida que eles foram obrigados a levantar o cerco. Rezim tomou em seguida a cidade de Elá, situada à beira do mar Vermelho. Mandou matar todos os seus habitantes e lá estabeleceu uma colônia síria. Tomou também várias outras cidades fortes, matou um grande número de judeus e, carregado de des-pojos, voltou a Damasco com o seu exército. Quando Acaz viu que os sírios se retiravam, julgou não ser mais fraco que o rei de Israel sozinho e assim marchou contra ele. Eles travaram uma batalha na qual Deus, para castigar Acaz pelos seus crimes, permitiu que este fosse vencido, com uma perda de cento e vinte mil homens e de Maaséias, seu filho, morto por Zicri, general do exército de Peca, que matou também Azricão, comandante da guarda, e aprisionou Elcana, general do exército. O rei de Israel levou também um grande número de escravos, de ambos os sexos. Quando os israelitas voltavam triunfantes e carregados de despojos para Samaria, o profeta Obede veio à presença deles e disse-lhes que eles não deviam atribuir a vitória às próprias forças, mas à cólera de Deus contra Acaz. Censurou-os acremente porque, não se contentando com a sua felicidade, atreviam-se a levar tantos prisioneiros que, sendo pessoas da tribo de Judá e de Benjamim, tinham a sua origem no mesmo sangue que eles. Disse-lhes ainda que, se eles não os pusessem em liberdade, Deus os castigaria severamente. Os israelitas reuniram-se em conselho, e Berequias, homem de grande autoridade entre eles, e três outros com ele disseram que não tolerariam que aqueles prisioneiros entrassem em suas cidades, para não atrair sobre eles a cólera e a vingança de Deus, e que eles já haviam cometido muitos outros pecados, de que os profetas os haviam recriminado, não sendo necessário acrescentar novas im-piedades. Os soldados, comovidos por essas palavras, dispuseram-se a fazer o que eles julgassem melhor e mais conveniente. Então esses quatro homens tão sábios retiraram as cadeias dos prisioneiros, cuidaram deles, deram-lhes os meios para regressar e os acompanharam não somente até jerico, mas até próximo de Jerusalém. CAPÍTULO 13 ACAZ, REI DE JUDÁ, PEDE AUXÍLIO A TIGLATE-PILESER, REI DA ASSÍRIA, QUE DEVASTA A SÍRIA, MATA REZIM, REI DE DAMASCO, E TOMA A CIDADE. HORRÍVEL IMPIEDADE DE ACAZ. SUA MORTE. EZEQUIAS, SEU FILHO, SUCEDE-O. PECA, REI DE ISRAEL, É ASSASSINADO POR OSÉIAS, QUE USURPA O TRONO, MAS É VENCIDO POR SALMANESER, REI DA ASSÍRIA. EZEQUIAS RESTAURA INTEIRAMENTE O CULTO A DEUS, VENCE OS FILISTEUS E DESPREZA AS AMEAÇAS DO REI DA ASSÍRIA. 405. 2 Reis 16 e 17. Depois de tão grande perda, Acaz, rei de Judá, enviou embaixadores com ricos presentes a Tiglate-Pileser, rei da Assíria, para pedir-lhe socorro contra os israelitas, os sírios e os damasquinos, prometendo-lhe uma grande quantia de dinheiro. O soberano veio em pessoa com um poderoso exército, devastou toda a Síria, tomou a cidade de Damasco e matou Rezim, que era o seu rei. Mandou os habitantes para a Alta Média e fez vir no lugar deles os assírios. Marchou depois contra os israelitas e levou vários escravos. Acaz foi a Damasco agradecer-lhe e levou-lhe não somente todo o ouro e prata que havia em seus tesouros, mas também o que estava no Templo, sem excetuar os presentes que se haviam oferecido a Deus. Esse detestável príncipe tinha tão pouco juízo que, mesmo sendo os sírios seus inimigos declarados, não deixava de adorar os seus deuses, como se devesse pôr toda a sua esperança no auxílio deles. Quando ele viu, porém, que eles haviam sido derrotados pelos assírios, passou a adorar os deuses dos vencedores. Não havia falsa divindade que ele não estivesse pronto a reverenciar, no lugar do verdadeiro Deus, o Deus de seus pais, cuja cólera ele havia atraído sobre si e era a causa de todos os seus males. A sua impiedade chegou ao cúmulo de não se contentar em despojar o Templo de todos os seus tesouros, mas mandou mesmo fechá-lo, a fim de que lá não se pudesse adorar ao verdadeiro Deus com os sacrifícios solenes que se costumavam oferecer. E, depois de o haver irritado com tantos crimes, morreu na idade de trinta e seis anos, dos quais reinou dezesseis. Deixou Ezequias, seu filho, como sucessor. 406. Nesse mesmo tempo, Peca, rei de Israel, foi morto à traição por Oséias, um de seus mais fiéis servidores, que usurpou o reino e reinou nove anos. Oséias era um homem ímpio e muito mau. Salmaneser, rei da Assíria, fez-lhe guerra e não teve dificuldade em vencê-lo e impor-lhe um tributo, porque Deus lhe era adverso. 407. 2 Reis 18; 2 Crônicas 29, 30 e 31. No quarto ano do reinado do rei Oséias, Ezequias, filho de Acaz e de Abi, a qual era de Jerusalém, sucedeu-o no reino de judá, como já dissemos. Esse príncipe era um homem de bem, tão justo e religioso que desde o princípio do reinado julgou nada poder fazer de melhor para si e para os seus súditos que restaurar o culto a Deus. Reuniu para isso todo o povo, os sacerdotes e os levitas, e falou-lhes: "Não podeis ignorar os males que sofrestes por causa dos pecados do rei meu pai, desde que ele deixou de prestar a Deus a soberana honra que lhe é devida e pelos crimes que vos fez cometer, persuadindo-vos a adorar os falsos deuses que ele adorava. Assim, experimentastes os castigos que seguem à impiedade. Exorto-vos a renunciar a tudo isso, a purificar as vossas almas da sordidez que as desonra e a vos unirdes aos sacerdotes e aos levitas para abrirmos o Templo do Senhor, purificá-lo com solenes sacrifícios e restaurá-lo à sua primitiva magnificência, pois é o meio de aplacarmos a cólera de Deus e de torná-lo novamente favorável a nós". Depois de o rei haver falado, os sacerdotes abriram o Templo, purificaram-no, prepararam os vasos sagrados e puseram as ofertas sobre o altar, segundo o costume de seus antepassados. Ezequias ordenou em seguida que todo o povo de seu território viesse a Jerusalém, a fim de ali celebrar a festa dos Asmos, que fora abandonada havia muitos anos, pela impiedade dos reis seus predecessores. Seu zelo foi além: ele exortou os israelitas a abandonar as superstições e a voltar aos antigos e santos costumes, prestando a Deus o culto que lhe é devido. Prometeu recebê-los em Jerusalém se eles quisessem vir celebrar a festa com os compatriotas. Ele acrescentou que unicamente o desejo de vê-los felizes, e nenhum outro interesse particular, levava-o a convidá-los a aceitar um conselho tão salutar. Mas os israelitas não somente se recusaram a escutar propostas tão vantajosas, como também zombaram de seus embaixadores e os trataram do mesmo modo como aos profetas, que os exortavam a seguir um conselho tão sensato e prediziam os males que lhes sobreviriam se persistissem na impiedade. Sua loucura e sua raiva, porém, cresciam cada vez mais, e eles chegaram a matar esses profetas, juntando novos crimes aos antigos, até que Deus, para castigá-los, os entregou nas mãos dos inimigos, como diremos a seu tempo. Somente um grande número dos da tribo de Manasses, de Zebulom e de Issacar, comovido pelas palavras dos profetas, converteu-se, e eles foram a Jerusalém adorar a Deus. Depois que lá chegaram, o rei, acompanhado por todos os grandes e por todo o povo, subiu ao Templo, onde ofereceu por si mesmo sete touros, sete bodes e sete carneiros. Depois que ele e os nobres puseram as mãos sobre as cabeças das vítimas, os sacerdotes as mataram, e elas foram totalmente consumidas pelo fogo, como sendo oferecidas em holocausto. Os levitas, em torno deles, cantavam ao som de diversos instrumentos de música hinos de louvor a Deus, segundo o que Davi determinara. Os sacerdotes tocavam as trombetas, enquanto o rei e todo o povo prostravam-se de rosto em terra para adorar a Deus. O soberano sacrificou em seguida setenta bois, cem carneiros e duzentos cordeiros e deu ao povo seiscentos bois e quatro mil outros animais. E, depois que os sacerdotes terminaram todas as cerimônias, segundo o que a Lei determinava, desejou o rei comer com todo o povo e com ele dar graças a Deus. A festa dos Asmos aproximava-se, e eles começaram por celebrar a Páscoa e a oferecer a Deus durante sete dias outras vítimas. Além das que eram oferecidas pelo povo, o rei ofereceu dois mil touros e sete mil outros animais. Os nobres, para imitá-lo em sua liberalidade, deram também mil touros e mil e quarenta outros animais. Desde os tempos de Salomão não se via celebrar com tanta solenidade essa festa religiosa. Purificou-se em seguida Jerusalém e todo o país das abominações introduzidas pelo culto sacrílego aos ídolos. O rei desejou dar ele mesmo, do que lhe pertencia, as vítimas necessárias para se oferecer todos os dias os sacrifícios instituídos pela Lei. Determinou que o povo pagasse aos sacerdotes e aos levitas as décimas e as primícias dos frutos, a fim de que eles tivessem meios de se dedicar inteiramente ao serviço de Deus, e mandou construir para eles lugares apropriados para receber o que era dado às suas mulheres e filhos. Assim, a antiga ordem, no que se referia ao culto a Deus, foi completamente restabelecida. 408. Depois que esse sábio e religioso soberano realizou todas essas coisas, declarou guerra aos filisteus, venceu-os e tornou-se senhor de todas as cidades desde Gaza até Gate. O rei da Assíria ameaçou destruir-lhe o país se ele não pagasse o tributo que seu pai estava acostumado a pagar. Mas a confiança que a sua piedade o fazia ter em Deus e a fé que ele prestava às predições do profeta Isaías, que o instruía particularmente a respeito do que devia suceder, o fez desprezar essas ameaças. CAPÍTULO 14 SALMANESER, REI DA ASSÍRIA, TOMA SAMARIA, DESTRÓI INTEIRAMENTE O REINO DE ISRAEL, LEVA ESCRAVOS O REI OSÉIAS E TODO O POVO E MANDA UMA COLÔNIA DE CHUTEENSES HABITAR O REINO DE ISRAEL. 409. 2 Reis 17. Salmaneser, rei da Assíria, tendo sabido que Oséias, rei de Israel, enviara secretamente embaixadores ao rei do Egito para convidá-lo a tomar parte numa aliança contra ele, marchou com um grande exército para Samaria, no sétimo ano do reinado desse soberano. Depois de um cerco de três anos, apoderou-se da cidade, no nono ano do reinado desse príncipe e no sétimo ano do reinado de Ezequias, rei de Judá. Salmaneser aprisionou Oséias, destruiu inteiramente o reino de Israel e levou todo o povo como escravo para a Média e para a Pérsia. Mandou a Samaria e a todos os outros lugares do reino de Israel colônias de chuteenses, que são povos de uma província da Pérsia e têm esse nome por causa do rio Chute, ao longo do qual habitam. Foi assim que as dez tribos que compunham o reino de Israel foram expulsas de seu país, novecentos e quarenta e sete anos depois que os seus antepassados o haviam conquistado pela força das armas, após a saída do Egito, oitocentos anos depois da dominação de Josué e duzentos e quarenta anos, sete meses e sete dias depois que eles se revoltaram contra Roboão, neto de Davi, para tomar o partido de Jeroboão, seu súdito, reconhecendo-o como rei. Foi assim que aquele povo infeliz foi castigado por desprezar tanto a lei de Deus quanto a voz dos profetas, que tantas vezes haviam predito as desgraças em que eles cairiam se continuassem na impiedade. Jeroboão foi o seu ímpio e infeliz autor, quando, ao subir ao trono, levou o povo, pelo seu exemplo, à idolatria e atraiu contra si a cólera de Deus, que o castigou como merecia. O rei da Assíria fez então sentir o peso de suas armas à Síria e à Fenícia. Faz-se menção dele nos anais dos tírios porque ele lhes fez guerra durante o reinado de Eluleu, seu rei, como narra Menandro na história dos tírios, que foi traduzida para o grego. Eis como ele fala: "Eluleu reinou trinta e seis anos. E os giteenses revoltaram-se, e ele partiu contra eles com uma esquadra e os reduziu à sua obediência. O rei da Assíria enviou também um exército contra eles e apoderou-se de toda a Fenícia. Tendo feito a paz, voltou ao seu país. Pouco tempo depois, as cidades de Arcé, da antiga Tiro, e várias outras, quebraram o jugo dos tírios para se entregar ao rei da Assíria. Como os tírios eram os únicos que não se queriam submeter a ele, enviou contra eles sessenta navios, que os fenícios haviam equipado e nos quais havia oitocentos remadores. Os tírios foram com doze navios ao encontro dessa frota, dispersaram-na, fizeram quinhentos prisioneiros e granjearam reputação de valentes por essa vitória. O rei da Assíria regressou, mas deixou muitas tropas ao longo do rio e dos aquedu-tos, para impedir que os tírios pudessem tirar água, o que, havendo-se prolongado por cinco anos, obrigou-os a cavar poços". Encontramos isso nos anais dos tírios, que é relativo a Salmaneser, rei da Assíria. 410. Esses novos habitantes de Samaria, que se chamavam chuteenses, por razão que já explicamos, eram de cinco nações diferentes, tendo cada uma um deus particular, e eles continuaram a adorá-los, como faziam em seu país. Deus ficou tão irritado que lhes mandou uma terrível peste, para a qual não se encontrou remédio no país. Eles foram então avisados por um oráculo que adorassem ao Deus verdadeiro e Todo-poderoso, e Ele os livraria. Mandaram então pedir logo ao rei da Assíria que lhes mandasse alguns dos sacerdotes hebreus, que estavam prisioneiros. O soberano concordou, e eles os instruíram na lei de Deus, prestaram-lhe as honras devidas, e logo a peste cessou. Esses povos, a que os gregos chamam samaritanos, continuam ainda hoje na mesma religião. E mudam com relação a nós segundo a diversidade dos tempos. Pois, quando a nossa situação é boa, eles declaram que nos consideram irmãos, porque sendo uns e outros descendentes de José, temos a nossa origem num mesmo ramo. Quando a sorte nos é contrária, eles dizem que não nos conhecem e que não são obrigados a nos amar, pois, vindo nós de um país tão afastado para se estabelecer naquele em que eles habitam, nada têm de comum conosco. Mas é necessário deixarmos esse assunto para um outro momento, mais conveniente. Livro Décimo CAPÍTULO 1 SENAQUERIBE, REI DA ASSÍRIA, ENTRA COM UM GRANDE EXÉRCITO NO REINO DE JUDÁ, FALTANDO À PALAVRA AO REI EZEQUIAS, QUE LHE ENTREGARA UMA GRANDE SOMA DE DINHEIRO PARA OBRIGÁ-LO A SE RETIRAR. SENAQUERIBE VAI FAZER GUERRA NO EGITO E DEIXA RABSAQUÉ, SEU LUGAR-TENENTE, SITIAR FERUSALÉM. O PROFETA ISAÍAS GARANTE A EZEQUIAS O AUXÍLIO DE DEUS. SENAQUERIBE VOLTA DO EGITO SEM TER FEITO LÁ PROGRESSO ALGUM. 411. 2 Reis 18. No décimo quarto ano do reinado de Ezequias, rei de Judá, Senaqueribe, rei da Assíria, entrou no reino com um exército poderoso e, após tomar todas as outras cidades das tribos de judá e de Benjamim, marchou contra Jerusalém. Ezequias, por meio de embaixadores, ofereceu-se para cumprir quaisquer condições que o rei da Assíria lhe impusesse e para lhe servir como tributário. O soberano aceitou a oferta e prometeu com juramento retirar-se para o seu país sem qualquer ato hostil, contanto que lhe fossem pagos trinta talentos de ouro e trezentos talentos de prata. Ezequias, confiando na palavra de Senaqueribe, esvaziou todos os seus tesouros, a fim de poder enviar-lhe aquela soma, na esperança de ter paz. Senaqueribe, todavia, depois de receber o dinheiro, não manteve a palavra e, enquanto marchava em pessoa contra os egípcios e os etíopes, deixou Rabsaqué, seu lugar-tenente e general, com numerosas tropas, auxiliado pelos seus chefes principais, dois generais, de nome Tartã e Rabe-Saris, para continuar na Judéia a guerra que lá havia começado. Esse general aproximou-se de Jerusalém e mandou chamar Ezequias, a fim de conferenciarem. Mas o príncipe, desconfiando dele, contentou-se em mandar-lhe três servidores da maior confiança: Eliaquim, mordomo-mor do palácio, Sebna, secretário, e Joá, intendente dos registros. Disse Rabsaqué, em presença de todos os oficiais de seu exército: "Voltai a vosso amo e dizei-lhe que Senaqueribe, o grande rei, pergunta em quem ele confia para recusar receber o seu exército em Jerusalém. Se for no auxílio dos egípcios, é de se dizer que ele perdeu o juízo e que se parece com quem se apoia num caniço, o qual, em vez de sustentá-lo, quebrar-se-á, ferindo-lhe as mãos. Quanto ao mais, saiba ele que é por ordem de Deus que o rei empreendeu esta guerra, e assim, o resultado será como o daquela que fez aos israelitas, e ele se tornará do mesmo modo senhor desses dois reinos". Rabsaqué falava em hebreu, que conhecia muito bem. Eliaquim, temendo que os colegas se assustassem, pediu-lhe que falasse em siríaco. Rabsaqué, porém, deduzindo facilmente com que fim era feito aquele pedido, continuou a falar em hebreu: "Agora que não podeis ignorar a vontade do rei e quanto vos importa a ela vos submeterdes, por que demorais em nos receber em vossa cidade? Por que continua o vosso senhor, e vós com ele, a enganar o povo com vãs e loucas esperanças? Se vos julgais bastante fortes para nos poder resistir, mostrai-no-lo, opondo dois mil de vossos cavaleiros ao mesmo número que eu farei avançar de nosso exército. Mas como poderíeis fazê-lo, se não os tendes? E por que vos demorais em vos submeterdes àqueles aos quais não podeis resistir? Acaso ignorais a vantagem de fazer voluntariamente o que não é possível evitar e o grande perigo que é esperar ser a isso obrigado pela força?" 2 Reis 19, Essa resposta pôs o rei Ezequias em tal aflição que ele deixou as vestes reais para se revestir de um saco, segundo o costume de nossos pais. Prostrou-se com o rosto em terra e rogou a Deus que o ajudasse naquela contingência, em que não podia esperar outro socorro senão o dEle. Mandou alguns de seus principais oficiais e sacerdotes rogarem ao profeta Isaías que oferecesse a Deus sacrifícios e lhe pedisse para ter compaixão de seu povo e abater o orgulho que dava aos inimigos tão grandes esperanças. O profeta fez o que ele desejava e logo depois, por uma revelação de Deus, disse-lhe que nada temesse, garantindo que Deus confundiria de maneira estranha a ousadia daqueles bárbaros, e eles se retirariam voluntariamente, sem combater. A isso acrescentou que o rei dos assírios, até então temível, seria assassinado pelos seus, em seu próprio país, ao regressar da guerra do Egito, cujo resultado lhe seria desfavorável. Nesse mesmo tempo, o rei Ezequias recebeu cartas daquele soberano, pelas quais lhe dizia que ele, Ezequias, parecia ter perdido o juízo, para persuadir-se de poder isentar-se da submissão ao vencedor de tão poderosas nações, e ameaçava exterminá-lo com todo o seu povo se ele não abrisse às suas tropas as portas de Jerusalém. A firme confiança que Ezequias tinha em Deus levou-o a desprezar essa carta. Então dobrou-a, colocou-a no Templo e continuou as suas orações a Deus. O profeta mandou dizer-lhe que elas haviam sido ouvidas por Deus, que nada devia temer das armas assírias e que logo ele e todos os seus súditos ver-se-iam em condições de poder cultivar em completa paz as terras que a guerra os obrigara a abandonar. Senaqueribe estava na ocasião ocupado com o cerco de Pelusa, no qual já gastara muito tempo. E, no momento em que as plataformas se elevaram à altura das muralhas e ele estava para dar o assalto, foi avisado de que Targise,* rei da Etiópia, marchava com um poderoso exército em auxílio dos egípcios e vinha pelo deserto, para surpreendê-lo. Ele então levantou o cerco e retirou-se. Heródoto, falando de Senaqueribe, diz que ele fazia guerra ao sacerdote de Vulcano (é assim que ele chama o rei do Egito, que era sacerdote dessa falsa divindade). E acrescenta que o que o obrigou a levantar o cerco de Pelusa foi que, tendo aquele rei e sacerdote implorado o auxílio de seu deus, veio à noite uma tão grande quantidade de ratos ao exército do rei dos árabes (no que esse historiador se engana, pois devia dizer "dos assírios") que as cordas dos arcos foram roídas e todas as outras armas ficaram inutilizadas. Isso o obrigou a levantar o cerco. Berose, que escreveu a história dos caldeus, também faz menção a Senaqueribe. Diz que ele era rei dos assírios e fez guerra em toda a Ásia e no Egito. Assim ele fala. _________________ * Ou Tiraca. CAPÍTULO 2 UMA PESTE ENVIADA POR DEUS MATA NUMA SÓ NOITE CENTO E OITENTA E CINCO MIL HOMENS DO EXÉRCITO DE SENAQUERIBE, QUE SITIAVA JERUSALÉM. ISSO O OBRIGA A LEVANTAR O CERCO E VOLTAR AO SEU PAÍS, ONDE É ASSASSINADO POR SEUS FILHOS. 41 2. Diz ele: "Senaqueribe encontrou ao seu regresso do Egito o seu exército diminuído de cento e oitenta e cinco mil homens, por causa de uma peste enviada por Deus na primeira noite, quando ele começava o ataque a Jerusalém, sob o comando de Rabsaqué. Ele ficou tão impressionado que, com medo de perder ainda o que lhe restava, retirou-se a toda pressa para Nínive, capital de seu reino, onde pouco tempo depois Adrameleque e Sarezer, seus dois filhos mais velhos, assassinaram-no no templo de Nisroque, seu deus. O povo sentiu tanto horror que os expulsou. Eles fugiram para a Armênia, e Esar-Hadom, o mais jovem de seus filhos, sucedeu-o". CAPÍTULO 3 EZEQUIAS, REI DEJUDÁ, ESTANDO NOS EXTREMOS, PEDE A DEUS QUE PROLONGUE A SUA VIDA E LHE DÊ UM FILHO. DEUS O CONCEDE, E O PROFETA ISAÍAS DÁ-LHE UM SINAL, FAZENDO ATRASAR DEZ GRAUS A SOMBRA DO SOL. BALADA, REI DOS BABILÔNIOS, ENVIA EMBAIXADORES A EZEQUIAS PARA FAZER ALIANÇA COM ELE. EZEQUIAS MOSTRA-LHE TUDO O QUE TEM DE MAIS PRECIOSO. DEUS ACHA ISSO RUIM E LHE DIZ, POR MEIO DO PROFETA, QUE TODOS OS SEUS TESOUROS E ATÉ OS SEUS FILHOS SERIAM UM DIA TRANSPORTADOS PARA A BABILÔNIA. MORTE DE EZEQUIAS. 413. 2 Reis 20. Eis como Ezequias, rei de Judá, contra toda esperança, ficou livre da ruína completa que o ameaçava. Ele só pôde atribuir tão milagroso êxito a Deus, que expulsou os inimigos, em parte por meio da peste com que os feriu, em parte pelo medo que teve o rei de ver perecer do mesmo modo o resto do exército. O príncipe, seguido por todo o povo, deu à divina Majestade infinitas ações de graças, por ter obrigado os assírios a levantar o cerco. Algum tempo depois, Ezequias ficou tão doente que os médicos e todos os seus familiares perderam as esperanças de que se salvasse. Mas não era isso o que lhe causava maior sofrimento. Sua grande dor era que, não tendo filhos, a sua descendência terminaria com ele, e o trono passaria a outra família. Nessa aflição, ele rogou a Deus que prolongasse os seus dias, até que gerasse um filho. Deus, vendo em seu coração que era verdadeiramente por esse motivo que ele fazia tal pedido e não para gozar por mais tempo das delícias inerentes à vida dos reis, mandou o profeta Isaías dizer-lhe que ele ficaria curado dentro de três dias: viveria ainda quinze anos e teria filhos. A gravidade da doença pareceu-lhe ter tão pouca relação com tão grande felicidade que ele teve dificuldade em prestar-lhe inteiro crédito. Por isso rogou ao profeta que lhe manifestasse um sinal de que falava da parte de Deus, a fim de fortificar a fé, pois só assim se prova a veracidade das coisas quando elas são tão extraordinárias e inimagináveis. O profeta perguntou-lhe que sinal ele desejava que lhe desse. Ele respondeu que desejaria ver a sombra do sol retroceder dez graus no seu quadrante. O profeta fez o pedido a Deus, e Ele o atendeu. Ezequias, depois desse grande prodígio, ficou curado no mesmo instante. Foi ao Templo adorar a Deus e fazer orações. 414. Por essa mesma época, os medos tornaram-se senhores do império dos assírios, como diremos a seu tempo. Balada, rei dos babilônios, enviou embaixadores a Ezequias para propor uma aliança. Ele os recebeu e tratou magnificamente, mostrou-lhes os seus tesouros, as suas pedras preciosas, os seus arsenais e tudo o que possuía de mais rico e despediu-os com presentes para o rei. Isaías veio vê-lo em seguida e perguntou-lhe de onde eram aqueles homens que tinham vindo visitá-lo. Ele respondeu que eram embaixadores enviados pelo rei da Babilônia e que lhes havia mostrado tudo o que tinha de mais precioso, a fim de que pudessem referir ao seu senhor as suas riquezas e o seu poder. Disse-lhe o profeta: "Eu vos declaro, da parte de Deus, que em pouco tempo as vossas riquezas serão levadas para Babilônia e os vossos descendentes serão feitos eunucos, indo servir como tais ao rei da Babilônia". Ezequias, amargurado pela dor de ver o seu reino e a sua posteridade ameaçados com tanta desgraça, respondeu ao profeta que, visto nada poder impedir o que Deus já havia determinado, ao menos lhe fizesse a graça de deixá-lo viver em paz o resto de seus dias. O historiador Berose faz menção desse Balada, rei da Babilônia. Quanto a Isaías, admirável profeta de Deus que jamais deixou de dizer a verdade, a confiança em tudo o que predizia fez com que ele não temesse escrevê-lo, a fim de que os pósteros não pudessem duvidar. E ele não foi o único que assim procedeu, pois doze outros profetas fizeram o mesmo. Quanto a nós, vemos que todo bem ou todo mal que nos acontece concorda perfeitamente com essas profecias, como há de mostrar a continuação desta história. O rei Ezequias, segundo a promessa que Deus lhe fez, viveu quinze anos em paz após ser curado de sua enfermidade e morreu com cinqüenta e quatro anos, dos quais reinou vinte e nove. CAPÍTULO 4 MANASSES, REI DEJUDÁ, ENTREGA-SE A TODA ESPÉCIE DE IMPIEDADE. DEUS O AMEAÇA POR SEUS PROFETAS, MAS ELE NÃO SE IMPORTA. UM EXÉRCITO DO REI DE BABILÔNIA DEVASTA O SEU PAÍS E LEVA-O PRISIONEIRO. ELE RECORRE A DEUS, ÉPOSTO EM LIBERDADE E CONTINUA A SERVIR A DEUS FIELMENTE PELO RESTO DE SUA VIDA. SUA MORTE. AMAM, SEU FILHO, SUCEDE-O. AMOM É ASSASSINADO, FOSIAS, SEU FILHO, SUCEDE-O. 415. 2 Reis 21. Manasses, que Ezequias, rei de judá, teve de Hefzibá, que era de Jerusalém, sucedeu-o no trono. Tomou um caminho contrário ao que seu pai havia trilhado, entregando-se a toda sorte de vícios e impiedades, e imitou perfeitamente os reis de Israel que Deus havia exterminado por causa de suas abominações. Ele ousou mesmo profanar o Templo, toda a cidade de Jerusalém e o resto do país. Não sendo mais contido pelo temor da justiça de Deus e desprezando os seus mandamentos, mandou matar muitos homens de bem, não poupando nem mesmo os profetas. Não se passava um dia sem que pelo menos um deles pagasse com a vida os caprichos do rei, manchando a cidade com o seu sangue. Deus, irritado com tantos crimes, mandou os seus profetas ameaçá-lo, bem como a todo o povo, com os mais terríveis castigos, os quais os israelitas seus antepassados haviam experimentado por terem, como ele, atraído a sua indignação e a sua cólera. Mas nem o desventurado rei nem aquele povo infeliz prestaram fé a essas palavras, as quais, se eles se tivessem comovido, poderiam ter impedido as muitas desgraças que lhes sucederam. Mas eles só as reconheceram verdadeiras depois de lhes sentir os efeitos. Continuaram, portanto, a ofender a Deus, e Ele suscitou contra eles o rei dos babilônios e dos caldeus, que os atacou com um grande exército, o qual não somente devastou o país, mas levou prisioneiro o próprio Manasses. Então, esse miserável príncipe percebeu que fora o excesso de pecados que o reduzira àquele estado. E recorreu a Deus, rogando-lhe que tivesse compaixão dele. A sua oração foi ouvida, e o rei vitorioso mandou-o livre para Jerusalém. Essa mudança em sua vida mostrou que a sua conversão fora sincera. Seu único pensamento agora era destruir a memória das ações passadas, e empregou todos os seus esforços em restaurar o culto a Deus: consagrou novamente o Templo, mandou reconstruir o altar para os sacrifícios, segundo a lei de Moisés, e purificou toda a cidade. E, para mostrar como era grato a Deus por ter sido liberto da escravidão, empregou o resto de sua vida em tornar-se agradável aos olhos dEle, tanto por virtude quanto por contínuas ações de graças. Assim, por um proceder contrário ao anterior, levou os súditos a imitá-lo no arrependimento tal como o haviam imitado em seus pecados, que tantos males atraíram sobre eles. E, depois de restaurar as cerimônias da antiga religião, pensou em fortificar Jerusalém. Não se contentando em restaurar as antigas muralhas, mandou construir outras, acrescentando-lhes altas torres. Fortificou os arrabaldes, dando-lhes provisões de trigo e de tudo o que era necessário. Enfim, a mudança foi tão grande que desde aquele dia em que começou a servir a Deus até o fim de sua vida não mais se lhe amorteceu o zelo pela piedade. Morreu na idade de sessenta e sete anos, após reinar cinqüenta e cinco, e foi enterrado em seus jardins. Amom, seu filho que ele tivera de Mesulemete, a qual era da cidade de Jotbá, sucedeu-o. Ele imitou a impiedade em que seu pai caíra na juventude e não tardou muito em ser castigado. Após reinar somente dois anos e ter vivido vinte e quatro, foi assassinado pelos próprios servidores. O povo o fez morrer e enterrou-o no sepulcro de seu pai. Josias, seu filho, que tinha então apenas oito anos, sucedeu-o. CAPÍTULO 5 GRANDES VIRTUDES E INSIGNE PIEDADE DE JOSIAS, REI DEJUDÁ. ELE AFASTA COMPLETAMENTE A IDOLATRIA DO REINO E RESTAURA O CULTO A DEUS. 416. 2 Reis 22. A mãe de Josias, rei de Judá, chamada Jedida, era da cidade de Bozcate. Esse príncipe era tão bom e tão inclinado à virtude que durante toda a sua vida se propôs imitar o rei Davi, tomando-o como modelo. E, desde a idade de doze anos, deu prova ilustre de sua piedade e justiça, pois exortou o povo a renunciar o culto aos falsos deuses e adorar ao Deus de seus antepassados. Começou, a partir de então, a restaurar a antiga observância às leis, com a prudência de quem já era de muito mais idade. Fazia observar inviolavelmente o que piedosamente era determinado. Além dessa prova de sabedoria natural, serviu-se do conselho dos mais velhos e experimentados para restaurar o culto a Deus e restabelecer a ordem em suas terras. Assim, não corria perigo de cair nas faltas que haviam provocado a ruína de alguns de seus predecessores. Ele mandou indagar de todos os lugares do reino e de Jerusalém onde se adoravam falsas divindades. Ordenou que se cortassem as árvores e derrubassem os altares que lhes eram consagrados e desfez-se com desprezo de tudo o que os outros reis haviam feito para prestar honras e homenagens sacrílegas. Assim, conseguiu tirar o povo de sua louca veneração e levou-o a prestar ao verdadeiro Deus a adoração que lhe era devida. Mandou em seguida oferecer os holocaustos e sacrifícios de costume e nomeou magistrados e censores para a administração de uma exata justiça e para o extremo cuidado em que cada qual cumprisse o seu dever. Ordenou que todas as cidades submetidas ao seu domínio fizessem, por sua ordem, donativos de ouro e prata para a restauração do Templo, como cada qual quisesse, sem se coagir quem quer que fosse. Entregou a direção e a responsabilidade dessa obra a Amasa, governador de Jerusalém, a Safa, secretário, a joatão, intendente dos registros, e a Hilquias, sumo sacerdote. Eles trabalharam com tanta solicitude que logo o Templo foi remodelado e restaurado, e todos comentavam com prazer aquela ilustre demonstração da piedade do devoto rei. No décimo oitavo ano de seu reinado, ele ordenou ao sumo sacerdote que mandasse fazer taças e vasos para o serviço do Templo, não somente com o restante do ouro e da prata doados para a preparação, mas também com tudo o que estava no tesouro. Ao executar a ordem, o sumo sacerdote encontrou os Livros Santos deixados por Moisés, que eram guardados no Templo. Entregou-os a Safa, o secretário, que os leu e levou-os ao rei. E, depois de informá-lo que tudo o que ele ordenara fora executado, leu-lhe os livros. O piedoso príncipe ficou tão comovido que rasgou as próprias vestes e mandou Safa, o sumo sacerdote, e alguns dos que lhe eram mais fiéis falar com a profetisa Hulda, mulher de Salum, que era um homem ilustre e de família nobre. Eles pediram, em nome do rei, que ela aplacasse a cólera de Deus, de modo que Ele lhe fosse favorável (pois tinha motivo para temer o castigo pelos pecados cometidos pelos reis seus predecessores, que transgrediram as leis de Moisés) e ele não fosse expulso de seu país com todo o povo e levado a uma terra estrangeira, onde terminaria miseravelmente a vida. A profetisa respondeu que comunicassem ao rei que nenhuma prece seria capaz de obter de Deus a revogação de sua sentença: eles seriam expulsos de sua terra e despojados de todas as coisas, porque, tendo violado as santas leis, não se arrependeram, embora tivessem tido tempo suficiente para fazer penitência pelos seus pecados e os profetas os houvessem exortado a isso e predito muitas vezes qual seria o castigo. Assim, Deus os faria cair em todas as desgraças de que haviam sido ameaçados, para que reconhecessem que Deus e os seus profetas nada lhes haviam anunciado de sua parte que não fosse verdadeiro. No entanto, por causa da piedade do rei, Ele retardaria a execução até depois de sua morte. E então não seria mais adiada. 2 Reis 23. Ante essa resposta, o rei ordenou a todos os sacerdotes, a todos os levitas e aos demais súditos que fossem a Jerusalém. Lá reunidos, começou por ler-lhes o que estava escrito nos Livros Santos. Depois colocou-se num lugar elevado e obrigou-os a prometer, com juramento, servir a Deus de todo o coração e observar as leis de Moisés. Eles prometeram e ofereceram sacrifícios para implorar o auxílio divino. O rei, em seguida, ordenou ao sumo sacerdote que verificasse se restava ainda no Templo algum vaso que os reis seus predecessores houvessem oferecido para culto aos falsos deuses. Muitos foram ainda encontrados, e ele os fez reduzir a pó, lançou a poeira ao vento e mandou matar todos os sacerdotes dos ídolos, que não eram da descendência de Arão. Depois de praticar em Jerusalém todos esses atos de piedade, foi ele mesmo às províncias para destruir inteiramente tudo o que o rei Jeroboão estabelecera em honra aos deuses estrangeiros. Mandou queimar os ossos dos falsos profetas sobre o altar que aquele rei havia construído, cumprindo o que predissera um profeta ao ímpio príncipe, quando este oferecia um sacrifício naquele altar, na presença de todo o povo: que um sucessor do rei Davi, de nome Josias, executaria todas essas coisas. Viu-se assim a sua realização, trezentos e sessenta anos mais tarde. A piedade de Josias foi ainda além. Ele mandou investigar cuidadosamente todos os israelitas que se haviam salvado do cativeiro assírio e persuadiu-os a abandonar o detestável culto aos ídolos e a adorar, como os seus antepassados, o Deus Todo-poderoso. Não houve cidade, aldeia ou vila em que ele não tivesse mandado fazer, em todas as casas, uma diligente eliminação de tudo o que servira à idolatria. Mandou também queimar todos os carros que os seus predecessores haviam consagrado ao Sol e nada deixou que pudesse levar o povo a um culto sacrílego. Quando terminou de purificar todo o território, mandou reunir o povo em Jerusalém para lá celebrar a festa dos Pães Ázimos, que nós chamamos Páscoa, e deu ao povo, para a celebração dos festins públicos, trinta mil cordeiros e cabritos e três mil bois. Os principais sacerdotes deram também aos outros sacerdotes dois mil e seiscentos cordeiros. Os principais levitas deram aos outros levitas cinco mil cordeiros e quinhentos bois. Nenhum desses animais deixou de ser imolado segundo a lei de Moisés, pelo cuidado que disso tiveram os sacerdotes. Assim, não houve, desde os tempos do profeta Samuel, uma festa celebrada com tanta solenidade, porque nelas se observaram todas as cerimônias prescritas na Lei e segundo a antiga tradição. O rei Josias, depois de ter vivido em grande paz, cumulado de riquezas e de glória, terminou os seus dias do modo que vou dizer. CAPÍTULO 6 JOSIAS, REI DEJUDÁ, OPÕE-SE À PASSAGEM DO EXÉRCITO DE NECO, REI DO EGITO, QUE IA FAZER GUERRA AOS MEDOS E AOS BABILÔNIOS. É FERIDO POR UMA FLECHADA, DE QUE VEM A MORRER. JEOACAZ, SEU FILHO, SUCEDE-O E É MUITO ÍMPIO. O REI DO EGITO LEVA-O PRISIONEIRO. QUANDO ELE MORRE, O REI DO EGITO FAZ REI EM SEU LUGAR A ELIAQUIM, IRMÃO MAIS VELHO DE JEOACAZ, A QUEM CHAMA DE JEOAQUIM. 41 7. Neco, rei do Egito, levado pelo desejo de se tornar senhor da Ásia, marchou para o Eufrates com um grande exército, para fazer guerra aos medos e aos babilônios, que haviam devastado o império da Assíria. Quando chegou próximo da cidade de Megido, no reino de Judá, o rei Josias opôs-se à sua passagem. Neco mandou dizer-lhe por meio de um arauto que não era a ele que pretendia atacar, mas que marchava para o Eufrates, e que ele não se devia opor à sua passagem, pois isso o obrigaria, contra a sua intenção, a declarar-lhe guerra. Josias não se deixou comover por essas razões. Permaneceu em sua resolução, e parece que a sua infelicidade o levava a demonstrar tão grande altivez. Pois, enquanto dispunha o exército para a batalha e ia de coluna em coluna, sobre o seu carro, animando os soldados, um egípcio atirou-lhe uma flecha. Ficou tão ferido que a dor o obrigou a ordenar ao exército que se retirasse, e ele voltou a Jerusalém, onde veio a morrer por causa do ferimento. Foi sepultado com grande pompa, no sepulcro de seus antepassados, após viver trinta e nove anos, dos quais reinou trinta e um. O povo ficou imensamente aflito com a perda de tão grande príncipe. Lamentou-o durante vários dias, e o profeta Jeremias compôs versos fúnebres em seu louvor, os quais ainda hoje são conhecidos. Esse profeta também predisse — e deixou por escrito — os males que haveriam de afligir Jerusalém e o cativeiro que sofremos sob os babilônios. Nisso ele não foi o único, pois o profeta Ezequiel, antes dele, compusera também dois livros sobre esse mesmo assunto. Eles eram ambos da casta sacerdotal, e Jeremias ficou em Jerusalém, desde o ano terceiro do reinado de Josias até a destruição da cidade e do Templo, como direi a seu tempo. 418. Depois da morte de Josias, seu filho Jeoacaz, que ele tivera de Hamutal, sucedeu-o. Ele tinha vinte e três anos e foi muito ímpio. O rei do Egito, voltando da guerra de que acabamos de falar, mandou dizer-lhe que viesse a Hamate, que é uma cidade da Síria. Lá chegando, fê-lo prisioneiro e como rei em seu lugar colocou Eliaquim, seu irmão mais velho, porém filho de outra mãe, de nome Zebida, que era da cidade de Ruma. Deu ao novo rei o nome de Jeoaquim e obrigou-o a pagar todos os anos um tributo de cem talentos de prata e um talento de ouro. Levou Jeoacaz ao Egito, onde ele morreu. Jeoacaz reinou somente três meses e dez dias. O rei Jeoaquim, filho de Zebida, foi também um príncipe muito mau. Não tinha temor de Deus nem bondade para com os homens. CAPÍTULO 7 NABUCODONOSOR, REI DA BABILÔNIA, DERROTA NECO, REI DO EGITO, NUMA GRANDE BATALHA E TORNA JEOAQUIM, REI DEJUDÁ, SEU TRIBUTÁRIO. JEREMIAS PREDIZ A JEOAQUIM AS DESGRAÇAS QUE LHE IRIAM SUCEDER, E ESTE DESEJA MATAR O PROFETA. 419. 2 Reis 24. No quarto ano do reinado de Jeoaquim, rei de Judá, Nabucodonosor, rei da Babilônia, avançou com um grande exército até a cidade de Carabesa, junto do Eufrates, para fazer guerra à Síria. O príncipe desse país veio ao combate com grandes forças, e travou-se a batalha junto desse rio. Ele foi vencido e obrigado a se retirar, com muitas perdas. Nabucodonosor passou depois o Eufrates e conquistou toda a Síria até Pelusa. Não entrou dessa vez na Judéia, mas no quarto ano de seu reinado, que era o oitavo de Jeoaquim, avançou com um poderoso exército e ameaçou fortemente os judeus, caso não lhe pagassem tributo. Jeoaquim, atônito, resolveu aceitar a paz e pagou o tributo durante três anos. No ano seguinte, porém, ante o boato de que o rei do Egito iria fazer guerra ao da Babilônia, recusou-se a continuar pagando. Foi enganado, todavia, em suas esperanças. Os egípcios não se atreveram a combater os babilônios, como tantas vezes afirmara o profeta Jeremias — ele havia predito que isso não aconteceria e que Jeoaquim punha em vão a sua confiança no auxílio egípcio. Dissera ainda esse profeta que o rei da Babilônia tomaria Jerusalém e que os judeus seriam feitos escravos. Por mais verdadeiras que fossem essas profecias, entretanto, ninguém nelas acreditava. Não somente o povo as desprezava, como também os grandes zombavam delas. E ficaram de tal modo enraivecidos pelo fato de ele só predizer desgraças que o denunciaram ao rei, pedindo que o mandasse matar. Ele entregou o assunto ao seu conselho, do qual a maior parte foi de opinião que o condenassem. Outros, mais sensatos, aconselharam-no a mandá-lo embora sem lhe fazer mal algum, porque ele não fora o único a profetizar as desgraças que deveriam acontecer a Jerusalém. O profeta Miquéias e outros ainda haviam profetizado a mesma coisa, sem que os reis que então viviam os tivessem maltratado por esse motivo. Ao contrário, haviam-nos honrado como profetas de Deus. Assim, embora condenado à morte pela maior parte dos votos, Jeremias teve a sua vida preservada graças a esse conselho tão sensato. Ele escreveu todas essas profecias num livro e leu publicamente tudo o que nele havia escrito. Fez isso diante do povo que estava reunido no Templo depois de um jejum geral, no nono mês do quinto ano do reinado de Jeoaquim,- anunciando o que aconteceria à cidade, ao Templo e ao povo. Os principais da assembléia arrancaram-lhe o livro das mãos, disseram a ele e a Baruque, seu secretário, que se retirassem para um lugar onde eles não os pudessem encontrar e levaram o livro ao rei. Ele mandou que fosse lido e ficou tão irritado que o rasgou e jogou-o no fogo. Ordenou então que fossem buscar Jeremias e Baruque a fim de matá-los. Porém eles já haviam fugido para evitar o furor do rei. CAPÍTULO 8 JEOAQUIM, REI DEJUDÁ, RECEBE NABUCODONOSOR, REI DA BABILÔNIA, EM JERUSALÉM, O QUAL LHE FALTA À PALAVRA E O MATA, BEM COM A VÁRIOS OUTROS. LEVA ESCRAVOS TRÊS MIL DOS PRINCIPAIS JUDEUS, DENTRE OS QUAIS O PROFETA EZEQUIEL. JOAQUIM É COLOCADO NO TRONO COMO REI DE JUDÁ, NO LUGAR DE JEOAQUIM, SEU PAI. 420. Pouco tempo depois, o rei Nabucodonosor veio com um grande exército, e o rei Jeoaquim, que não desconfiava dele e estava perturbado pelas predições do profeta, não se havia preparado para a guerra. Assim, ele o recebeu em Jerusalém, confiante na palavra que dera Nabucodonosor de não lhe fazer mal algum. Mas ele faltou à palavra: mandou matá-lo, juntamente com a fina flor da juventude da cidade, e ordenou que lançassem os corpos fora de Jerusalém, sem lhes dar sepultura. Depois de tal perfídia e de tão grande crueldade, ele constituiu como rei em lugar de Jeoaquim o filho deste, Joaquim (antes chamado Jeconias), e levou escravos para a Babilônia três mil dos principais judeus, dentre os quais estava o profeta Ezequiel, ainda muito jovem. Esse foi o fim de Jeoaquim, rei de Judá. Viveu apenas trinta e seis anos e reinou treze. Joaquim, seu filho, que ele tivera de Neústa, a qual era de Jerusalém, reinou somente três meses e dez dias. CAPÍTULO 9 NABUCODONOSOR ARREPENDE-SE DE TER ESCOLHIDO JOAQUIM COMO REI. MANDA BUSCÁ-LO COMO PRISIONEIRO, JUNTAMENTE COM SUA MÃE, OS PRINCIPAIS AMIGOS E UM GRANDE NÚMERO DE HABITANTES DE JERUSALÉM. 421. Nabucodonosor arrependeu-se bem depressa de ter escolhido Joaquim para rei de Judá. Ele temia que o ressentimento pela maneira como fora tratado o pai levasse o filho a se revoltar, e mandou um grande exército sitiá-lo em Jerusalém. Sendo Joaquim um príncipe muito bom e justo, o seu amor pelos súditos e o desejo de preservá-los daquela tempestade levaram-no a entregar como refém a sua mãe e alguns de seus principais amigos e parentes aos comandantes do exército inimigo, depois de obter desses mesmos comandantes, sob juramento, a promessa de que não lhe fariam mal algum, nem à cidade. Não se passou um ano, porém, e Nabucodonosor faltou novamente à palavra. Ordenou aos seus generais que lhe enviassem prisioneiros todos os moços e artífices de Jerusalém. Elevou-se o seu número a dez mil oitocentos e trinta e dois, e entre eles estavam o próprio rei Joaquim, sua mãe e os seus principais servidores. O pérfido príncipe mandou que fossem guardados com o maior cuidado. CAPÍTULO 10 NABUCODONOSOR CONSTITUI ZECLEQUIAS REI DEJUDÁ NO LUGAR DE JOAQUIM. ZEDEQUIAS FAZ ALIANÇA CONTRA ELE COM O REI DO EGITO. NABUCODONOSOR CERCA-O EM JERUSALÉM. O REI DO EGITO VEM EM SEU AUXÍLIO. NABUCODONOSOR LEVANTA O CERCO PARA COMBATER O REI DO EGITO, DERROTA-O E VOLTA PARA CONTINUAR O CERCO. O PROFETA JEREMIAS PREDIZ TODAS AS DESGRAÇAS QUE DEVERÃO ACONTECER. METEM-NO NUMA PRISÃO E DEPOIS NUM POÇO, PARA FAZÊ-LO MORRER. ZEDEQUIAS MANDA RETIRÁ-LO E PERGUNTA-LHE O QUE DEVE FAZER. O PROFETA ACONSELHA-O A ENTREGAR JERUSALÉM. ZEDEQUIAS DIZ NÃO PODER TOMAR TAL DECISÃO. 422. 2 Reis 25. Nabucodonosor, rei da Babilônia, constituiu Zedequias* rei de Judá no lugar de Joaquim, seu tio paterno, depois de fazê-lo prometer com juramento que seria fiel e não faria nenhum entendimento com os egípcios. O soberano tinha então somente vinte e um anos e era irmão de Jeoaquim — ambos eram filhos do rei Josias. Como mantinha junto de si apenas jovens de sua idade, que não eram homens de valor, mas ímpios, ele desprezava também a virtude e a justiça. O povo, à sua imitação, entregava-se a toda sorte de desordens. O profeta Jeremias ordenou-lhe diversas vezes, da parte de Deus, que se arrependesse, se corrigisse e não acreditasse mais nos homens de mau Espírito que o rodeavam nem nos falsos profetas que o enganavam, afirmando que o rei da Babilônia não sitiaria Jerusalém e que o rei do Egito far-lhe-ia guerra e o venceria. As palavras do profeta fizeram impressão no Espírito do príncipe, e ele queria mesmo seguir aqueles conselhos. Mas os seus favoritos, que o manipulavam como queriam, faziam-no mudar de opinião. Ezequiel, que estava então na Babilônia, como dissemos, predisse também a destruição do Templo e mandou dar a notícia a Jerusalém. Mas Zedequias não prestou fé às suas profecias porque, embora se assemelhassem em todo o resto com as de Jeremias, e os dois profetas estivessem de acordo no que se referia à ruína e ao cativeiro de Zedequias, parecia que eles não combinavam nisto: Ezequiel afirmava que ele não veria a Babilônia, e Jeremias sustentava que o rei da Babilônia o levaria prisioneiro para lá. Essa discordância fazia com que o rei não prestasse fé às profecias. Mas os fatos lhe mostraram a verdade, como diremos mais detalhadamente a seu tempo. _____________________ * Zedequias antes chamava-se Matanias. 423. Oito anos depois, Zedequias renunciou a aliança com o rei da Babilônia para fazer outra, com o rei do Egito, na esperança de que unindo com este as suas forças aquele não lhes pudesse resistir. Nabucodonosor, logo que soube disso, pôs-se em campo com um poderoso exército. Ele devastou a judéia, apoderou-se das maiores praças-fortes e sitiou Jerusalém. O rei do Egito veio com grandes forças em auxílio de Zedequias, e então o rei da Babilônia levantou o cerco para dar-lhe combate. Venceu-o numa grande batalha e o expulsou da Síria. Os falsos profetas, contudo, depois que Nabudonosor levantou o cerco, continuaram a enganar Zedequias, dizendo-lhe que, em vez de ter motivo para temor de que ele fizesse guerra novamente, veria logo o regresso dos seus súditos que estavam na Babilônia, com todos os vasos sagrados que haviam sido roubados do Templo. Jeremias, ao contrário, afirmou que aqueles homens o enganavam ao dar-lhe tal confiança, pois ele nada deveria esperar do auxílio dos egípcios; que o rei da Babilônia os venceria; que voltaria para continuar o cerco e tomaria Jerusalém pela fome; que levaria escravizado para a Babilônia o que restasse dos habitantes, depois de os despojar de todos os seus bens; que saquearia o Templo e todos os seus tesouros e depois o incendiaria; que destruiria completamente a cidade; e que esse cativeiro duraria setenta anos, mas os persas e os medos destruiriam a Babilônia e seu império, e os hebreus, libertos por eles da escravidão, voltariam a Jerusalém e reconstruiriam o Templo. As palavras de Jeremias persuadiram a muitos, no entanto os príncipes e os que como eles se vangloriavam de serem ímpios zombaram dele, como de um insensato. Algum tempo depois, indo esse profeta a Anatote, que era o lugar de seu nascimento, distante vinte estádios de Jerusalém, encontrou no caminho um dos magistrados, o qual o deteve e o acusou de estar indo procurar o rei da Babilônia. Jeremias respondeu-lhe que não tinha absolutamente aquela intenção, ia somente fazer uma visita à sua terra natal. O magistrado, não acreditando em suas palavras, levou-o perante o tribunal, para instaurar-se o processo. Declararam-no culpado e meteram-no numa prisão, para fazê-lo morrer. 424. No nono ano do reinado de Zedequias, no décimo dia do último mês, o rei da Babilônia recomeçou o cerco de Jerusalém e durante dezoito meses empregou todos os esforços para apoderar-se dela. E as armas não eram o único meio de que esse soberano se servia para oprimir os seus habitantes. Eles eram ao mesmo tempo atormentados por dois dos mais temíveis flagelos: a fome e a peste, ambos violentos e graves. No entanto jeremias continuava a clamar e a exortar o povo a abrir as portas ao rei da Babilônia, pois não lhes restava outro meio de salvação, por maiores que fossem os males vindouros. Os príncipes e os principais magistrados, em vez de se convencerem com as palavras do profeta, irritaram-se de tal sorte que o acusaram perante o rei de ser insensato e de procurar fazer com que eles e todo o povo perdessem a coragem, predizendo-lhes tantas desgraças. Quanto a eles, estavam dispostos a morrer pelo serviço do rei e pela sua pátria, ao passo que aquele sonhador, por meio de ameaças, os exortava a fugir, dizendo que a cidade seria tomada e que todos pereceriam. O rei, por uma certa bondade natural e amor à justiça, não estava irritado contra Jeremias. Porém, temendo em tal contingência descontentar os maiorais do país, permitiu-lhes fazer o que quisessem. Foram eles então ao cárcere, tiraram de lá o profeta e o desceram por meio de cordas a um poço cheio de lama, a fim de que morresse afogado. Ele ficou ali, mergulhado até o pescoço. Entretanto um criado do rei, que era etíope e gozava de grande estima perante ele, contou-lhe o que se havia passado, dizendo que aqueles homens agiam errado ao tratar daquele modo o profeta e que seria muito melhor deixá-lo morrer na prisão. O rei, comovido com essas palavras, arrependeu-se de o ter deixado à discrição dos inimigos e ordenou ao etíope que tomasse trinta de seus oficiais e fosse imediatamente tirá-lo do poço. Ele executou a ordem no mesmo instante e colocou Jeremias em liberdade. O rei, em segredo, mandou chamar Jeremias e perguntou se o profeta não conhecia um meio de obter de Deus um livramento do perigo que os ameaçava. Ele respondeu que sabia de um apenas, mas seria inútil dizê-lo, pois estava certo de que aqueles em quem o rei mais confiava, em vez de acreditar, se levantariam contra ele, como se estivesse cometendo um grande crime ao declará-lo, e procurariam eliminá-lo. Continuou o profeta: "Onde estão agora aqueles que vos enganavam, dizendo com tanta certeza que o rei da Babilônia não voltaria? E, não deverei eu ter medo de dizer-vos a verdade, sendo que nisso vai a minha vida?" O rei prometeu-lhe com juramento que ele não correria perigo algum, nem de sua parte nem da parte dos nobres. Jeremias, tranqüilizado por essas palavras, disse-lhe que o conselho que lhe dava era por ordem de Deus. Ele deveria entregar a cidade aos babilônios, nas mãos do próprio rei, pois era o único meio de se salvarem e de impedir que a cidade fosse destruída e o Templo incendiado. Se não o fizesse, seria a causa de todos esses males. O rei respondeu que gostaria de seguir o conselho, mas temia que os seus, os quais se haviam passado para o lado do rei da Babilônia, viessem prejudicá-lo perante ele e até o matassem. Diante disso, o profeta garantiu-lhe que, se seguisse o seu conselho, nenhum mal sucederia a ele nem às suas mulheres e filhos e nem ao Templo. O rei proibiu-o de contar a quem quer que fosse o que se passara entre ambos, particularmente aos nobres. Se lhe perguntassem o motivo da entrevista ou qualquer outra coisa, dissesse apenas que fora pedir para ser posto em liberdade. Os grandes e os nobres não deixaram de perguntar ao profeta o que se havia passado entre ele e o rei, e ele respondeu conforme o príncipe lhe havia ordenado. CAPÍTULO 11 O EXÉRCITO DE NABUCODONOSOR TOMA JERUSALÉM, SAQUEIA O TEMPLO E O QUEIMA, BEM COMO AO PALÁCIO REAL, DESTRUINDO COMPLETAMENTE A CIDADE. NABUCODONOSOR MANDA MATAR SERAÍAS, SUMO SACERDOTE, E VÁRIOS OUTROS. FAZ VAZAR OS OLHOS DE ZEDEQUIAS E LEVA-O ESCRAVO À BABILÔNIA, BEM COMO UM GRANDE NÚMERO DE JUDEUS. ZEDEQUIAS MORRE. NOMES DOS SUMOS SACERDOTES. GEDALIAS É CONSTITUÍDO POR NABUCODONOSOR CHEFE DOS HEBREUS ESTABELECIDOS NA JUDÉIA. ISMAEL MATA-O E LEVA OS PRISIONEIROS. JOÃO E SEUS AMIGOS PERSEGUEM-NO E OS LIVRAM. RETIRAM-SE PARA O EGITO CONTRA O CONSELHO E A OPINIÃO DE JEREMIAS. NABUCODONOSOR, APÓS VENCER O REI DO EGITO, LEVA OS ESCRAVOS PARA A BABILÔNIA. FAZ EDUCAR COM MUITO CUIDADO AS CRIANÇAS JUDIAS QUE ERAM DA NOBREZA. DANIEL E TRÊS DE SEUS COMPANHEIROS, TODOS PARENTES DO REI ZEDEQUIAS, ESTÃO ENTRE ELES. DANIEL, ENTÃO CHAMADO BELTESSAZAR, EXPLICA A NABUCODONOSOR UM SONHO. O REI DIGNIFICA DANIEL E SEUS COMPANHEIROS COM OS MAIS ALTOS CARGOS DO IMPÉRIO. OS TRÊS COMPANHEIROS DE DANIEL, SADRAQUE. MESAQUE E ABEDE-NEGO, RECUSAM-SE A ADORAR A ESTÁTUA QUE NABUCODONOSOR MANDOU FAZER. SÃO ATIRADOS A UMA FORNALHA ARDENTE, E DEUS OS SALVA. NABUCODONOSOR, DEPOIS DE OUTRO SONHO, QUE DANIEL TAMBÉM IBE EXPLICA, PASSA SETE ANOS NO DESERTO COM OS ANIMAIS. VOLTA AO SEU ESTADO PRIMITIVO. SUA MORTE. TRABALHOS SOBERBOS POR ELE EXECUTADOS EM BABILÔNIA. 425. Nabucodonosor apertava cada vez mais o cerco. Mandou construir altas torres, com as quais sobrepassava as muralhas da cidade, e também grande quantidade de plataformas tão altas quanto os muros. Os habitantes, por sua vez, defendiam-se com todo o empenho e com toda a coragem possível, sem que a fome e a peste pudessem esmorecê-los. A coragem dava-lhes ânimo contra todos os males e perigos. E, sem se espantar com as máquinas de que seus inimigos se serviam, opunham-lhes outras. Assim, não era somente à força aberta, mas também com muita arte que a guerra transcorria entre essas duas valentes nações. Era principalmente por esse último meio que alguns esperavam conquistar a praça, e outros, ao invés, conservá-la. Passaram-se dezoito meses desse modo. Por fim, os sitiados, consumidos pela fome, pela peste e pela quantidade de dardos que os inimigos lhes atiravam do alto das torres, cederam, e a cidade foi tomada pela meia-noite do décimo primeiro ano, no nono dia do quarto mês do reinado de Zedequias, por Nergelear, Aremante, Emegar, Nabazar e Ercarampsar, generais de Nabucodonosor que então estavam em Ribla. Eles marcharam diretamente para o Templo. O rei Zedequias, sua esposa, seus filhos, seus parentes e as pessoas da nobreza que ele mais estimava saíram da cidade para fugir por lugares desconhecidos rumo ao deserto. Os babilônios, porém, foram avisados por um dos que eles haviam deixado de lado ao fugir, e ao despontar do dia puseram-se a persegui-los. Alcançaram-nos perto de Jerico e quase todos os que acompanhavam Zedequias o abandonaram. Ele foi aprisionado com sua mulher, seus filhos e os poucos que lhe restavam, e todos foram levados ao rei. Nabucodonosor chamou-o de ímpio e pérfido por faltar à promessa de lhe conservar inviolavelmente o reino, pois para isso pusera a coroa na sua cabeça. Reprovou-lhe a ingratidão, por esquecer-se da obrigação que lhe devia por tê-lo preferido a Joaquim, seu sobrinho, ao qual pertencia o reino, e por ter empregado contra o seu benfeitor o poder que este lhe concedera. E terminou com estas palavras: "Mas o grande Deus, para castigar-vos, vos entregou em minhas mãos". Então, na presença dele e diante dos outros escravos, mandou matar os seus filhos e amigos. Vazou-lhe os olhos e ordenou que o acorrentassem para levá-lo escravo à Babilônia. Assim, cumpriram-se ambas as profecias, a de Jeremias e a de Ezequiel, que esse desventurado príncipe tão erradamente desprezara: a de Jeremias, que afirmava que ele seria feito prisioneiro, seria levado a Nabucodonosor, falaria com ele e o veria face a face; a de Ezequiel, que dizia que ele seria levado à Babilônia, mas não a poderia ver. Esse exemplo ensina, mesmo aos mais ignorantes, o poder e a sabedoria infinita de Deus, que sabe fazer realizar por diversos meios e no tempo por Ele marcado tudo o que determina e prediz. Esse mesmo exemplo faz também ver a ignorância e incredulidade dos homens: a primeira os impede de prever o que lhes sucederá; a segunda faz com que eles caiam, quando menos esperam, na infelicidade e na desgraça de que foram ameaçados e só as conheçam quando as sentirem e quando não mais estiver em seu poder evitá-las. Esse foi o fim da estirpe de Davi, depois que vinte e um reis seus descendentes sucessivamente ocuparam o trono e empunharam o cetro do reino de Judá. E todos os seus governos, juntamente, duraram quinhentos e quatorze anos, seis meses e dez dias. Nabucodonosor, depois da vitória, enviou Nebuzaradã, general de seu exército, a Jerusalém, com ordem de incendiar o Templo após retirar de lá tudo o que encontrasse e de também reduzir a cinzas o palácio real e de destruir a cidade por completo. Deveria trazer depois todos os habitantes como escravos para a Babilônia. Assim, no décimo oitavo ano do reinado desse príncipe, que era o décimo primeiro do reinado de Zedequias, no primeiro dia do quinto mês, esse general, para executar tal ordem, despojou o Templo de tudo o que lá encontrou: levou todos os vasos de ouro e de prata, o grande vaso de cobre chamado mar, que Salomão mandara fazer, as duas colunas de bronze, as mesas e os candelabros de ouro. Em seguida, incendiou o Templo e o palácio real e destruiu completamente a cidade. Isso aconteceu quatrocentos e setenta anos, seis meses e dez dias desde a construção do Templo, mil seiscentos e dois anos, seis meses e dez dias desde a saída do Egito e mil novecentos e cinqüenta anos, seis meses e dez dias desde o dilúvio. Nebuzaradã ordenou então que se levasse o povo como escravo para a Babilônia, até mesmo o rei, que então estava em Ribla, cidade da Síria, e também Seraías, sumo sacerdote, Cefã,* que era o segundo dos sacerdotes, os três oficiais a quem estava confiada a guarda do Templo, o primeiro dos eunucos, sete dos que desfrutavam maior favor perante Zedequias, o secretário de Estado e sessenta outras pessoas de classe, que ele apresentou ao príncipe com os despojos do Templo. Nabucodonosor, naquele mesmo lugar, mandou cortar a cabeça ao sumo sacerdote e aos mais nobres. Em seguida mandou levar para a Babilônia o rei Zedequias, Jeozadaque, filho de Seraías, e todos os outros escravos. Depois de haver registrado a série dos reis que empunharam o cetro do povo de Deus, julgo dever referir também a dos sumos sacerdotes que se sucederam desde que Salomão construiu o Templo. O primeiro foi Zadoque, cujos descendentes foram: Aquimas, Azarias, Jorão, His, Aciorão, Fideas, Sudeas, Jul, Jotão, Urias, Nerias, Odeas, Saldum, Elcias, Seraías e jeozadaque, que foi levado escravo para a Babilônia. O rei Zedequias morreu na prisão, e Nabucodonosor sepultou-o à maneira dos reis. Quanto aos despojos do Templo, ele os consagrou aos seus deuses. Enviou os escravos dentre o povo para certos lugares, nos arredores da Babilônia, a fim de que lá vivessem, e pôs Jeozadaque, sumo sacerdote, em liberdade. __________________ * Ou Sofonias. 426. Nebuzaradã, posto por Nabucodonosor como governador da Judéia, deixou lá o povo, os pobres e os fugitivos. Deu-lhes Gedalias, filho de Aicão, que era de família nobre e homem de bem, como governador e lhes impôs um tributo em favor do rei. O mesmo Nebuzaradã tirou Jeremias da prisão e rogou insistentemente ao profeta que o acompanhasse até a Babilônia, pois tinha ordem do rei, seu senhor, de ali fornecer-lhe tudo o que precisasse. E, caso não o quisesse seguir, bastava apenas dizer em que lugar gostaria de morar, a fim de comunicá-lo ao soberano. O profeta disse-lhe que não desejava nem uma coisa nem outra, mas desejava terminar os seus dias no meio das ruínas de sua pátria, para não perder de vista aquelas tristes relíquias de tão deplorável naufrágio. Nabuzaradã ordenou a Gedalias que tivesse dele um cuidado particular e, depois dar ao santo profeta grandes presentes e de conceder liberdade a Baruque, filho de Nerias, que também era de família nobre e muito instruída na língua de seu país, voltou para a Babilônia. Jeremias estabeleceu moradia na cidade de Mispa. Quando os hebreus que haviam fugido durante o cerco de Jerusalém e se retirado a diversos lugares souberam do regresso dos babilônios ao seu país, vieram de todos os lados ter com Gedalias em Mispa. Os principais eram Jorão, filho de Careá, Jezanias, Seraías e alguns outros. Ismael, que era de família real, porém muito mau e fingido junto de Batal,* rei dos amonitas, veio também. Gedalias aconselhou-os a trabalharem as suas terras sem nada mais temer da parte dos babilônios, que com juramento haviam prometido ajudá-los, caso alguém os incomodasse. Eles precisavam tão-somente dizer em que cidade queriam estabelecer-se, e ele daria ordens para as necessárias reparações, a fim de torná-las habitáveis. E não deveriam deixar passar a estação sem trabalhar com afinco, para poderem recolher o trigo e fazer vinho e óleo para se alimentarem durante o inverno. Ele permitiu em seguida que escolhessem os lugares que desejavam cultivar. Espalhou-se logo por várias províncias vizinhas da Judéia a notícia desse fato e da bondade com que Gedalias recebia todos os que se dirigiam a ele, dando-lhes terras para cultivar, com a condição de se pagar um tributo ao rei da Babilônia. Assim, muitos vieram procurá-lo de todos os lugares, e cada qual se pôs ao trabalho com entusiasmo. A grande humanidade de Gedalias granjeou-lhe depressa o afeto de João** e de todos os outros, até mesmo das pessoas mais importantes. E eles avisaram-no de que o rei dos amonitas enviara Ismael com o fim de matá-lo à traição e de se declarar rei de Israel, pois era de família real. O único meio de remediar o problema era ele permitir que matassem Ismael, a fim preservar o resto da nação da ruína que seria inevitável, caso Ismael cumprisse o seu perverso desígnio. Ele respondeu que não havia a menor probabilidade de Ismael, que recebera dele somente benefícios, atentar contra a sua vida e que, não tendo feito más ações durante os dias difíceis que vivera, ousasse cometer agora tão grande crime contra o seu benfeitor, ao qual deveria ajudar com todas as suas forças se algum outro o combatesse. Mesmo que fosse verdade aquilo de que o avisavam, ele preferia correr o risco de ser assassinado a fazer morrer um homem que viera buscar asilo junto dele e que nele havia confiado. Trinta dias depois, Ismael, acompanhado por dez de seus amigos, veio a Mispa visitar Gedalias — que os recebeu e tratou muito bem — e bebeu diversas vezes à saúde dele, para mostrar-lhe o seu afeto. Quando Ismael e os que com ele estavam perceberam que o vinho começava a perturbar Gedalias e que ele adormecera, mataram-no, bem como a todos os outros convidados, que haviam bebido bastante. Depois, auxiliados pela escuridão da noite, foram degolar os soldados babilônios e os judeus adormecidos na cidade. No dia seguinte de manhã, cerca de oitenta pessoas vieram do campo oferecer presentes a Gedalias. Ismael disse-lhes que falassem com ele. Depois de entrarem na casa, Ismael e seus cúmplices mataram-nos e os lançaram num poço muito profundo, para que ninguém percebesse o que se passara, com exceção de uns poucos que lhe prometeram mostrar no campo o lugar onde haviam escondido móveis, vestes e trigo. Ismael aprisionou também alguns habitantes de Mispa, mulheres e crianças, entre as quais estavam as filhas do rei Zedequias, deixadas por Nebuzaradã sob a custódia de Gedalias. Esse péssimo homem, depois de cometer tantos crimes, pôs-se a caminho, para voltar ao rei dos amonitas. João e outros homens da nobreza, seus amigos, ao saber o que se passara, ficaram muito irritados e reuniram o que puderam de homens armados, perseguiram Ismael e o alcançaram próximo da fronteira de Hebrom. Os que o acompanhavam pensaram que João e seus amigos vinham socorrê-los e passaram para o lado dele, com grandes demonstrações de alegria. Ismael, seguido apenas por uns oito dos seus, fugiu para o rei dos amonitas. João, seus amigos e os que ele havia salvado foram a Mandra, onde passaram todo aquele dia, mas ele teve a idéia de se dirigir para o Egito, temendo que os babilônios os mandassem matar por causa da morte de Gedalias, que eles lhes haviam dado como comandante. Antes, porém, foram se aconselhar com Jeremias. Rogaram-lhe que consultasse a Deus, prometendo com juramento fazer o que Ele ordenasse. O profeta assim fez, e dez dias depois Deus lhe apareceu e ordenou que dissesse a João, a seus amigos e a todo o povo que se eles ficassem onde estavam cuidaria deles e impediria que os babilônios lhes fizessem mal. Se fossem para o Egito, porém, Ele os abandonaria e lhes infligiria, em sua cólera, os mesmos castigos que aplicara aos seus outros irmãos. Jeremias deu-lhes essa resposta da parte de Deus, mas eles não prestaram fé às suas palavras nem acreditaram que era por ordem de Deus que ele lhes ordenava ficar. Convenceram-se de que ele dava aquele conselho para ser agradável a Baruque, seu discípulo, e para expô-los ao furor dos babilônios. Desprezaram então as ordens de Deus e foram para o Egito, levando com eles também Jeremias e Baruque. Deus então falou ao seu profeta e ordenou-lhe que dissesse ao seu povo que o rei da Babilônia faria guerra ao rei do Egito e o venceria. Então parte deles seria morta, e o resto, levado como escravo para a Babilônia. Os fatos confirmaram a veracidade dessa profecia, pois cinco anos depois da ruína de Jerusalém, que era o vigésimo terceiro ano do reinado de Nabucodonosor, esse soberano entrou com um grande exército na Baixa Síria e dela se apoderou. Venceu os amonitas e os moabitas e fez depois a guerra ao Egito. Conquistou-o, matou o rei que então governava e escolheu outro para o seu lugar. Em seguida, levou como escravos para a Babilônia todos os judeus que estavam no país. ___________________ * Ou Baalis. ** Ou Joana. 427. A nação dos hebreus estava então reduzida a esse estado miserável, e por dois fatos foi duas vezes levada para além do Eufrates. A primeira, quando sob o reinado de Oséias, rei de Israel, Salmaneser, rei dos assírios, depois de tomar Samaria, levou escravas dez tribos. A segunda quando Nabucodonosor, rei dos caldeus e dos babilônios, depois de tomar Jerusalém, levou as duas tribos que restavam. Salmaneser, porém, mandou para Samaria, da longínqua Pérsia e da Média, os chuteenses, para que a habitassem. Nabucodonosor, por sua vez, não mandou colônia alguma para as terras das duas tribos que derrotara. De modo que a Judéia, Jerusalém e o Templo ficaram desertos durante setenta anos. E assim, passaram-se cento e trinta anos, seis meses e dez dias desde o cativeiro das dez tribos que formavam o reino de Israel e o das duas que formavam o reino de Judá. 428. Daniel 1. Dentre todos os filhos da nação judaica, parentes do rei Zedequias e outros de origem mais ilustre, Nabucodonosor escolheu os que eram mais perfeitos e competentes e deu-lhes preceptores e mestres para que os educassem e instruíssem com grande cuidado. A alguns fez eunucos, como costumava fazer a todas as nações que derrotava. Ordenou que os alimentassem com as mesmas iguarias de sua mesa e os fez aprender não somente a língua dos caldeus e dos babilônios, mas também todas as ciências em que esses povos eram peritos. Dentre os moços que eram parentes de Zedequias, havia quatro perfeitamente honestos e inteligentes: Daniel, Hananias, Misael e Azarias, porém Nabucodonosor trocou-lhes os nomes. Deu a Daniel o nome de Beltessazar e a Hananias chamou Sadraque, a Misael, Mesaque e a Azarias, Abede-Nego. O excelente caráter deles, a beleza de sua inteligência e a sua grande sabedoria fez com que o príncipe lhes dedicasse um grande afeto. Eram tão sóbrios que preferiam comer apenas coisas simples, abstendo-se de seres vivos e das iguarias da mesa real. Assim, rogaram ao eunuco Aspenaz, sob cujos cuidados estavam, que tomasse para si o que era destinado a eles e lhes desse somente legumes, tâmaras e coisas semelhantes, que não tivessem tido vida, porque aqueles manjares os aborreciam. Ele respondeu que faria de muito boa vontade o que eles desejavam, mas temia que o rei viesse a percebê-lo pela mudança do rosto deles, porque a cor e a face têm sempre relação com o alimento que se come, e isso seria ressaltado ainda mais pela diferença entre eles e os outros moços, alimentados com melhores iguarias. Também não era justo que, para lhes ser agradável, ele se pusesse em risco de perder a vida. Quando viram que o eunuco estava disposto a servi-los, continuaram a insistir e conseguiram dele permissão para experimentar pelo menos por uns seis dias essa maneira de se alimentar e depois continuá-la, se não causasse alteração na saúde deles. Caso fosse notada alguma mudança em seus rostos, retomariam à antiga nutrição. Ele consentiu e, depois de constatar que não somente eles não se apresentavam mal, como ainda pareciam mais fortes e robustos que os outros moços de sua idade alimentados com as comidas da mesa do rei, continuou sem temor a tomar para si o que era destinado a eles e a alimentá-los do modo como desejavam. O corpo deles tornou-se mais belo e mais apropriado para o trabalho, e a sua inteligência, mais pronta e capaz, porque não era enfraquecida pelas delícias que tornam os homens efeminados. Fizeram grande progresso nas ciências dos egípcios e dos caldeus, particularmente Daniel, que se dedicou também à interpretação dos sonhos, e Deus o favorecia com revelações. 429. Daniel 2. Dois anos depois da vitória obtida por Nabucodonosor sobre os egípcios, esse príncipe teve um sonho estranho, do qual Deus lhe deu a explicação enquanto ele dormia. Depois que acordou, porém, esqueceu o sonho e o seu significado. Por isso mandou chamar os maiores sábios dentre os caldeus, os que se dedicavam à predição do futuro, chamados magos devido à sua sabedoria. Disse-lhes que tivera um sonho, mas o havia esquecido, e ordenou-lhes que lhe dissessem qual era e o que significava. Eles responderam que era impossível aos homens o que ele desejava. Tudo o que podiam fazer era explicar o sonho depois que ele o tivesse narrado. O rei ameaçou-os de morte se não obedecessem, e, como continuassem a dizer a mesma coisa, mandou matá-los. Daniel soube de tudo e, vendo que ele e seus companheiros corriam o mesmo risco, foi ter com Arioque, comandante da guarda real, para saber o motivo. Arioque contou, e então Daniel suplicou-lhe que rogasse ao rei para suspender a execução até o dia seguinte, porque estava confiante de que se pedisse a Deus para revelar o sonho, Ele ouviria a sua oração. O oficial foi referir tudo ao rei, e este consentiu em esperar. Daniel e seus companheiros passaram toda a noite em oração a fim de obter de Deus o livramento para os magos — e para eles também, pelo perigo em que os colocava a cólera do rei — e a manifestação do sonho que o rei havia esquecido. Deus, movido de compaixão, revelou a Daniel o sonho e o seu significado, para que fosse dizê-lo ao rei. A alegria de Daniel foi tão grande que ele se levantou no mesmo instante para comunicar aos companheiros a graça recebida de Deus. E, tendo-os encontrado muito tristes, pensando já na morte, animou-os a tomar coragem e alimentar maiores esperanças. Deram todos juntos muitas graças a Deus por ter tido piedade de sua juventude. Logo depois que raiou o dia, Daniel foi pedir a Arioque que o levasse à presença do rei, a fim de lhe dizer qual fora o sonho. Apresentando-se diante do soberano, ele disse que, embora fosse lhe manifestar o sonho, rogava que o não julgasse mais hábil que os magos que não o puderam fazer, pois na realidade não era mais sábio que eles: a revelação que tivera foi motivada pela compaixão que Deus sentira pelo perigo em que ele e seus companheiros se encontravam, por isso Ele lhe revelara o sonho e a sua significação. E acrescentou: "Eu, majestade, não estava menos apreensivo pelo risco que corríamos eu e os meus companheiros que pela tristeza de ver a injustiça que vossa majestade cometeu, condenando à morte tantos homens de bem por não terem conseguido fazer uma coisa inteiramente impossível aos homens, por mais inteligentes que sejam, e que somente Deus pode fazer. E vossa majestade não estava menos apreensivo pelo risco que corria e estava ansioso para saber quem dominaria depois de vossa majestade sobre todo o mundo. Deus, para vos fazer conhecer esses monarcas, fez-vos ver em sonhos uma grande estátua, cuja cabeça era de ouro, os ombros e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze e as pernas e os pés de ferro. Vossa majestade viu depois uma pedra rolar da montanha sobre a estátua, quebrando-a em pedaços e reduzindo-a a um pó mais fino que a farinha, o qual o vento levou sem que tivesse ficado o menor vestígio. Por fim, vossa majestade viu essa pedra crescer de tal modo que esmagou com o seu peso toda a terra. Esse foi, majestade, o vosso sonho, e esta é a explicação: a cabeça de ouro representa os reis da Babilônia vossos predecessores. Os ombros e os braços de prata significam que o vosso império será destruído por dois reis poderosos. As coxas de bronze dizem que outro rei, vindo do lado do ocidente, destruirá esses dois reis. As pernas e os pés de ferro mostram que, sendo o ferro mais duro que o ouro, a prata e o cobre, virá um outro conquistador, que subjugará esse". Daniel explicou também a Nabucodonosor o que significava a pedra, mas como o meu intento é narrar somente coisas passadas, e não as que estão por se realizar, nada mais direi. Se alguém desejar saber mais alguma coisa em particular, leia nas Sagradas Escrituras o livro de Daniel. Nabucodonosor, com transportes de alegria e de admiração por Daniel, prostrou-se diante dele para adorá-lo e ordenou a todos os seus súditos que lhe oferecessem sacrifícios, como ao seu Deus. Deu-lhe o nome daquEle que ele reconhecia antes por Deus e honrou-o, bem como aos seus parentes, com os primeiros cargos no seu império. Essa rápida e prodigiosa felicidade suscitou tão grande inveja contra essas quatro pessoas que poderia lhes ter custado a vida, como direi a seguir. 430. Daniel 3. Nabucodonosor mandou fazer uma estátua de ouro de sessenta côvados de altura e seis de largura, que foi colocada no grande campo da Babilônia. Quando de sua consagração, mandou vir de todas as partes de seu território as pessoas mais importantes e ordenou que ao primeiro som de trom-betas todos se prostrassem por terra para adorá-la, sob pena de ser lançado numa fornalha ardente quem não o fizesse. Todos obedeceram à ordem, exceto os amigos de Daniel, que disseram não poder fazê-lo sem violar as leis de seu país. Imediatamente acusaram-nos, e foram lançados na fornalha. Mas Deus os salvou por um efeito de seu infinito poder: o fogo, parecendo reconhecer a sua inocência, respeitava-os, em vez de consumi-los. Eles venceram as chamas, e tão grande milagre aumentou ainda mais o respeito e a estima que o rei já lhes devotava, porque os considerava pessoas de virtude extraordinária e muito particularmente queridos de Deus. 431. Daniel 4. Algum tempo depois, o príncipe teve outro sonho, no qual parecia que ele fora privado do reino e passara sete anos no deserto com os animais, sendo em seguida restaurado à primitiva dignidade. Mandou chamar os magos, contou-lhes o sonho e perguntou qual o seu significado. Mas nenhum deles soube responder. Daniel foi o único a explicá-lo, com tal perfeição que tudo o que disse depois se realizou. O príncipe tornou a subir ao trono depois de haver passado sete anos no deserto e aplacado a cólera de Deus com uma grande penitência, sem que ninguém durante todo esse tempo ousasse apoderar-se do trono. Quanto a isso, não devo ser censurado por narrar o que se pode ler nas Sagradas Escrituras, pois desde o princípio desta minha história preveni-me dessa acusação, declarando que não pretendia fazer outra coisa senão escrever em grego, em boa fé, o que encontro nos livros dos hebreus, sem nada aumentar nem diminuir. 432. Nabucodonosor morreu após reinar quarenta e três anos. Era um príncipe muito inteligente e foi muito mais feliz que os seus predecessores. Berose assim o descreve, no seu terceiro livro da História dos Caldeus: "Nabopolassar, pai daquele de quem acabamos de falar, tendo sabido que os governadores que ele pusera no Egito, na Baixa Síria e na Fenícia se haviam revoltado contra ele e não estando mais na idade de suportar as dificuldades de uma guerra contra eles, enviou Nabucodonosor, seu filho, com uma parte de suas forças. O jovem príncipe venceu os rebeldes, recolocou todas as províncias sob a obediência do rei seu pai e, tendo sabido que naquele mesmo tempo este morrera na Babilônia, após reinar vinte e um anos, passou a dirigir os destinos do Egito e das outras províncias. Deixou aos oficiais em quem mais confiava o encargo de levar o seu exército para a Babilônia com os escravos judeus, sírios, fenícios e egípcios. Acompanhado por alguns poucos, passou pelo deserto e marchou rapidamente. Depois de chegar, governou o império que fora administrado na sua ausência pelos magos caldeus, dos quais o principal e de maior autoridade nada levara tanto a peito para conservar-lhe o trono. E assim, ele sucedeu em todo o reino ao rei seu pai. Uma das primeiras coisas que fez foi distribuir em colônias os escravos recém-chegados. Consagrou no templo de Bel, seu deus, e em outros templos os ricos despojos que havia conquistado. Não se contentou em restaurar os antigos edifícios de Babilônia: aumentou também a cidade e fortificou o canal. Para impedir que a atacassem e a pudessem tomar depois de atravessar o rio, mandou fazer outro dentro. E fora, ergueu uma tríplice muralha, muito alta, de tijolos refratários. Fortificou também todas as outras partes da cidade. Fez portas monumentais e construiu um novo palácio perto do que fora do falecido rei seu pai, do qual seria inútil referir a beleza e a magnificência. Não poderia mesmo eu dizer que esse soberbo edifício foi construído em quinze dias. E, como a rainha, sua mulher, que fora educada na Média, desejava ver alguma semelhança com o seu país, mandou fazer, para lhe ser agradável, arcos por cima desse palácio, com grandes pedras que pareciam montes. Mandou cobrir esses arcos com terra e plantou sobre eles uma tal quantidade de árvores de todas as espécies que esse jardim, suspenso no ar, passou a ser uma das maravilhas do mundo". Megastene, no seu quarto livro da História das índias, faz menção desse admirável jardim e procura provar que esse príncipe sobrepujou muito a Hércules pela grandeza de seus feitos e conquistou não somente a capital da África, mas também a Espanha. Diocles também o cita na História da Pérsia, e Filóstrato, na da índia e da Fenícia, declarando que ele sitiou durante trinta anos a cidade de Tiro, da qual Stobal então era rei. Eis tudo o que pude encontrar nos vários historiadores com relação a esse príncipe. CAPÍTULO 12 MORTE DE NABUCODONOSOR, REI DA BABILÔNIA. EVIL-MERODAQUE, SEU FILHO, SUCEDE-O E PÕE JECONIAS, REI DE JUDÁ, EM LIBERDADE. SÉRIE DOS REIS DA BABILÔNIA ATÉ BELSAZAR. CIRO, REI DA PÉRSIA, E DARIO, REI DOS MEDOS, CERCAM-NO NA BABILÔNIA. VISÃO QUE ELE TEM, EXPLICADA POR DANIEL. CIRO TOMA A BABILÔNIA E APRISIONA O REI BELSAZAR. DARIO LEVA DANIEL PARA A MÉDIA E O ELEVA A GRANDES HONRAS. A INVEJA DOS NOBRES CONTRA ELE É CAUSA DE ELE SER LANÇADO NA COVA DOS LEÕES. DEUS O SALVA, E ELE TORNA-SE MAIS PODEROSO DO QUE NUNCA. SUAS PROFECIAS E SEU LOUVOR. 433. Depois da morte do rei Nabucodonosor, de que acabamos de falar, Evil-Merodaque, seu filho, sucedeu-o e não somente pôs Jeconias (que antes se chamava Joaquim), rei de Judá, em liberdade, como também deu-lhe ricos presentes, tornou-o mordomo-mor de seu palácio e dedicou a ele um afeto muito particular. E assim, tratou-o de uma maneira bem diferente da que Nabucodonosor o havia tratado, quando o amor pelo bem de seu país, como vimos, o fez entregar-se em boa fé nas mãos deste, com sua mulher, seus filhos e todos os seus bens, para que fosse levantado o cerco de Jerusalém, sendo que Nabucodonosor lhe faltou à palavra. Evil-Merodaque reinou dezoito anos. Niglizar, seu filho, sucedeu-o e reinou quarenta anos. Seu filho Labofordá, que o sucedeu, reinou somente nove meses. Belsazar, filho deste, a quem os babilônios chamam Naboandel, substituiu-o. Ciro, rei dos persas, e Dario, rei dos medos, fizeram-lhe guerra e o sitiaram na Babilônia. 434. Daniel 5. Enquanto a cidade era cercada, esse soberano oferecia um banquete aos nobres da corte e às suas concubinas numa sala onde havia um armário riquíssimo, em que se conservavam os preciosos vasos de que os reis se costumam servir. A isso ele quis acrescentar uma nova magnificência e ordenou então que fossem trazidos os vasos sagrados do templo de Jerusalém, os quais Nabucodonosor mandara colocar junto com os de seus deuses, porque não se atrevera a servir-se deles. Como Belsazar estava turvado pelo vinho, teve a ousadia de beber num daqueles vasos e de blasfemar contra Deus. No mesmo instante, ele viu uma mão sair da parede e escrever nela algumas palavras. A visão deixou-o atônito, e ele mandou buscar da Caldéia e de outras nações alguns dos maiores sábios que sabiam interpretar os sonhos e ordenou-lhes que dissessem o significado daquelas palavras. Eles responderam que era impossível. O seu sofrimento aumentou de tal modo que ele mandou apregoar que daria uma cadeia de ouro, uma túnica de púrpura, como as que usam os reis da Caldéia, e a terça parte do reino a quem interpretasse aquelas palavras. A promessa de tão grande recompensa fez chegar de todos os lados candidatos que passavam pelos mais hábeis e peritos. Todavia, por maiores esforços que todos fizessem, ninguém foi capaz de interpretá-las. A princesa sua avó, vendo-o em tal aflição, disse-lhe para não perder a esperança de que alguém lhe desse a explicação que desejava, porque havia entre os escravos que Nabucodonosor trouxera para a Babilônia depois da ruína de Jerusalém um certo Daniel, cuja ciência era extraordinária. Ele explicava coisas que somente eram conhecidas por Deus e interpretara um sonho que nenhum outro conseguira explicar. Precisava apenas mandar chamá-lo e dizer-lhe do seu desejo de saber o significado daquelas palavras, pois talvez até fosse algo inquietante que Deus quisesse comunicar. Diante de tal conselho, Belsazar mandou imediatamente chamar Daniel, disse-lhe o quanto se sentia feliz por saber que ele recebera de Deus o dom de penetrar e conhecer o que os outros ignoravam e rogou que lhe dissesse o que significavam as palavras escritas naquela parede, prometendo-lhe, se o fizesse, dar-lhe uma túnica de púrpura, uma cadeia de ouro e a terça parte de seu reino, para mostrar a todos, com aquelas demonstrações de honra, a sua sabedoria, quando fosse conhecida a causa de ele merecê-las. Daniel, ciente de que a sabedoria que vem de Deus deve sempre ter em vista fazer o bem sem pretender outra recompensa, suplicou ao rei que o dispensasse de aceitá-las. Disse-lhe em seguida que aquelas palavras significavam que o fim da vida de Belsazar estava próximo, porque ele não havia aprendido com o castigo com o qual Deus punira a impiedade de Nabucodonosor e nem aproveitara aquele exemplo para evitar colocar-se acima da sua condição de simples homem, pois não podia ignorar que aquele príncipe fora obrigado a viver durante sete anos à maneira dos animais e que só depois de muitas preces Deus, movido pela compaixão, o reconduziu ao convívio dos homens e o restabeleceu no trono. E Nabucodonosor foi tão grato que pelo resto de sua vida não deixou de dar a Deus contínuas ações de graças e de admirar o seu poder onipotente. No entanto Belsazar, em vez de se deixar levar por aquele exemplo, não tivera medo de blasfemar contra Deus e de beber com as suas concubinas nos vasos consagrados em honra dEle. Por isso Ele estava tão irritado que desejou manifestar por meio daquelas palavras qual seria o fim de sua vida. Daniel acrescentou ainda que esta era a explicação das palavras: Mene, isto é, "número", significava que o número que Deus marcara aos anos do reinado de Belsazar iria se completar, e lhe restava muito pouco tempo de vida. Tequel, isto é, "peso", significava que Deus havia pesado na sua justa balança a duração daquele reinado, e que ele tendia ao fim. Peres, que quer dizer "fragmento" e "divisão", significava que o reino seria dividido entre os medos e os persas. Por maior que fosse a dor que sentia, o rei Belsazar, sabendo pela explicação dessas palavras misteriosas as desgraças que o aguardavam, julgou que Daniel agira como um homem de bem e lhe dissera somente a verdade, e seria muito injusto maltratá-lo por essa razão. Por isso não deixou de o recompensar, dando-lhe o que prometera. 435. Naquela mesma noite, Babilônia foi tomada e Belsazar, morto. Isso aconteceu no dédicmo sétimo ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia. Dario, filho de Astíages, ao qual os gregos dão outro nome, tinha sessenta e dois anos quando, com o auxílio de Ciro, seu parente, destruiu o império da Babilônia. Levou consigo para a Média o profeta Daniel e, para mostrar até que ponto o estimava, nomeou-o um dos três governadores supremos, cujo poder se estendia sobre outros trezentos e sessenta, pois o considerava um homem todo divino e só se aconselhava com ele nos assuntos mais importantes. Os outros ministros, como geralmente acontece na corte dos reis, não podendo tolerar que ele fosse tão preferido, sentiram tal inveja que tudo fizeram para encontrar um motivo de caluniá-lo. Mas isso lhes foi impossível, porque a virtude de Daniel era tão grande e as suas mãos tão puras que ele julgava que seriam manchadas se recebessem presentes e considerava coisa vergonhosa desejar recompensa pelo bem que se faz. Eles, porém, não se arrependeram nem desistiram. E, faltando-lhes outros meios, imaginaram um pelo qual, pensaram, poderiam destruí-lo. Tendo notado que três vezes por dia ele fazia as suas orações a Deus, foram ter com o rei e disseram-lhe que todos os grandes e governadores do império haviam julgado conveniente elaborar um edito pelo qual seria proibido a todos os súditos, durante trinta dias, fazer orações a qualquer deus ou a qualquer homem, senão a ele, o rei, devendo ser lançados na cova dos leões todos os que desprezassem essa ordem. Dario, que não desconfiava de sua malícia, aceitou a proposta e mandou publicar esse edito em todo o seu território. Todos o observaram, exceto Daniel, que sem se impressionar continuou a fazer as suas orações a Deus, como era seu costume. Os seus inimigos não deixaram de ir imediatamente ao rei acusá-lo de ter violado a ordem. Afirmaram que ele fora o único a ousar desobedecer, e era tanto mais culpado porque não o fizera por um sentimento de piedade apenas, mas por saber que aqueles que não o estimavam observavam as suas ações. E, como esses nobres temiam que a grande afeição de Dario por Daniel o levasse a perdoá-lo, insistiram tanto em que fosse inflexível em fazer observar o seu edito e ordenasse que Daniel fosse atirado na cova dos leões que não lhe foi possível defender-se. Mas ele esperava que Deus libertasse Daniel do furor daqueles temíveis animais e exortou-o a suportar generosamente a sua desdita. E assim, foi Daniel atirado àquele lugar, e fecharam a porta com uma grande pedra. Dario mandou selá-la com o seu sinete e voltou para o palácio imerso em tão grande aflição pelo que poderia acontecer a Daniel que não quis comer e passou toda a noite sem dormir. No dia seguinte, ao despontar do sol, o rei foi à cova dos leões e viu que o seu selo estava intacto. Chamou Daniel por uma abertura que havia na entrada e perguntou, gritando com todas as suas forças, se ele ainda estava vivo. Daniel respondeu que não sofrerá mal algum, e o soberano no mesmo instante mandou que o retirassem de lá. Os inimigos de Daniel, em vez de reconhecerem que Deus o salvara por um milagre, disseram ousadamente ao rei que aquilo acontecera porque antes se dera demasiado alimento aos leões, os quais, não tendo mais fome, não o quiseram devorar. O rei ofendeu-se com a malícia deles e ordenou que se desse grande quantidade de carne aos leões e que depois de eles estarem fartos fossem atirados à cova os acusadores de Daniel, para ver se os animais os poupariam, como diziam haverem poupado Daniel. A ordem foi imediatamente executada, e ninguém mais pôde duvidar de que Deus salvara Daniel, porque os leões devoraram os caluniadores com tanta avidez que pareciam os mais esfomeados do mundo. Minha opinião, porém, é que foi o crime desses malvados, e não a fome, o que irritou os leões contra eles, porque Deus quis que esses animais irracionais fossem ministros de sua justiça e de sua vingança. Depois que os inimigos de Daniel foram assim punidos, Dario mandou publicar em todo o seu território que o Deus que Daniel adorava era o único verdadeiro e Todo-poderoso e elevou esse grande personagem a tão alto grau de honras que ninguém duvidava que ele fosse o homem mais estimado pelo rei em todo o império, e todos admiravam tão grande glória e tão extraordinário favorecimento da parte de Deus. Dario mandou construir em Ecbátana,* capital da Média, um soberbo palácio, que ainda hoje se vê e que parece ter sido recém-concluído, pois conserva o seu primitivo brilho, ao contrário do comum dos edifícios, aos quais o tempo apaga a beleza, envelhecendo-os como aos homens. É nesse palácio que está a sepultura dos reis dos medos, dos persas e dos partos. A sua guarda ainda hoje está confiada a um sacerdote de nossa nação. Nada encontro de mais admirável nesse grande profeta que esta felicidade particular e quase incrível de que desfrutou, acima dos demais: ter sido durante toda a sua vida honrado pelos reis e pelos povos e deixar depois de sua morte uma memória imortal. Os livros que ele escreveu, lidos ainda hoje, comprovam que Deus mesmo lhe falou e que ele não somente predisse em geral, como os outros profetas, as coisas que deviam acontecer, mas também determinou o tempo em que sucederiam. E, enquanto eles prediziam somente desgraças, o que os tornava odiosos aos soberanos e aos súditos, ele predisse coisas favoráveis, que levaram os reis a amá-lo. E a veracidade de suas palavras, confirmada depois pelos fatos, fez com que todos não somente prestassem fé às suas palavras, mas cressem que havia nele algo de divino. Narrarei uma de suas profecias, para mostrar como eram corretas. Ele disse que, tendo saído com os seus companheiros da cidade de Susã, que é a capital do reino da Pérsia, para tomar ar no campo, houve um tremor de terra, que surpreendeu e espantou de tal modo os que estavam com ele que todos fugiram e o deixaram sozinho. Ele lançou-se então com o rosto em terra e, estando assim nesse estado, percebeu que alguém o tocava e lhe dizia para levantar, a fim de ver as coisas que sucederiam muito tempo depois aos de sua nação. Depois que ele se ergueu, viu um carneiro que tinha vários chifres, sendo o último maior que os outros. Voltando os olhos para o lado do ocidente, viu aproximar-se um bode, que se chocou com o carneiro, derrubou-o e o pisou. Viu depois sair da fronte desse bode um chifre bem grande, que foi quebrado, e dele saíram outros quatro, voltados para os quatro ventos. Entre esses quatro chifres, surgiu um menor. Deus lhe disse que esse chifre, quando crescesse, faria guerra à sua nação, tomaria Jerusalém, aboliria todas as cerimônias do Templo e durante mil e duzentos e noventa e seis dias proibiria que ali se oferecessem sacrifícios. Depois que Deus lhe manifestou essa visão, explicou-a deste modo: o carneiro significava o império dos medos e dos persas, cujos reis eram representados pelos chifres. O maior era o último deles, porque sobrepujava a todos em riquezas e em poder. O bode significava que viria da Grécia um rei que venceria os persas e se tornaria senhor daquele grande império — o chifre grande significava esse rei. Os quatro chifres pequenos nascidos desse grande chifre e que se dirigiam para as quatro partes do mundo representavam aqueles que depois da morte desse soberano dividiriam entre si esse grande império, embora não fossem nem seus filhos nem seus descendentes. Eles reinariam durante vários anos, e de sua posteridade viria um rei que faria guerra aos judeus, aboliria todas as suas leis e toda a forma de sua república, saquearia o Templo e durante três anos proibiria que ali se oferecessem sacrifícios. Isso tudo aconteceu sob o reinado de Antíoco Epifânio. Esse grande profeta deu também notícia do império de Roma e da extrema desolação a que reduziria o nosso país. Deus lhe tornou patentes todas essas coisas, e ele as deixou por escrito para serem admiradas pelos que lhe vissem os efeitos, para mostrar os favores que recebera dEle e para confundir os erros dos epicureus, que, em vez de adorarem a Providência, dizem que Ele não se importa com os interesses deste mundo e que a terra não é conservada nem governada por essa suprema Essência, igualmente bem-aventurada, incorruptível e onipotente, mas subsiste por si mesma. Se eles considerassem verdade o que dizem, ver-se-iam logo perecendo como um navio que, não tendo piloto, é batido pela tempestade ou como um carro sem condutor, que é arrastado pelos cavalos. Não pode haver melhor prova que as profecias de Daniel para nos fazer constatar a loucura de quem não aceita que Deus tenha cuidado com o que se passa sobre a terra. Pois se tudo o que acontece no mundo é por acaso, como explicar o cumprimento de todas essas profecias? Julguei meu dever relatar tudo isso conforme o que encontrei nos Livros Santos, mas deixo a cada qual liberdade para ter outras opiniões ou acreditar no que quiser. __________________ * Ou Acmetá. Livro Décimo Primeiro CAPÍTULO 1 CIRO, REI DA PÉRSIA, PERMITE QUE OS JUDEUS VOLTEM AO SEU PAÍS E RECONSTRUAM JERUSALÉM E O TEMPLO. 436. Esdras 1 e Neemias 3. No primeiro ano do reinado de Ciro, rei dos persas, setenta anos depois que as tribos de Judá e de Benjamim foram levadas escravas para a Babilônia, Deus, tocado de compaixão pelo sofrimento delas, realizou o que havia predito pelo profeta Jeremias, antes mesmo da ruína de Jerusalém: que, passados setenta anos em dura escravidão, sob Nabucodonosor e seus descendentes, voltaríamos ao nosso país, reconstruiríamos o Templo e desfrutaríamos a nossa primeira felicidade. Assim, pôs Ele no coração de Ciro escrever uma carta e enviá-la por toda a Ásia. Eis o que declara o rei Ciro: "Cremos que o Deus Todo-poderoso, que nos constituiu rei de toda a terra é o Deus que o povo de Israel adora, pois Ele predisse por meio de seus profetas que nós traríamos o nome que trazemos e reconstruiríamos o Templo em Jerusalém, na Judéia, consagrado à sua honra". Esse soberano falava assim porque lera nas profecias de Isaías, escritas duzentos e dez anos antes que ele tivesse nascido e cento e quarenta anos antes da destruição do Templo, que Deus lhe tinha feito saber que constituiria a Ciro rei sobre várias nações e inspirar-lhe-ia a resolução de fazer o povo voltar a Jerusalém para reconstruir o Templo. Essa profecia causou-lhe tal admiração que, desejando realizá-la, mandou reunir na Babilônia os principais dos judeus e anunciou que lhes permitia voltar ao seu país e reconstruir a cidade de Jerusalém e o Templo, que eles não deveriam duvidar de que Deus os auxiliaria nesse desígnio e que escreveria aos príncipes e governadores de suas províncias vizinhas da judéia para que lhes fornecessem o ouro e a prata de que iriam precisar e as vítimas para os sacrifícios. Depois desse favor, os chefes das tribos de Judá e de Benjamim dirigiram-se imediatamente a Jerusalém com sacerdotes e levitas. Os que não quiseram deixar os seus bens ficaram na Babilônia. Chegaram depois os nobres aos quais o rei havia escrito e contribuíram com ouro e prata. Alguns deram-lhe animais, como cavalos. Outros, que haviam feito votos, ofereciam sacrifícios solenes para cumpri-los, tal como fariam se tivessem de começar a construir a cidade e realizar pela primeira vez as cerimônias que nossos pais observavam. Ciro restituiu nesse mesmo tempo os vasos sagrados tomados do Templo no reinado de Nabucodonosor e que haviam sido levados para a Babilônia. Encarregou disso Mitredate, seu tesoureiro-mor, com ordem de confiá-los aos cuidados de Sesbazar, para os que guardasse até que o Templo fosse reconstituído e os entregasse então aos sacerdotes e aos principais dos judeus, para que fossem recolocados no Templo. Escreveu também esta carta aos governadores da Síria: "O rei Ciro, a Sisina* e a Sarabazam, saudação. Nós permitimos a todos os judeus que moram em nosso território e que quiserem voltar ao seu país que para lá se retirem com toda liberdade e reconstruam a cidade de Jerusalém e o Templo de Deus. Enviamos Zorobabel, seu príncipe, e Mitredate, nosso tesoureiro-mor, para que lhe lancem os alicerces e o elevem à altura de sessenta côvados, com a mesma largura, e três ordens de pedras polidas e uma da madeira que existe naquela província. Queremos também que lá se erga um altar para se oferecerem sacrifícios a Deus e entendemos que todas as despesas sejam feitas por nossa conta. Restituímos também, por meio de Mitredate e de Zorobabel, os vasos sagrados que o rei Nabucodonosor retirou do Templo, para que lá sejam recolocados. Seu número é de cinqüenta bacias de ouro e quatrocentas de prata; cinqüenta vasos de ouro e quatrocentos de prata; cinqüenta baldes de ouro e quinhentos de prata; trinta grandes pratos de ouro e trezentos de prata; trinta grandes taças de ouro e duas mil e quatrocentas de prata; e, além disso, mil outros grandes vasos. Concedemos ainda aos judeus as mesmas rendas de que seus predecessores desfrutavam e lhes damos como compensação animais, vinho e óleo, duzentas e cinco mil e quinhentas medidas de trigo, que queremos que sejam tomadas nas terras de .Samaria. Os sacerdotes oferecerão a Deus todas as vítimas em Jerusalém, segundo a lei de Moisés, e rogarão pela nossa prosperidade, pela de nossos descendentes e pelo império dos persas. E, se alguns forem tão obstinados que não queiram obedecer às nossas ordens, queremos que sejam crucificados e que os seus bens sejam confiscados em nosso proveito". Era o que diziam as cartas de Ciro. O número de judeus que voltaram a Jerusalém foi de quarenta e dois mil quatrocentos e sessenta e dois. _________________ * Ou Tatenai. CAPÍTULO 2 OS JUDEUS COMEÇAM A RECONSTRUIR JERUSALÉM E O TEMPLO. DEPOIS DA MORTE DE CIRO, OS SAMARITANOS E AS OUTRAS NAÇÕES VIZINHAS ESCREVEM AO REI CATNBISES, SEU FILHO, PARA QUE MANDE SUSPENDER O TRABALHO. 437. Esdras 4. Depois da ordem expedida por Ciro, os judeus lançaram os alicerces do Templo e trabalharam com ardor para reconstruí-lo. As nações vizinhas, particularmente os chuteenses, que Salmaneser, rei da Assíria, fizera vir da Pérsia e da Média para povoar Samaria depois de haver levado os israelitas, pediram aos governadores e aos que tinham o encargo da direção dessa obra que ordenassem aos israelitas cessar os trabalhos e suspender a reconstrução da cidade. Esses indivíduos, subornados por elas, venderam-lhes a negligência com a qual executaram a sua comissão, mas Ciro não lhes deu atenção porque estava ocupado com a guerra contra os massagetas, na qual veio a morrer. Cambises,* seu filho, sucedeu-o, e logo que subiu ao trono os sírios, os fenícios, os amonitas, os moabitas e os samaritanos escreveram-lhe esta carta: "Majestade, Reum, vosso chanceler, Sinsai, vosso secretário, e todos os outros oficiais da Síria e da Fenícia, vossos servidores. Nós nos julgamos obrigados a vos advertir de que os judeus, que haviam sido transferidos para a Babilônia, retornaram a este país. Eles reconstroem a sua cidade, que foi destruída por causa de sua revolta. Eles ergueram novamente as suas muralhas, estabeleceram os seus mercados, e também reconstroem o Templo. Se isso lhes for mesmo permitido, majestade, e eles continuarem os trabalhos, logo que os terminarem certamente hão de se recusar a pagar o tributo a vossa majestade e a fazer o que vossa majestade lhes determinar, porque estão sempre prontos a opor-se aos reis, pela sua inclinação a querer mandar e nunca obedecer. Por isso, vendo com que entusiasmo eles trabalham na reconstrução do Templo, julgamos nosso dever avisar vossa majestade que, se vos aprouver ler os registros dos reis vossos prede-cessores, vereis que os judeus são naturalmente inimigos dos soberanos e que por esse motivo a sua cidade foi destruída. A isso podemos acrescentar que, se vossa majestade permitir que eles a reconstruam e a cerquem de novo com muralhas, eles vos fecharão a passagem da Fenícia e da Baixa Síria". ____________________ * Ou Artaxerxes. CAPÍTULO 3 CAMBISES, REI DOS PERSAS, PROÍBE AOS JUDEUS CONTINUAR A RECONSTRUIR O TEMPLO E JERUSALÉM. ELE MORRE AO SEU REGRESSO DO EGITO. OS MAGOS GOVERNAM O REINO DURANTE UM ANO. DARIO É CONSTITUÍDO REI. 438. Essa carta deixou Cambises muito irritado. E, sendo naturalmente mau, respondeu: "O rei Cambises, a Reum, nosso chanceler, a Sinsai, nosso secretário, a Belcem e aos outros habitantes de Samaria e da Fenícia, saudação. Depois de receber a vossa carta, mandamos consultar o registro dos reis nossos predecessores e lá encontramos que a cidade de Jerusalém foi sempre, desde todos os tempos, inimiga dos reis, que os seus habitantes são sediciosos, sempre prontos a se revoltar, e que ela foi governada por príncipes poderosos e muito empreendedores, os quais exigiram à força grandes tributos da Síria e da Fenícia. Para impedir que o atrevimento desse povo possa levá-lo a novas rebeliões, proibimos que eles continuem a reconstruir a cidade". Mal receberam essa carta, Reum, Sinsai e os outros rumaram para Jerusalém com um grande séquito e proibiram aos judeus reconstruir a cidade e o Templo. Assim, o trabalho ficou interrompido durante nove anos, até o segundo ano do reinado de Dario, rei da Pérsia. Cambises reinou apenas dois anos e morreu em Damasco, ao seu regresso do Egito, que ele havia subjugado. Os magos, depois de sua morte, governaram o reino durante um ano, com poder absoluto. Mas os chefes das sete principais famílias da Pérsia os depuseram e de comum acordo constituíram Dario, filho de Histaspe, rei. CAPÍTULO 4 DARIO, REI DA PÉRSIA, PROPÕE A ZOROBABEL, PRÍNCIPE DOS JUDEUS, E A DOIS OUTROS QUESTÕES PARA SEREM RESOLVIDAS. ZOROBABEL RESOLVE-AS E RECEBE COMO RECOMPENSA A RESTAURAÇÃO DE JERUSALÉM E DO TEMPLO. UM GRANDE NÚMERO DE JUDEUS VOLTA EM SEGUIDA PARA JERUSALÉM SOB O COMANDO DE ZOROBABEL E TRABALHA NESSA OBRA. OS SAMARITANOS E OUTROS POVOS PEDEM A DARIO QUE A IMPEÇA. MAS ESSE PRÍNCIPE FAZ JUSTAMENTE O CONTRÁRIO. 439. Esdras 5 e 6. Dario era ainda um simples cidadão, mas fizera a Deus um voto: se um dia subisse ao trono, restituiria ao Templo em Jerusalém tudo o que estava ainda na Babilônia dos vasos sagrados. Quando ele foi proclamado rei, aconteceu que Zorobabel, príncipe dos judeus, que era seu velho amigo, estava próximo dele. E assim, confiou a ele e a dois outros dos principais a direção de sua casa e de tudo o que mais de perto se referia à sua pessoa. O grande rei, no primeiro ano de seu reinado, ofereceu um suntuoso banquete aos seus principais auxiliares, aos maiorais dos medos e dos persas e aos governadores das cento e vinte e sete províncias sobre as quais estendia o seu domínio, que ia desde as índias até a Etiópia. Terminado o banquete, todos se retiraram, e Dario dormiu um pouco, mas logo acordou. Não podendo conciliar o sono novamente, pôs-se a conversar com aqueles três oficiais. Ele prometeu conceder a quem melhor resolvesse o problema que iria propor que se vestisse de púrpura, usasse um colar de ouro, bebesse em taça de ouro, dormisse em um leito de ouro, passeasse num carro em que os arreios dos cavalos eram de ouro, usasse uma tiara de fino linho, se sentasse perto dele e fosse considerado seu parente. Perguntou então ao primeiro se a mais forte de todas as coisas do mundo não era o vinho. Ao segundo, se não eram os reis. Ao terceiro, se não eram as mulheres ou a verdade. Disse-lhes que pensassem. No dia seguinte, pela manhã, mandou chamar os príncipes, os grandes senhores da Pérsia e da Média, sentou-se no trono de onde costumava distribuir a justiça e ordenou aos três oficiais que respondessem na presença de toda a assembléia às perguntas que havia feito. O primeiro, para mostrar a força do vinho, falou assim: "Parece-me não haver melhor prova para mostrar que tudo cede à força do vinho que vermos como ele perturba a razão e põe os próprios reis em tal estado que eles se tornam como crianças, as quais têm necessidade de serem guiadas; como dá aos escravos a liberdade de falar, deles tirada pela escravidão, e torna os pobres tão contentes quanto os ricos; como muda de tal sorte o Espírito dos homens que, mesmo nas maiores misérias, afoga os sentimentos de sua desgraça; como os faz esquecer a própria desdita e os persuade de que estão em tal abundância que só falam de milhões; como lhes põe na boca as palavras que usam os que se encontram no cume da glória e lhes tira o medo das pessoas mais temíveis e dos maiorais monarcas; como os faz não conhecer e até odiar os seus melhores amigos. Depois eles adormecem e, despertando, encontram-se com o Espírito tranqüilo e nem se lembram mais do que disseram ou fizeram durante a embriaguez. Assim, creio que o vinho deve passar pela coisa mais forte do mundo". Depois que o primeiro assim falou em favor do vinho, o outro, encarregado de mostrar que nada iguala ao poder dos reis, procurou prová-lo com estas palavras: "Ninguém pode duvidar de que os homens são os senhores do universo, pois dominam toda a terra e o mar e fazem uso dos elementos para o que bem lhes parece. Mas os reis governam os homens e reinam sobre aqueles que dominam todos os animais. Que há, pois, que se possa comparar ao seu poder? Eles governam os seus súditos, e estes estão sempre prontos a obedecê-lo. Ele os põe, quando lhe apraz, em todos os perigos da guerra, e, embora seja necessário forçar muralhas ou combater em campo aberto ou atacar em montes inacessíveis, eles não impõem dificuldade para se expor à morte e obedecê-lo. Depois de vencerem as batalhas, obtendo vitórias à custa do próprio sangue, toda a vantagem e toda a glória reverte em favor do rei, bem como o fruto dos trabalhos e dos suores daqueles dentre o povo que, enquanto os demais pegam em armas, cultivam a terra. Assim, os príncipes recolhem o que não tiveram o trabalho de semear, desfrutam todas as espécies de prazer e dormem à vontade, enquanto os seus guardas velam à porta sem dela se afastar, por maiores que sejam as necessidades que os chamem a outros lugares. Pode-se, pois, duvidar de que o poder dos reis não supere a todos os outros?" Zorobabel, que devia falar por último, para mostrar que o poder das mulheres e da verdade é o mais forte, assim se expressou: "Estou de acordo com a força do vinho e o poder dos reis, mas ouso afirmar que o poder das mulheres é ainda maior. Os homens e os reis têm nelas a sua origem, e, se elas não tivessem posto no mundo os que cultivam as terras, a vinha não produziria o fruto cujo suco é tão agradável. De tudo teríamos falta sem as mulheres. Devemos ao seu trabalho as principais comodidades da vida: elas fiam a lã e o tecido com que nos vestimos. Têm cuidado de nossas famílias, e não poderíamos passar sem elas. A sua beleza tem tanto encanto que nos fazem desprezar o ouro, a prata e tudo o que há de mais rico no mundo para ganharmos o seu afeto. Para segui-las, abandonamos sem pesar mãe, pai, parentes, amigos e a nossa própria pátria. Fazemo-las senhoras não somente de tudo o que conquistamos com mil trabalhos na terra e no mar, mas de nós mesmos. Acrescentarei que vi o rei, senhor de tantas nações, permitir que Apaméia, sua senhora, filha de Rapsacés Temasim, lhe batesse no rosto e lhe arrancasse a coroa para pô-la na própria cabeça e vi o grande príncipe rir-se quando ela estava de bom humor, afligir-se quando ela estava triste, adulá-la, unificar-se aos sentimentos dela e rebaixar-se até pedir-lhe desculpas quando julgava tê-la desgostado em alguma coisa". Todos os assistentes ficaram tão impressionados com essas palavras que começaram a se entreolhar. Zorobabel então passou do louvor às mulheres ao da verdade: "Mostrei qual o poder das mulheres, mas nem as mulheres nem os reis são comparáveis à verdade. Por maior que seja a terra, por mais alto que seja o céu, por mais rápido que seja o curso do Sol, é Deus que os move e governa. Deus é justo e verdadeiro, e assim é evidente que nada se iguala ao poder da verdade. A injustiça nada pode contra ela. Enquanto todas as demais coisas são perecíveis e passam como um relâmpago, ela é imortal e subsiste eternamente. Além disso, as vantagens com que nos enriquece não duram menos que ela mesma: a fortuna não poderia tirá-la de nós nem o tempo alterá-la, porque está acima do alcance deles. E ela é tão pura que nada a pode corromper". Zorobabel assim falou, e muitos louvaram-no e confessaram que ele havia provado muito bem que nada é mais poderoso que a verdade, a qual jamais envelhece e não está sujeita a mudanças. O rei disse-lhe que declarasse o que desejava daquilo que prometera ao que melhor respondesse às questões propostas, e o concederia de boa vontade, reconhecendo-o como o mais sábio e mais inteligente de todos. Disse ainda que desejava, no futuro, receber os seus conselhos e ter tanta consideração por ele como a um parente. Zorobabel respondeu-lhe que não lhe pedia outra graça senão que cumprisse o voto que havia feito antes de ser elevado à dignidade da coroa: mandar reconstruir Jerusalém, restaurar o Templo de Deus e restituir todos os vasos sagrados que o rei Nabucodonosor mandara tirar e levar para a Babilônia. O rei então levantou-se do trono com o rosto alegre, beijou Zorobabel e ordenou que se escrevesse aos governadores de suas províncias, para que o ajudassem a reconstruir o Templo, bem como aos que o acompanhassem na viagem a Jerusalém. Deu também aos magistrados da Síria e da Fenícia ordem para que mandassem cortar cedros sobre o monte Líbano e os fizessem levar a Jerusalém e para que ajudassem os que iam reconstruir a cidade. Essas mesmas cartas diziam que o rei desejava que todos os judeus que fossem a Jerusalém de volta do cativeiro fossem libertados, proibiam a todos os seus oficiais fazer-lhes imposições ou obrigá-los a pagar tributo e ordenavam que lhes fosse permitido cultivar todas as terras aproveitáveis. O rei ordenava aos idumeus, aos samaritanos e aos da Baixa Síria que lhes entregassem tudo o que os seus pais haviam possuído e contribuíssem com cinqüenta talentos para a construção do Templo. Permitia também aos judeus oferecer a Deus os mesmos sacrifícios e observar as mesmas cerimônias que seus antepassados. Podiam ainda tomar do fundo dos bens reais o que fosse necessário para as vestes dos sumos sacerdotees e dos outros sacerdotes e para os instrumentos de música com os quais os levitas cantavam louvores a Deus, e a cada ano se daria aos guardas do Templo e da cidade terras e o dinheiro necessário à sua manutenção. Por fim, Dario confirmou tudo o que Ciro havia determinado, tanto para a restauração da nação judaica quanto para a restituição dos vasos sagrados. 440. Depois que Zorobabel obteve do soberano tudo o que podia desejar, a primeira coisa que fez ao sair do palácio foi elevar os olhos ao céu e agradecer a Deus o favor que Ele lhe fizera, ou seja, torná-lo perante o príncipe o mais hábil e inteligente de todos. Confessou que devia toda a sua felicidade ao auxílio dEle e pediu que Ele continuasse a ajudá-lo. Quando chegou à Babilônia e deu essa grata notícia aos de sua nação, eles também deram graças a Deus por Ele haver permitido que se restabelecessem em sua pátria e passaram sete dias inteiros em festas de regozijo. As famílias escolheram em seguida pessoas de sua tribo para que fossem levadas a Jerusalém e procuraram cavalos e outros animais para carregar as suas mulheres e filhos. Assim uma grande multidão de todas as idades e ambos os sexos, guiadas por aqueles que Dario havia posto à frente, fez toda a caminhada com incrível alegria, ao som de flautas e de timbales. O temor de aborrecer o leitor e de interromper o fio de minha narração não me deixará mencionar nomes em particular. Contentar-me-ei em dizer o seu número. Havia nas tribos de Judá e de Benjamim, da idade de doze anos para cima, quatro milhões seiscentas e vinte e oito mil pessoas. A multidão era seguida por quatro mil e setenta levitas e quarenta mil setecentos e quarenta e duas mulheres e crianças. Da estirpe dos levitas, havia cento e vinte e oito cantores, cento e dez porteiros e trezentos e vinte e dois que serviam no Santuário. Seis-centos e cinqüenta e dois se diziam israelitas, rrias, sem poder prová-lo, não foram reconhecidos como tais. Quinhentos e vinte e cinco haviam desposado mulheres que eles diziam ser da descendência dos sacerdotes e dos levitas, mas os seus nomes não constavam das genealogias. Sete mil trezentos e trinta e sete escravos caminhavam atrás deles, bem como duzentos e quarenta cantores e cantoras. Havia ainda quatrocentos e trinta e cinco camelos e quinhentos e vinte e cinco cavalos ou outros animais de carga no transporte das bagagens. Zorobabel, de que falamos há pouco, era filho de Sealtiel, da tribo de Judá e da estirpe de Davi. Ele chefiava essa grande multidão, auxiliado por Jesua, filho de Jozadaque, sumo sacerdote, Mardoqueu e Cerebeu, escolhidos pelas outras duas tribos. Os dois últimos contribuíram, das próprias economias, com cem peças de ouro e cinco mil de prata para as despesas dessa viagem. Os sacerdotes, os levitas e uma parte do povo judeu que estava na Babilônia voltaram para morar novamente em Jerusalém, e os que lá ficaram os acompanharam durante uma parte do caminho e depois retornaram. 441. Sete meses depois, Jesua, sumo sacerdote, e o príncipe Zorobabel enviaram a toda parte convites aos de sua nação, para que se dirigissem a Jerusalém. Eles foram com grande alegria e, depois de construírem um altar no mesmo local onde estivera o primeiro, ofereceram sacrifícios a Deus segundo o que Moisés havia determinado. As nações vizinhas viram isso com grande desprazer, por causa do ódio que lhe votavam. Os judeus celebraram também nesse mesmo tempo a festa dos Tabernáculos, segundo fora instituída anteriormente: fizeram as oblações e os sacrifícios que se deviam fazer todos os dias, como também os dos sábados, das festas sagradas e das solenidades ordinárias. Os que haviam feito votos cumpriram-nos, oferecendo sacrifícios depois da lua nova do sétimo mês. Começaram depois a trabalhar na construção do Templo, sem lastimar a despesa necessária para o pagamento e a alimentação dos operários. Os sidônios enviaram, com bastante agrado, grandes vigas de cedro, que haviam cortado nas florestas do monte Líbano e ligado umas às outras, fazendo-as flutuar nas águas do mar até o porto de Jope, como Ciro e Dario haviam determinado. Depois de no segundo mês do segundo ano lançarem os alicerces do Templo, começaram, no dia primeiro de dezembro, a construir a parte superior. Todos os levitas com vinte anos ou mais, e Jesua, com os seus três filhos e seus irmãos, e Cadmiel, irmão de Judá, filho de Aminadabe, com os seus filhos, que haviam sido encarregados da direção dessa obra, nela trabalharam com tanto empenho e solicitude que a concluíram muito antes do esperado. Então os sacerdotes, revestidos de seus vestes sacerdotais, marcharam ao som de trom-betas, enquanto os levitas e os descendentes de Asafe cantavam em louvor a Deus hinos e salmos compostos pelo rei Davi. Os mais antigos do povo, que haviam contemplado a magnificência e a riqueza do primeiro templo, considerando o quanto esse estava longe de igualá-lo e julgando assim a grande diferença entre a sua prosperidade no passado e a presente, sentiram tão profunda dor que não puderam reter as lágrimas e soluços. O povo em geral, porém, ao qual somente o presente podia impressionar, não fazia tal comparação. Estava tão contente que as queixas de uns e os gritos de júbilo de outros impediam que se ouvisse o som das trombetas. 442. Essa notícia chegou até Samaria, e os habitantes dessa cidade vieram indagar o que se passava. Ao saber que os judeus, regressando do cativeiro da Babilônia, haviam reconstruído o Templo, rogaram a Zorobabel, a Jesua, sumo sacerdote, e aos principais das tribos que lhes permitissem contribuir para aquelas despesas, dizendo que adoravam o mesmo Deus e que não tinham outra religião desde que Salmaneser, rei da Assíria, os trouxera da Chutéia e da Média para morar em Samaria. Todos de comum acordo responderam que não podiam fazer o que desejavam, porque Ciro e Dario haviam permitido que só eles, os judeus, reconstruíssem o Templo, mas que isso não impediria que eles e todos os de sua nação viessem adorar a Deus, o que podiam fazer com toda a liberdade. Os chuteenses (pois é assim que chamamos os samaritanos) ficaram tão ofendidos com essa resposta que persuadiram os sírios e seus governados a empregar, para impedir a construção do Templo, os mesmos meios de que se haviam servido outrora, nos tempos de Ciro e de Cambises, acrescentando que não havia um momento a perder, por causa da pressa com que os judeus trabalhavam naquela obra. Naquele mesmo tempo, Sisina, governador da Síria e da Fenícia, acompanhado por Sarabazam e por alguns outros, veio a Jerusalém e perguntou aos principais dos judeus quem lhes permitira reconstruir o Templo, fazendo-o tão robustecido que mais parecia uma fortaleza, e também cercar toda a cidade com muralhas tão espessas. Zorobabel e o sumo sacerdote responderam que eram servidores do Deus Todo-poderoso; que o Templo fora outrora construído em sua honra por um de seus reis, que era um dos mais bem-aventurados príncipes do mundo, ao qual nenhum outro jamais se igualara em sabedoria e em inteligência; que aquele soberbo edifício fora conservado intacto durante vários séculos; que seus antepassados, tendo desgostado a Deus com os seus pecados, haviam permitido que Nabucodonosor, rei de Babilônia e da Caldéia, tomasse a cidade e a destruísse e incendiasse, bem como ao Templo, depois de retirar dele tudo o que existia de mais precioso, e levasse o povo escravo para a Babilônia; que Ciro, depois rei da Pérsia e da Babilônia, ordenara expressamente, por cartas escritas a esse respeito, que se reconstruísse o Templo e que depois de terminado se levassem para lá os vasos sagrados que haviam sido dele retirados e que os confiara a Zorobabel e a Mitredate, seu tesoureiro-mor; que antes, para apressar a construção do Templo, havia mandado Abazar a Jerusalém, o qual então já lhe lançara os alicerces; que desde então somente as nações inimigas haviam feito esforços para impedir os trabalhos; e que, como prova daquela afirmação, ele precisava apenas escrever ao rei, para que este lhe mostrasse nos registros dos reis precedentes se tudo não se havia passado como estavam dizendo. Sisina e os que o acompanhavam ficaram satisfeitos com essas razões e não impediram a continuação dos trabalhos, mas indagaram antes da vontade do rei e para isso lhe escreveram. No entanto os judeus temiam que esse príncipe se arrependesse da permissão concedida, porém os profetas Ageu e Zacarias disseram-lhes que nada temessem, nem de Dario nem dos persas, porque estavam informados da vontade de Deus sobre aquele assunto. Assim, tranqüilizaram-se e continuaram a trabalhar com o mesmo ardor. Os samaritanos ou chuteenses não deixaram, por sua vez, de escrever ao rei Dario, contando que os judeus fortificavam a sua cidade e construíam um templo que mais parecia uma fortaleza que um lugar destinado ao culto a Deus. E, para testemunhar ao rei o quanto aquilo lhe seria prejudicial, mandaram-lhe as cartas do rei Cambises pelas quais ele havia proibido a continuação daquelas obras, pois não as julgava proveitosas para o seu serviço. Quando Dario recebeu essas cartas e as de Sisina, mandou procurar os registros dos reis. Encontraram um deles no castelo de Ecbátana, na Média, onde estava escrito assim: "O rei Ciro ordenou no primeiro ano de seu reinado que se construísse em Jerusalém um templo de sessenta côvados de altura e outros tantos de largura, com três ordens de pedras polidas e uma da madeira que se encontra naquele país; que se edificasse um altar naquele templo; que tudo seria feito às suas expensas; que os vasos sagrados retirados por Nabucodonosor seriam levados para lá; e que Abazar, governador da Síria e da Fenícia, e os oficiais da província tomariam o cuidado de mandar prosseguir a obra sem no entanto ir a Jerusalém, porque os judeus, que eram servidores de Deus, e seus príncipes deveriam assumir a direção. Seria suficiente ajudá-los com o dinheiro que se obteria dos tributos das províncias e dar-lhes para os seus sacrifícios touros, carneiros, cordeiros, cabritos, farinha, óleo, vinho e todas as outras coisas que os sacerdotes lhes pedissem, a fim de que rogassem pela prosperidade dos reis e pelo império dos persas. E, se alguém se atrevesse a desobedecer a essa ordem, que fosse crucificado e tivesse todos os seus bens confiscados. A isso acrescentou uma imprecação que atingiu a todos os que quisessem impedir a construção do Templo. Ele rogava a Deus que fizesse desencadear sobre eles a sua justa vingança, para castigá-los por tal impiedade". Dario, tendo visto os registros de Ciro, escreveu a Sisina e aos seus outros oficiais o que segue: "O rei Dario a Sisina, lugar-tenente-general de nossa cavalaria, a Sarabazam e aos outros governadores, saudação. Mandamo-vos a cópia das ordens do rei Ciro que encontramos nos seus registros e queremos que o que elas contêm seja rigorosamente executado. Adeus!" Sisina e os outros aos quais era endereçada essa carta, tendo conhecido a intenção do rei, nada esqueceram, no que dependia deles, para executá-la e ajudaram os judeus com todas as suas forças para que pudessem continuar as obras do Templo. Com esse auxílio, as obras progrediram e, pelo entusiasmo que as profecias de Ageu e de Zacarias continuavam a dar ao povo, o Templo foi terminado ao fim de sete anos, no nono ano do reinado de Dario e no vigésimo terceiro dia do décimo primeiro mês a que chamamos adar, e os macedônios, distro. Os sacerdotes, os levitas e o resto do povo deram graças a Deus por lhes permitir recuperar a antiga felicidade depois de tão longo cativeiro e por lhes dar o novo Templo. Ofereceram-lhe em sacrifício cem touros, duzentos carneiros, quatrocentos cordeiros e doze bodes pelos pecados das doze tribos. Os levitas escolheram entre eles alguns porteiros, para distribuí-los por todas as portas do Templo, segundo ordenava a lei de Moisés. A festa dos Pães Ázimos aproximava-se e devia ser celebrada no primeiro mês, a que os macedônios denominam xântico, e nós, nisã. O povo das aldeias e das cidades veio a Jerusalém com as suas mulheres e filhos e, depois de se haverem purificado, ofereceram o cordeiro pascal no décimo quarto dia da lua do mesmo mês, segundo o costume de nossos antepassados. Passaram sete dias em banquetes de regozijo, sem deixar de oferecer a Deus os holocaustos e de agradecer-lhe por haver tocado o coração do rei, que lhes permitira regressar ao seu país. Estabeleceram em seguida uma nova forma de governo aristocrático, no qual os sumos sacerdotes tiveram sempre autoridade soberana, até que os hasmoneus chegaram à realeza e assim os judeus tornaram a entrar no governo monárquico, sob o qual tinham vivido durante quinhentos e trinta e dois anos, seis meses e dez dias, desde Saul e Davi até o cativeiro. Antes também haviam sido governados durante mais de quinhentos anos, desde Moisés e Josué, por aqueles aos quais davam o nome de juizes. No entanto os samaritanos, que além do ódio e da inveja que tinham de nossa nação, não podiam tolerar a obrigação de contribuir com as coisas necessárias para os nossos sacrifícios e além disso se vangloriavam de ser do mesmo país que os persas, não deixavam do mesmo modo de nos fazer todo o mal que podiam. E os governadores da Síria e da Fenícia não perdiam ocasião alguma de secundá-los em seus desígnios. O senado e o povo de Jerusalém, vendo-os tão animados contra si, resolveram enviar Zorobabel e quatro outros dos mais ilustres a Dario para se queixar dos samaritanos. Logo que esse príncipe escutou os deputados, mandou que lhes dessem cartas endereçadas aos principais oficiais de Samaria, cujas palavras são estas: "O rei Dario a Tangar e Sembabe, que comandam a cavalaria em Samaria, e a Sadrague, Bobelom e outros, que estão encarregados dos nossos negócios nesse país, saudação. Zorobabel, Ananias e Mardoqueu, deputados pelos judeus junto de nós, queixaram-se das dificuldades que lhes moveis na construção do Templo e de que recusais contribuir para os sacrifícios com aquilo que ordenamos. Escrevemo-vos esta carta a fim de que logo que a tenhais recebido não deixeis de cumprir as vossas obrigações e de tomar para esse fim, no nosso tesouro proveniente dos tributos da Samaria, tudo o que os sacerdotes de Jerusalém tiverem necessidade, porque a nossa intenção é que não se deixe de oferecer sacrifícios a Deus pela nossa prosperidade e pela do império dos persas". CAPÍTULO 5 XERXES SUCEDE A DARIO, SEU PAI, NO REINO DA PÉRSIA. PERMITE QUE ESDRAS, SACERDOTE, RETORNE COM GRANDE NÚMERO DE JUDEUS A JERUSALÉM E CONCEDE TUDO O QUE ELE DESEJA. ESDRAS OBRIGA OS QUE HAVIAM DESPOSADO MULHERES ESTRANGEIRAS A RESTITUÍ-LAS. SUA MORTE. NEEMIAS OBTÉM DE XERXES LICENÇA PARA RECONSTRUIR OS MUROS DE JERUSALÉM E TERMINA ESSA GRANDE OBRA. 443. Esdras 7. Xerxes sucedeu a seu pai, Dario, e não foi menos herdeiro de sua piedade para com Deus que sucessor no trono. Nada mudou a respeito do que fora determinado com relação ao culto a Ele, e Xerxes teve sempre uma grande afeição pelos judeus. Joaquim, filho de jesua, era sumo sacerdote durante o seu reinado, e Esdras era o primeiro e o mais considerável dentre todos os sacerdotes que haviam ficado na Babilônia. Era um homem de bem e muito instruído nas leis de Moisés. Desfrutava grande fama no meio do povo e era muito amado pelo rei. Assim, quando resolveu voltar a Jerusalém e levar consigo alguns judeus que estavam morando na Babilônia, ele obteve desse príncipe algumas cartas de recomendação endereçadas aos governadores da Síria, nestes termos: "Xerxes, rei dos reis, a Esdras, sacerdote e leitor da lei de Deus, saudação, julgando que é de nossa bondade permitir a todos os judeus, quer sacerdotes, quer levitas, bem como a outros que desejarem voltar a Jerusalém para lá servir a Deus, nós, com o conselho de nossos sete auxiliares, concedemos essa graça e vos encarregamos de apresentar ao vosso Deus o que nós e nossos amigos fizemos voto de lhe oferecer. Damo-vos o poder de levar todo o ouro e toda a prata que os vossos conterrâneos ainda espalhados pelo reino da Babilônia quiserem ofertar a Deus, a fim de que seja empregado na aquisição de vítimas a serem oferecidas sobre o altar, na confecção de vasos de ouro e de prata para o seu serviço e no que mais vós e vossos irmãos desejarem. Devereis oferecer também ao vosso Deus os vasos sagrados que vos entregaremos. Damo-vos o poder de fazer, além disso, tudo o que julgardes conveniente e entendemos que o fundo necessário deva ser tirado de nosso tesouro. Para isso, estamos escrevendo ao nosso tesoureiro-mor da Síria e da Fenícia que vos entregue sem demora tudo o que lhe pedirdes. E, para que Deus seja favorável a nós e à nossa posteridade, queremos que lhe sejam oferecidas, por nós, cem medidas de trigo, de conformidade com a Lei. Proibimos a todos os nossos oficiais exigir algo dos sacerdotes, dos levitas, dos cantores, dos porteiros e dos outros que servem no Templo de Deus ou impor-Ihes tributos e obrigações. Quanto a vós, Esdras, usareis da prudência e da sabedoria que Deus vos concedeu para estabelecer na Síria e na Fenícia juizes que administrem a justiça, e que os já instruídos nas vossas leis ensinem aos que ainda as ignoram e castiguem com multas ou mesmo com a morte os que não temerem violar os vossos mandamentos e os nossos". Esdras, ao receber essa carta, adorou a Deus e deu-lhe imensas graças, pois só podia atribuir ao seu auxílio demonstrações de bondade tão extraordinárias da parte do rei. Reuniu em seguida todos os judeus que estavam na Babilônia, leu-lhes as cartas e, conservando o original, enviou cópias aos judeus que estavam na Média. Pode-se imaginar a alegria que eles sentiram por saber da piedade do rei para com Deus e de seu afeto por Esdras. Muitos decidiram dirigir-se imediatamente à Babilônia com o que possuíam de bens a fim de irem com Esdras a Jerusalém. Mas o resto dos israelitas não quis abandonar esse país. Assim, somente as tribos de Judá e de Benjamim voltaram a Jerusalém, e estão ainda hoje sujeitas, numa parte da Ásia e da Europa, ao domínio dos romanos. As outras dez tribos permaneceram além do Eufrates, e é incrível o quanto se multiplicaram. Dentre os que se dirigiram em grande número a Esdras, havia muitos sacerdotes, levitas, porteiros, cantores e outros consagrados ao serviço de Deus. Ele os reuniu ao longo do Eufrates e, depois de jejuarem durante três dias e orarem a Deus pedindo proteção na viagem, puseram-se a caminho no décimo segundo dia do primeiro mês do sétimo ano do reinado de Xerxes, sem que Esdras quisesse receber a escolta da cavalaria, oferecida pelo príncipe, declarando que confiava no auxílio de Deus, que cuidava dele e de seu povo. Chegaram no quinto mês do mesmo ano a Jerusalém. Esdras entregou logo aos que tinham a guarda dos tesouros do Templo e que eram da descendência dos sacerdotes o depósito sagrado que o rei, os amigos dele e os judeus que moravam na Babilônia lhe haviam confiado e que consistia de seiscentos e cinqüenta talentos de prata, vasos de prata no valor de cem talentos, vasos de ouro no valor de vinte talentos e vasos de cobre, mais preciosos que o ouro, no peso de doze talentos. Em seguida, Esdras ofereceu a Deus em holocausto, como a Lei ordenava, doze touros para a salvação do povo e, pelos pecados, setenta e dois carneiros e cordeiros e doze bodes. Na Síria e na Fenícia, entregou aos governadores e oficiais do rei a carta que o soberano lhes escrevera. E, como não podiam deixar de obedecer, prestaram grandes honras à nação judaica e nos ajudaram em nossas necessidades. Deve-se a Esdras a honra dessa transmigração. E ele não somente a idealizou, como também não tenho dúvidas de que a sua virtude e a sua piedade foram a causa do feliz êxito que Deus lhe quis outorgar. 444. Pouco tempo depois, ele soube que alguns sacerdotes e levitas, não querendo se sujeitar à disciplina, haviam, por um insolente desprezo às leis de seus maiores, desposado mulheres estrangeiras e manchado a pureza da ordem sacerdotal. Os que lhe deram esse aviso rogaram-lhe que se armasse do zelo da religião para impedir que o crime de alguns atraísse a cólera divina sobre todo o povo e os precipitasse de novo na desgraça da qual acabavam de sair. Como eram de qualidade as pessoas culpadas desse pecado, esse santo homem, considerando que uma ordem para despedir as mulheres e os filhos não seria obedecida por eles, foi tomado de tão viva dor que rasgou as próprias vestes, arrancou a barba e os cabelos e lançou-se por terra banhado em lágrimas. Os outros homens de bem reuniram-se a ele e juntaram as suas lágrimas às dele. Nessa amargura de coração, ele elevou os olhos e as mãos ao céu e disse: "Tenho vergonha, meu Deus, de ousar levantar os meus olhos ao céu, quando penso que este povo recai sempre mais no pecado e perde logo a lembrança dos castigos com que punistes a impiedade de seus maiores. Todavia, Senhor, como a vossa misericórdia é infinita, tende, por favor, piedade destes que restaram do antigo cativeiro que suportamos e que quisestes reconduzir à antiga pátria. Perdoai-lhes, Senhor, mais esse crime e, embora eles mereçam a morte, não vos canseis de lhes demonstrar a vossa bondade, conservando-lhes a vida". Esdras 10. Enquanto assim falava e todos os presentes, homens e mulheres, choravam com ele, Secanias, que era o primeiro cidadão de Jerusalém, aproximou-se e disse que, não se podendo duvidar de que os que tomaram esposas estrangeiras haviam cometido um grande pecado, era preciso convencê-los a restituí-las, bem como aos filhos que delas haviam gerado, e castigar os que recusassem obedecer à lei de Deus. Esdras aprovou essa proposta e fez jejuar os principais sacerdotes, os levitas e o povo, o qual os ajudaria a obrigá-los a isso. Depois que saiu do Templo, foi para a casa de Joana, filho de Eliasibe, e passou ali o resto do dia sem comer nem beber, tão abatido estava pela dor. Mandou em seguida publicar por toda parte que todos os que haviam voltado da escravidão deveriam vir dentro de dois ou três meses a Jerusalém, sob pena de serem excomungados e de terem os seus bens confiscados em favor do tesouro do Templo, segundo o juízo que seria pronunciado pelos anciãos. No terceiro dia, que era o vigésimo do nono mês, que os hebreus chamam tebete, e os macedônios, apeléia, os da tribo de Judá e de Benjamim dirigiram-se à parte superior do Templo, e os principais assentaram-se. Esdras levantou-se e disse-lhes que os que haviam desposado mulheres estrangeiras, contra a proibição da Lei, tinham cometido um grande pecado e que Deus só tornaria a ser-lhes favorável se as mandassem embora. Todos responderam em voz alta que o fariam de boa vontade, mas o número delas era tão grande e a estação tão contrária, pois era inverno, de frio intenso, que aquilo não podia ser feito imediatamente. Assim, seria necessário um pouco de paciência. Enquanto isso, os principais dentre o povo que estivessem isentos desse pecado, ajudados pelos anciãos, informar-se-iam com exatidão a respeito dos que haviam transgredido a determinação da Lei. A proposta foi aprovada, e no primeiro dia do décimo mês começou-se a indagação dos que haviam contraído matrimônio ilícito. A investigação durou até quase o primeiro dia do mês seguinte, e vários parentes de Jesua, sumo sacerdote, dos outros sacerdotes, dos levitas e de outros dentre o povo devolveram imediatamente as suas mulheres, preferindo assim a observância da Lei à paixão que sentiam por elas, por maior que fosse. Depois ofereceram a Deus carneiros em sacrifício, para aplacar-lhe a cólera. Eu poderia citar nomes, mas não julgo necessário. Dessa forma, Esdras remediou o erro cometido por esses matrimônios profanos e aboliu esse mau costume, no qual ninguém mais caiu. No sétimo mês, que era o tempo de se comemorar a festa dos Tabernáculos, quase todo o povo reuniu-se próximo da porta do Templo, a qual está do lado do oriente, e rogou a Esdras que lhes desse a lei de Moisés. Ele consentiu, e essa leitura durou desde a manhã até a tarde. Eles se foram tão comovidos que derramavam lágrimas, porque aquelas santas leis não somente lhes mostraram o que eles deviam fazer no tempo presente e no futuro, como também revelaram que, se as tivessem observado no passado, não teriam caído em tantas desgraças. Esdras, vendo-os naquela aflição, disse-lhes que se retirassem para as suas casas e enxugassem as lágrimas, pois não deviam chorar no dia de uma festa tão solene, e sim alegrar-se e regozijar-se e aproveitar o arrependimento que demonstravam pelas suas faltas passadas para não cometer outras semelhantes no futuro. Essas palavras consolaram-nos, e eles celebraram alegremente durante oito dias essa grande festa, gratos a Esdras pela reforma de seus costumes, e voltaram cantando hinos de louvor a Deus. Um feito tão importante, somado às outras obrigações de que a nação lhe era devedora, conquistou-lhe tanta glória que quando ele terminou os seus dias, em venturosa velhice, enterraram-no em Jerusalém com grande magnificência. Joaquim, sumo sacerdote, morreu também nesse mesmo tempo, e Eliaquim, seu filho, substituiu-o. 445. Neemias 1. Depois da morte de Esdras, um judeu dentre os escravos, de nome Neemias, que era mordomo do rei Xerxes, passeando um dia fora da cidade de Susã, capital da Pérsia, viu uns estrangeiros que vinham de províncias distantes e percebeu que eles falavam a língua hebraica. Aproximou-se deles para perguntar de onde vinham e soube que eram da Judéia. Perguntou-lhes como ia aquele país, particularmente Jerusalém. Responderam-lhe que tudo estava em muito mau estado, que as muralhas da cidade estavam em ruínas e que não havia males que os povos vizinhos não lhes causassem, pois devastavam continuamente os campos, levavam prisioneiros os habitantes da cidade, e freqüentemente encontravam-se cadáveres pelas estradas. Neemias ficou tão desconsolado pela aflição do povo de seu país que não pôde reter as lágrimas. E, elevando os olhos ao céu, disse a Deus: "Até quando, Senhor, permitireis que a vossa nação seja perseguida e torturada por tantos males? Até quando permitireis que ela seja presa de vossos inimigos?" O sofrimento fez-lhe esquecer até o momento em que se encontrava, pois vieram dizer-lhe que o rei estava prestes a se pôr à mesa, e ele correu para servi-lo. Neemias 2. O príncipe, que estava de bom humor, tendo notado ao sair da mesa que Neemias estava muito triste, perguntou-lhe o motivo. Ele respondeu, depois de rogar a Deus em seu coração que tornasse as suas palavras bem persua-sivas: "Como poderia, majestade, não estar triste pela aflição de saber a que estado se acha reduzida a cidade de Jerusalém, minha querida pátria, onde estão os sepul-cros de meus antepassados? Os seus muros estão completamente em ruínas, e as suas portas, reduzidas a cinzas. Fazei-me, Senhor, o favor de permitir que eu vá reerguê-las e de fornecer o que falta para completar a restauração do Templo!" O soberano recebeu tão bem esse pedido que não somente concedeu o que ele desejava, como também prometeu escrever aos seus governadores para que o tratassem com muita honra e o ajudassem em tudo o que ele desejasse. Acrescentou o príncipe: "Esquecei então a vossa aflição e continuai a servir-me, com alegria". Neemias adorou a Deus e deu ao rei os seus humildes e sinceros agradecimentos por tão grande favor. O seu rosto tornou-se tão alegre quanto antes estava triste. No dia seguinte, o rei entregou-lhe as cartas endereçadas a Sadé, governador da Síria, da Fenícia e de Samaria, pelas quais ordenava tudo o que dissemos há pouco. Neemias partiu com essas cartas para a Babilônia, de onde levou várias pessoas de sua nação, e chegou a Jerusalém no vigésimo quinto ano do reinado de Xerxes. Depois de entregar as cartas a Sadé e as que eram endereçadas aos outros, mandou reunir todo o povo e falou: "Não ignorais o cuidado que o Deus Todo-poderoso teve de Abraão, de Isaque e de Jacó, nossos antepassados, por causa da piedade deles e de seu amor pela justiça. E hoje ainda Ele nos faz ver que não nos abandonou, pois obtive do rei, por auxílio dEle, permissão para reedificar as nossas muralhas e ultimar a construção do Templo. No entanto, como não posso duvidar do ódio que nos têm as nações vizinhas, as quais, quando virem o entusiasmo com que trabalhamos nestas obras, tudo farão para nos atrapalhar, creio que temos duas coisas a fazer. A primeira é pormos toda a nossa confiança no auxílio de Deus, que pode sem dificuldade confundir os desígnios de nossos inimigos. A segunda é trabalhar dia e noite com ardor infatigável, para terminarmos a nossa empresa sem perda de tempo, pois este nos é favorável e deve ser para nós muito precioso". Depois dessas palavras, Neemias ordenou aos magistrados que mandassem medir o perímetro das muralhas. Dividiu o trabalho entre o povo, fixou a cada porção um número de aldeias e de vilas, para também trabalharem com eles, e prometeu ajudá-los o quanto possível. Todos animaram-se com essas palavras e puseram mãos à obra. Foi então que se começou a chamar de judeus os que de nossa nação regressaram da Babilônia e da judéia ao país, porque fora outrora propriedade da tribo de Judá. Neemias 4 e 6. Quando os amonitas, os moabitas, os samaritanos e os habitantes da Baixa Síria souberam que a obra progredia, sentiram grande desgosto, e nada houve que não fizessem para dificultar o empreendimento: faziam emboscadas aos nossos, matavam os que lhes caíam nas mãos e, como Neemias era o principal objeto de seu ódio, deram dinheiro a alguns assassinos, para que o matassem. Procuraram também assustar os judeus com vãos terrores, fazendo correr o boato de que um exército formado por diversas nações avançava para atacá-los. Tantos esforços e artifícios acabaram assustando o povo, e pouco faltou para que abandonassem o empreendimento. Nada, porém, foi capaz de assustar ou desanimar Neemias. Intrépido em meio a tantas dificuldades, continuou a trabalhar com mais ardor do que nunca e fez-se acompanhar por alguns soldados, para lhe servirem de guardas, não que tivesse medo da morte, mas por saber que os seus concidadãos perderiam a coragem se não o tivessem mais entre eles para animá-los na execução de tão santa empresa. Ordenou aos operários que, no trabalho, mantivessem a espada sempre ao lado e perto de si os seus escudos, para deles se servirem em caso de necessidade. Colocou trombeteiros de quinhentos em quinhentos passos, para dar o alarme e obrigar o povo a tomar logo as armas se aparecessem os inimigos. Ele mesmo fazia, durante toda a noite, a ronda pela cidade. Para fazer o trabalho progredir não bebia, não comia e não dormia, exceto quando obrigado pela necessidade. Isso ele fez não por pouco tempo, mas de forma contínua pelo espaço de vinte e sete meses, que foi o quanto empregaram na restauração das muralhas da cidade. Por fim, a obra foi concluída, no nono mês do vigésimo oitavo ano do reinado de Xerxes. Então Neemias e todo o povo ofereceram sacrifícios a Deus e passaram oito dias em festas e banquetes de regozijo, o que causou aos sírios visível desprazer. Neemias, vendo que Jerusalém não estava bastante povoada, induziu os sacerdotes e os levitas que moravam no campo a vir para a cidade morar nas casas que ele mandara construir e obrigou os camponeses a lhes trazer os dízimos (o que eles fizeram com prazer), a fim de que nada os pudesse impedir de se dedicar inteiramente ao serviço de Deus. Assim, Jerusalém povoou-se, e esse grande homem, após realizar ainda outras coisas dignas de mérito, morreu em idade avançada. Era um homem tão bom, justo e zeloso do bem de sua pátria, a quem ela é devedora de tantos benefícios, que a sua memória jamais há de perecer entre os judeus. CAPÍTULO 6 ARTAXERXES, SUCEDE A XERXES, SEU PAI, NO REINO DA PÉRSIA. REPUDIA A RAINHA VASTI, SUA MULHER, E DESPOSA ESTER, SOBRINHA DE MARDOQUEU. HAMÃ PERSUADE ARTAXERXES A EXTERMINAR TODOS OS JUDEUS E ENFORCAR MARDOQUEU, MAS ELE MESMO É ENFORCADO. MARDOQUEU É POSTO EM SEU LUGAR COM GRANDE AUTORIDADE. 446. Ester 1. Depois da morte do rei Xerxes, Ciro, seu filho, que os gregos chamam Artaxerxes,* sucedeu-o. Os judeus correram grande perigo de ser inteiramente exterminados durante o seu reinado, conforme vamos narrar. Antes, porém, falaremos do soberano, dizendo que ele desposou uma mulher judia que era de família real e à qual toda a nossa nação reconhece dever, abaixo de Deus, a sua salvação. Quando esse novo rei subiu ao trono de seu pai e estabeleceu governadores nas cento e vinte e sete províncias sujeitas ao império, desde as índias até a Etiópia, ele resolveu, no terceiro ano de seu reinado, entreter a eles e aos amigos durante cento e oitenta dias na cidade de Susã, capital da Pérsia, com uma suntuosidade extraordinária. Os embaixadores de várias nações lá ficaram durante sete dias. Os banquetes realizaram-se sob os pavilhões sustentados por colunas de ouro e de prata e cobertos de ricos tapetes, tão espaçosos que podiam abrigar um grande número de pessoas. Toda a baixela de que se serviam era de ouro e enriquecida de pedras preciosas. Artaxerxes ordenou aos seus serventes que não obrigassem ninguém a beber segundo o costume dos persas, mas deixassem a cada qual a liberdade de fazer como quisesse. Mandou ao mesmo tempo proclamar por toda parte de seu território que o povo deixasse de trabalhar durante alguns dias e pensasse apenas em se regozijar e em desejar-lhe um feliz reinado. A rainha Vasti, ao mesmo tempo, cuidava das damas de seu palácio com magnificência igual à que o rei dispensava aos grandes e aos príncipes. Artaxerxes, querendo mostrar que ela sobrepujava a todas as outras mulheres em beleza, mandou que comparecesse à grande assembléia. Mas como o costume dos persas não permite às mulheres se apresentarem diante de estrangeiros, ela decidiu não aparecer, embora o rei enviasse diversas vezes os eunucos para buscá-la. Essa teimosia o aborreceu. Ele saiu do banquete, reuniu os magos, que entre os persas interpretam as leis, e queixou-se a eles de ter várias vezes pedido à rainha que comparecesse ante a assembléia e que ela não queria obedecer. Ordenou-lhes então que dissessem a que a lei se obrigava naquele caso. Memucã, um deles, respondeu que aquela desobediência da rainha e a injúria que ela fizera ao rei não somente atingia e ofendia o soberano, mas também a todos os persas. Porque as suas mulheres, vendo que a rainha não temia ofender tão poderoso príncipe com aquele insolente desprezo, seriam também levadas a desprezar os maridos, para imitar-lhe o exemplo. E assim, aconselhava-o a castigá-la severamente e a mandar publicar em todo o seu território o que fosse determinado contra ela. Os outros magos, depois dessa opinião, deram também cada qual o seu parecer e chegaram à conclusão de que o rei deveria repudiar a rainha e desposar uma outra. _____________________ * A Bíblia chama-o Assuero. 447. Ester 2. Tal determinação deixou o príncipe muito aflito porque, de um lado, ele não queria contrariar as leis e, de outro, nutria uma violenta paixão pela rainha, por causa de sua extrema beleza. Seus amigos, vendo-o tão agitado, aconselharam-no a afastar do coração aquele afeto que o atormentava inutilmente, a mandar procurar em todas as províncias as mais belas jovens e a despo-sar a que mais lhe agradasse. O amor que teria por ela diminuiria cada vez mais a paixão por Vasti, até desaparecer por completo. O rei aprovou a proposta e mandou imediatamente, para esse fim, que em todo o seu território se escolhessem as mais belas jovens. Trouxeram-lhes as moças mais formosas, dentre as quais distinguia-se uma da Babilônia, de nome Ester, que não tinha nem pai nem mãe e fora criada por seu tio, de nome Mardoqueu, da tribo de Benjamim, um dos mais ilustres dentre os judeus. A beleza dessa moça, a sua modéstia e a sua graça eram tão extraordinárias que atraíam os olhares e a admiração de todos. Puseram-na entre quatrocentas outras que foram entregues ao cuidado dos eunucos, e tudo se fez para que fossem cercadas de todos os bens. Durante seis meses, foram alvo de todas as atenções. Eram bem alimentadas e cuidadas e adornavam-se e perfumavam-se com requinte. Passado esse tempo, julgou-se que já estavam em condições de agradar ao rei. Assim, eles lhe mandavam uma por dia, a qual o príncipe devolvia no dia seguinte. Quando chegou a vez de Ester, Artaxerxes agradou-se tanto dela que a escolheu para esposa, e as bodas foram celebradas no sétimo ano de seu reinado, no décimo segundo mês, de nome adar. Ele mandou em seguida aos chamados agares que proclamassem por todo o seu território que o povo deveria festejar o seu matrimônio e tratou magnificamente durante um mês os principais cidadãos, tanto dos persas e dos medos quanto dos de outras nações que lhe estavam sujeitas. Depois de instalar a nova rainha em seu palácio, pôs-lhe a coroa na cabeça e amou-a sempre como sua esposa, sem lhe perguntar de que nação ela era e sem que ela também nada dissesse a esse respeito. Mardoqueu, que a amava como se fosse sua própria filha, deixou a Babilônia para ir morar em Susã. E não se passava um dia sem que ele desse uma volta ao redor do palácio, para ter notícias dela. Nesse entretempo, o rei publicou uma ordem pela qual proibia a todos os de sua casa, sob pena de morte, vir procurá-lo sem serem chamados quando ele estivesse assentado no trono. Guardas armados junto de sua pessoa tinham ordem para afastar qualquer um que ousasse se aproximar. Ele empunhava uma vara de ouro e, quando queria conceder graça a alguém que se apresentara sem ser chamado, ele o tocava com ela. A pessoa então deveria beijá-la, e assim evitava a morte. Algum tempo depois, dois eunucos, chamados Bigtã e Teres, fizeram uma conspiração para matar o rei. Um judeu de nome Barnabas, que servia a um deles, avisou Mardoqueu. Este comunicou-o imediatamente ao rei, por meio de sua sobrinha, a rainha Ester. Eles foram presos e enforcados. Artaxerxes não recompensou a Mardoqueu pelo serviço prestado, mandou apenas registrar o fato em suas crônicas e permitiu-lhe entrar no palácio como se fosse um de seus familiares. Ester 3. Um amalequita chamado Hamã, filho de Hamedata, desfrutava então tal prestígio que quando ele entrava no palácio os persas e os estrangeiros eram obrigados, por ordem do rei, a se prostrar diante dele. Mardoqueu era o único que não lhe prestava essa homenagem, porque a lei de Deus o proibia. Hamã, tendo notado isso, perguntou-lhe de que nação ele era. Sabendo que era judeu, ficou muito irritado e exclamou: "Ora! Os persas, que são livres, põem o joelho em terra diante de mim, e esse escravo não se digna fazer o mesmo!" Como ele era por natureza inimigo mortal dos judeus, porque os amalequitas haviam sido outrora vencidos por eles, o seu furor cresceu tanto que seria muito pouco, para a sua vingança, mandar matar Mardoqueu: seria necessário exterminar toda a nação judaica. Ele foi então falar com o rei e disse-lhe que existia espalhado por todo o seu território um certo povo que era inimigo de todos os demais e cujas leis, cerimônias e costumes eram totalmente estranhos, sendo odiosos aos outros homens, e que o maior favor que podia fazer aos seus súditos era exterminá-lo. Mas, para que as rendas do soberano não fossem diminuídas com isso, ele lhe oferecia de boa mente quarenta mil talentos de prata, por prestar tão grande serviço, ou seja, livrar o império de tal peste. O rei respondeu que, quanto ao dinheiro, ele o restituiria de boa vontade. E, quanto ao que se referia àquela classe de gente, deixava tudo ao critério de Hamã. Hamã, depois de haver obtido o que desejava, mandou publicar, em nome do rei, em todo o seu território um edito, cujas palavras eram estas: "O grande rei Artaxerxes, aos cento e vinte e sete governadores que constituímos desde as índias até a Etiópia, saudação. Muitas e várias nações estão sujeitas ao nosso império, e estendemos o nosso domínio sobre a terra o quanto quisemos, porque, em vez de tratar os nossos súditos com rigor, não temos mais prazer que lhes dar todas as demonstrações de nossa estima e bondade, fazendo-os desfrutar muita paz. E, para isso, envidamos os maiores esforços para que a sua felicidade seja eterna. Por isso, tendo sido avisados por Hamã, a quem honramos mais que a qualquer outro com o nosso afeto, pela sua fidelidade, probidade e sabedoria, de que há um povo espalhado por toda a terra o qual é inimigo de todos os outros e possui leis e costumes próprios e tem por inclinação natural um grande ódio aos reis, não tolerando dominação alguma, nem a nossa, nem a prosperidade do nosso império, desejamos e ordenamos que quando Hamã, a quem consideramos como pai, vos der a ordem, extermineis inteiramente esse povo, com as suas mulheres e filhos, sem poupar um sequer e sem que a compaixão seja mais forte sobre o vosso Espírito que a obediência. O que entendemos seja feito no décimo terceiro dia do décimo segundo mês do presente ano, a fim de que, sendo mortos num mesmo dia esses inimigos públicos, possais passar em paz e tranqüilidade o resto de vossas vidas". Depois que essa carta em forma de edito foi publicada por toda parte, todos se prepararam para exterminar os judeus no tempo determinado e se dispuseram a fazer a mesma coisa na cidade de Susã, capital da Pérsia, que por isso estava muito agitada. No entanto, o rei e Hamã passavam os dias em banquetes. Ester 4. Quando Mardoqueu soube do conteúdo daquele cruel edito, rasgou as próprias vestes, cobriu-se com um saco, espalhou cinza sobre a cabeça e saiu clamando por toda a cidade que era horrível querer destruir daquele modo uma nação inocente. Mas ele foi obrigado a ficar à porta do palácio, porque no estado em que se encontrava não lhe foi permitido entrar. A aflição de todos os judeus não era menor em todas as outras cidades onde o edito fora publicado, e, em tão geral desolação, o ar repercutia gritos e lamentações. A rainha, perturbada por saber que Mardoqueu estava à porta do palácio no deplorável estado em que o descrevi, mandou-lhe outras vestes, para que as trocasse. Ele, porém, as recusou, porque a causa de seu penar subsistia ainda e ele não podia se desfazer dos sinais. A princesa, ante a recusa, mandou o eunuco Hataque perguntar o motivo de tão grande aflição e de ele não querer deixar aqueles trajes tão tristes. Mardoqueu mandou dizer-lhe pelo mesmo eunuco que Hamã oferecera ao rei uma grande soma de dinheiro a fim de obter permissão para exterminar todos os judeus e que sua majestade lhe concedera a licença. Assim, em Susã e em todas as províncias do império fora publicado um edito, do qual lhe mandava uma cópia. Tratava-se portanto da ruína de toda a nação judaica, na qual a própria rainha tinha a sua origem. Ele suplicava que ela não temesse humilhar-se a ponto de se prostrar aos pés do rei para suplicar-lhe graça, pois somente ela o podia fazer. Além disso, Hamã, ao qual ninguém igualava em prestígio e em autoridade, fazia continuamente crescer a irritação do rei contra eles. A rainha respondeu que a menos que o rei solicitasse não podia ir ter com ele, sob pena de perder a vida, caso ele não a tocasse com a vara de ouro que tinha na mão. Mardoqueu então rogou ao eunuco que dissesse à rainha que ela não devia, em tal contingência, considerar tanto a sua vida quanto a de sua nação. Se ela o fizesse, Deus não deixaria de ter cuidado dela, mas se ela fosse insensível à ruína de seu próprio povo, Ele mesmo a castigaria, destruindo-a com toda a nação. A rainha, comovida por essas palavras, mandou dizer-lhe pelo mesmo eunuco que reunisse todos os judeus que estavam em Susã e ordenasse um jejum de três dias e que fizessem orações a Deus em favor dela. Ela faria o mesmo com as outras mulheres e iria em seguida falar com o rei sem ser chamada, o que talvez lhe custasse a vida. Mardoqueu executou a ordem e durante o jejum rogou a Deus que não permitisse a destruição de seu povo, mas o ajudasse naquela ocasião, tal como fizera tantas outras vezes, que lhes perdoasse os pecados e que os livrasse de tão grave perigo, pois nele não se haviam metido por culpa própria. Disse ainda: "Vós sabeis, meu Deus, que a cólera de Hamã, que jurou a nossa ruína, provém de eu não ter querido violar as vossas santas leis, prostrando-me diante dele para lhe prestar uma homenagem que somente a vós é devida". Essa fervorosa oração foi acompanhada por todo o povo, que pedia a Deus com não menor ardor que os ajudasse naquela grave contingência. A rainha, por seu lado, em vestes de luto, passou esses três dias prostrada por terra, sem comer nem beber e sem cuidar de sua pessoa. Ela pedia a Deus, sem cessar, que tivesse compaixão dela, pondo-lhe na boca o que devia dizer ao rei e tornando-a mais agradável aos seus olhos do que nunca, a fim de que, em tal perigo, pudesse não somente atrair a sua clemência sobre ela e sobre os de sua nação, mas fazer ele voltar a sua cólera contra os inimigos, de modo que caíssem na mesma desgraça em que os queriam precipitar. Ester 5. Depois de assim orar durante três dias, ela tirou as vestes tristes e revestiu-se de outras, magnificamente ricas, às quais ajuntou os ornamentos com os quais se podem enfeitar uma grande rainha. Foi em seguida falar com o rei, acompanhada somente por suas damas, sobre uma das quais se apoiava, enquanto outra sustentava a cauda de suas vestes, cujas dobras pareciam flutuar sobre o pavimento. Via-se um modesto rubor tingir as suas faces, e a majestade e a beleza resplandeciam igualmente em seu temor. Quando ela viu o soberano assentado no trono resplandecente de pedras e jóias a contemplá-la, quem sabe, de maneira pouco favorável, ficou tomada de tanto medo que as forças quase lhe faltaram, e ela teve de se apoiar na mulher que vinha ao seu lado. O rei, cujo coração Deus sem dúvida tocou naquele momento, temeu tanto por ela que desceu apressadamente do trono e a tomou nos braços. E, com palavras repassadas de amor e ternura, disse-lhe que nada temesse por ter vindo sem ser chamada, porque aquela lei havia sido feita somente para os seus súditos, e não para ela, que com ele partilhava a coroa e por isso estava acima de todas as leis. Depois de assim falar, ele pôs-lhe o cetro na mão e, para tranqüilizá-la completamente e não transgredir a lei, tocou-a docemente com a vara de ouro. Então a virtuosa rainha voltou a si, tomou ânimo e falou deste modo: "Não vos posso dar outra razão do desfalecimento que de mim se apoderou senão a grande surpresa de ver-vos cheio de glória, de beleza e de majestade e ao mesmo tempo tão temível. Não sei o que se passou comigo". Ela pronunciou essas poucas palavras com uma voz tão fraca que a apreensão do rei aumentou, e ele tudo fez para tranqüilizá-la, garantindo que concederia qualquer favor que ela pedisse: ainda que fosse metade de seu reino, lhe daria com prazer. Ela respondeu que o único favor que almejava era obter consentimento para cear com ele no dia seguinte, e que ele levasse também Hamã. Ele o concedeu de boa mente. E, quando se puseram à mesa, ele insistiu em que ela dissesse o que desejava, asseverando-lhe ainda que nada havia que ele não lhe concedesse com prazer, mesmo que fosse uma parte de seu reino. Ela suplicou que o seu pedido fosse protelado até o dia seguinte e que ele lhe concedesse ainda a honra de vir novamente cear com ela, trazendo Hamã em sua companhia. Isso ela também obteve facilmente. Hamã estava muito satisfeito ao sair do banquete, pela honra insigne que a rainha lhe concedia, escolhendo a ele somente para ter a honra de comer com ela à mesa do rei. Contudo, encontrando Mardoqueu no palácio, ficou fora de si pela cólera, ao constatar que ele continuava a não se prostrar diante dele. Quando voltou ao seu aposento, contou à sua mulher, de nome Zeres, e aos seus amigos o favor singular que o rei e a rainha lhe haviam concedido, convidando a ele somente para sentar-se à sua mesa e repetindo o convite também para o dia seguinte. Porém ele acrescentou: "Como poderia eu estar plenamente satisfeito, tendo encontrado Mardoqueu, o judeu, no palácio, que tem a ousadia de me desprezar?" Sua mulher respondeu-lhe que, para livrar-se dele, devia mandar erguer uma forca de cinqüenta côvados de altura e pedir ao rei licença para nela pendurar Mardoqueu no dia seguinte. Ele aprovou o conselho e mandou erguer a forca em sua casa, o que foi feito. Ester 6. Deus, que via o que estava para acontecer, zombou de sua detestável esperança. Para confundir os seus desígnios, fez com que na noite seguinte o rei não pudesse dormir e que para empregar utilmente o tempo para o bem de sua nação mandasse trazer alguns registros, nos quais ele e os seus predecessores faziam escrever as coisas mais importantes, a fim de lhes conservar a memória. Ele ordenou ao seu secretário que o lesse e lá encontrou que se haviam dado muitas terras a um homem para recompensá-lo por uma ação insigne. Um outro recebera grandes presentes por haver se mostrado fiel, e Mardoqueu descobrira a conjuração feita pelos eunucos Bigtã e Teres. O secretário queria continuar a ler, mas o rei o deteve, para saber se havia menção de alguma recompensa a Mardoqueu por tão grande serviço. O secretário respondeu que sobre isso nada havia escrito, e o soberano mandou-o então suspender a leitura. Perguntou em seguida a um dos oficiais da guarda que horas eram e mandou que fossem ver se havia à porta do palácio algum daqueles aos quais ele mais estimava. Hamã lá estava, porque viera pedir a morte de Mardoqueu. O rei mandou chamá-lo e, quando ele entrou, disse-lhe: "Como estou certo de que ninguém tem mais afeto por mim do que vós, rogo-vos que me digais o que posso fazer para honrar de maneira digna de mim um homem ao qual estimo muitíssimo". Hamã, que sabia que nenhum outro era mais estimado pelo rei, julgou logo que aquelas palavras se referiam a ele. Assim, persuadido de que as suas sugestões seriam aceitas e ainda reverteriam em seu favor, respondeu: "Se vossa majestade quer cumular de favores aquele que merece toda a vossa estima, ordenai que o façam montar sobre um de vossos cavalos vestido à maneira dos reis e com uma cadeia de ouro e que um daqueles que vossa majestade mais estima caminhe diante dele por toda a cidade, clamando como um arauto: E assim que se deve honrar aquele a quem o rei concede os seus favores". O rei acolheu com alegria essa sugestão, que Hamã pensava estar dando em favor de si mesmo, e disse-lhe: "Tomai então um de meus cavalos e levai um de meus mantos de púrpura e uma cadeia de ouro para pôr no judeu Mardoqueu. E, estando ele assim revestido como acabais de descrever, ide diante dele, clamando como um arauto o que julgastes conveniente dizer, pois como não amo ninguém mais do que vós, é justo que sejais o executor do sábio conselho que me destes para recompensar um homem ao qual sou devedor da vida". Hamã não ficou menos surpreendido com essas palavras do que teria ficado se fosse atingido por um raio. Sendo, porém, obrigado a obedecer a uma ordem tão clara, saiu do palácio com um cavalo, uma veste de púrpura e uma cadeia de ouro e foi procurar Mardoqueu. Encontrou-o perto da porta e ordenou-lhe que tomasse as vestes reais, a cadeia e montasse no cavalo. Mardoqueu, que não tinha a menor idéia do que se passava e do que o levava a falar daquele modo, pensou que Hamã estava zombando dele e respondeu: "Homem mau, o mais perverso de todos os homens! É assim que zombais de nossa infelicidade?" Mas, quando ele soube que o rei o honrava com aquele favor em consideração ao serviço que lhe prestara, vestiu os trajes reais, pôs a cadeia, montou no cavalo e assim percorreu a cidade, levado por Hamã, que clamava diante dele: "É assim que se deve fazer àquele a quem o rei deseja honrar". Mardoqueu saiu em seguida do palácio, e Hamã, coberto de confusão, foi com lágrimas contar à mulher e aos amigos o que lhe havia acontecido. Eles disseram que, como parecia visivelmente que Deus ajudava Mardoqueu, ele não podia mais esperar vingar-se dele. Ainda falavam desse assunto quando dois eunucos da rainha vieram dizer-lhe que se apressasse para ir ao banquete. Um deles, de nome Harbona, vendo a forca levantada, perguntou o motivo e soube que estava preparada para Mardoqueu e que Hamã queria pedir ao rei para o executar ali. Ester 7. O rei, no meio do banquete, disse à rainha que lhe pedisse o que quisesse, pois podia estar certa de o obter. Ela respondeu que o perigo em que ela e todos os de sua nação se encontravam não lhe permitia falar de outra coisa e que não tomaria a liberdade de importuná-lo se se tratasse de condená-los todos a uma dura escravidão, pois tal aflição, por maior que fosse, seria de algum modo suportável. Tratava-se, porém, de sua inteira destruição e do extermínio de todo o seu povo, por isso ela não podia, em tão extremo perigo, deixar de recorrer à sua clemência. O rei, surpreendido com essas palavras, perguntou-lhe quem havia concebido aquela trama. Ela respondeu que fora Hamã, o qual, pelo ódio mortal que tinha aos judeus, deliberara exterminá-los. A surpresa do rei foi tão grande que ele se levantou da mesa e, muito perturbado, foi para o jardim. Então Hamã não duvidou mais de que estava perdido. Suplicou à rainha que o perdoasse e, como naquele momento se inclinava, caiu junto do assento onde ela estava. O rei entrou e, vendo-o naquela posição, exclamou, ainda mais irritado: "Celerado! O mais pérfido de todos os homens! Quer ainda violar a rainha?!" Essas palavras infundiram tão grande terror no Espírito e no coração de Hamã que ele nada pôde responder. O eunuco Harbona, que estava presente, disse ao rei que quando estivera na casa de Hamã, para chamá-lo ao banquete, vira uma forca de cinqüenta côvados erguida na sua casa e soubera por um de seus servidores que era destinada a Mardoqueu. O rei ordenou que Hamã nela fosse enforcado imediatamente, para castigá-lo com justiça com o mesmo suplício que ele tão injustamente queria infligir a outro. Nisso eu não saberia admirar suficientemente a sabedoria e o proceder de Deus, que não somente castigou Hamã como ele merecia, mas empregou para isso o mesmo expediente de que ele planejara servir-se para se vingar de seu inimigo. Os maus deveriam aproveitar-se desse exemplo, pois vemos o mal que eles desejam para os outros cair muitas vezes sobre a cabeça deles próprios. Hamã assim veio a perecer, por haver insolentemente abusado da excessiva afeição com que Artaxerxes o honrava. O soberano deu à rainha o confisco de todos os seus bens. Sabendo então que Mardoqueu era tio da princesa, entregou-lhe o anel que antes Hamã usava. A rainha deu-lhe também todos os bens de Hamã e suplicou ao rei que a tirasse da dúvida em que a punham as cartas que aquele malvado escrevera em nome do rei a todas as províncias do império para fazer massacrar todos os judeus num mesmo dia, pois a morte ser-lhe-ia muito mais doce que sobreviver à ruína de seu povo. O soberano não teve dificuldade em lhe conceder o que ela pedia. Prometeu escrever outras cartas como ela o desejasse, selá-las com o seu sinete e enviá-las a todas as províncias, a fim de que ninguém ousasse desobedecer. Mandou depois escrever as cartas e endereçá-las aos governadores e magistrados das cento e vinte e sete províncias do império. As cartas estavam assim exaradas: "O grande rei Artaxerxes, a todos os governadores de nossas províncias e a todos os nossos oficiais, saudação. Acontece muitas vezes que aqueles aos quais os reis, por um excesso de bondade, cumulam de benefícios e de honras deles abusam, não somente desprezando os seus inferiores, mas se elevando com insolência contra os seus próprios benfeitores, como se tivessem deliberado abolir toda espécie de gratidão entre os homens e julgassem poder enganar a Deus e esquivar-se à justiça. Assim, eles, quando o favor de seus príncipes os constitui em autoridade no governo de seus Estados, em vez de cuidar somente do bem público, não temem surpreendê-los pelo excesso de suas inimizades particulares e nem receiam em oprimir os inocentes com calúnias. E isso não é apenas uma idéia ou simples suposição ou exemplos passados, mas um crime que os nossos próprios olhos testemunharam e que nos obriga a no futuro não prestar fé tão facilmente a qualquer acusação, mas cuidar antes de indagar da verdade, a fim de castigar severamente os culpados e proteger os inocentes, julgando de uns e de outros por suas ações, e não pelas palavras. Hamã, filho de Hamedata, amalequita de nacionalidade e por isso estrangeiro, e não persa, educado por nós com tal honra que o chamávamos nosso pai, razão pela qual havíamos ordenado que todos se prostrassem diante dele, e considerado o primeiro depois de nós, não pôde conservar-se em tanta honra nem guardar moderação em tão grande prosperidade. Sua ambição levou-o a atentar contra o nosso país, chegando mesmo a querer persuadir-nos de mandar matar Mardoqueu, a quem devemos a vida, e a procurar, com os seus artifícios, fazer a rainha Ester, nossa esposa, correr o mesmo perigo, a fim de que, privando-nos das pessoas mais queridas, afeiçoadas e fiéis, ele pudesse apoderar-se da coroa. Como, porém, reconhecemos que os judeus, cuja ruína ele nos fez decretar, não são culpados, mas, ao contrário, observam uma disciplina muito santa e adoram ao Deus que nos pôs o cetro nas mãos, tal como nas de nossos predecessores, e que conserva este império, não nos contentamos em apenas isentar esse povo do castigo que lhe seria infligido pelas cartas que Hamã nos persuadiu a escrever, das quais não deveis fazer nenhuma conta, mas ordenamos que os trateis com muita honra. Assim, para fazer-lhes justiça e obedecer à vontade de Deus, que nos governa e nos manda castigar os crimes, mandamos enforcar às portas de Susã esse pérfido homem. Ordenamos que cópias destas cartas sejam levadas a todas as províncias, a fim de que todos sejam informados de nossa vontade e deixem viver em paz os judeus na observância de suas leis, e que eles sejam até mesmo auxiliados na vingança que lhes permitimos tomar dos ultrajes que sofreram durante esse tempo de amargura, escolhendo para esse fim o décimo terceiro dia do décimo segundo mês, de nome adar, em que Deus quer torná-los felizes — o mesmo dia que fora destinado à sua completa ruína. Quanto a nós, desejamos que esse dia traga felicidade a todos os que nos são fiéis e seja para sempre um sinal do devido castigo aos maus. Todas as nações e cidades saberão também que os que deixarem de obedecer ao determinado nas presentes cartas serão destruídos pelo ferro e pelo fogo. E, para que ninguém possa duvidar, queremos que elas sejam publicadas em todas as terras de nosso domínio, a fim de que os judeus se preparem para a vingança contra os seus inimigos, no dia que determinamos". Logo que essas cartas foram escritas, enviaram-se mensageiros a levá-las por toda parte, com a maior rapidez possível. Mardoqueu, ao mesmo tempo, saiu do palácio real vestido majestosamente, com uma coroa de ouro na cabeça e uma cadeia de ouro. Os judeus que estavam em Susã, vendo o grande prestígio que ele desfrutava, tomavam também parte na sua felicidade. Os judeus das províncias, para onde as cartas do rei haviam sido levadas, consideraram-nas, em transportes de alegria, uma luz favorável que lhes anunciava a libertação, e os seus inimigos sentiram tanto medo do ressentimento deles que vários se fizeram cir-cuncidar, a fim de não perecer. Os correios do rei não deixaram de comunicar aos judeus que eles podiam, no décimo terceiro dia do décimo segundo mês, ao qual chamamos adar, e os macedônios, distro, vingar-se impunemente dos inimigos. Assim, não havia príncipe, governador, grande ou magistrado que não prestasse honras aos judeus, de tanto que eles temiam Mardoqueu. Quando chegou o dia marcado para a vingança dos judeus, eles mataram, em Susã, cerca de quinhentos homens. O rei disse-o à rainha e perguntou-lhe se ela estava satisfeita, porque nada havia que ele não fizesse para contentá-la. Ela rogou-lhe que prolongasse a vingança até o dia seguinte e mandasse enforcar os dez filhos de Hamã. Ele a satisfez, e assim, no décimo quarto dia daquele mesmo mês, os judeus mataram ainda em Susã cerca de trezentos homens, sem tocar em coisa alguma de seus bens. O número dos que eles mataram no dia precedente, em todas as outras cidades, foi de setenta e cinco mil. Empregaram o dia seguinte em regozijar-se com banquetes, e, ainda hoje, os judeus espalhados por todo o mundo solenizam esse dia e enviam uns aos outros parte do que é servido nas festas e nos banquetes. Mardoqueu escreveu a todos os judeus súditos do rei Artaxerxes que soleni-zassem aqueles dois dias e ordenassem aos seus descendentes fazer o mesmo, para que fosse conservada a memória daquele fato, pois era muito justo que, tendo o ódio mortal de Hamã feito com que corressem o grande perigo de serem exterminados, eles agradecessem a Deus para sempre, não somente por tê-los salvo do furor de seus inimigos, mas por lhes providenciar um meio de se vingarem deles. Os judeus deram àquele mesmo dia o nome de Purim, isto é, "dia de conservação", porque eles haviam sido milagrosamente preservados. O prestígio de Mardoqueu crescia sempre, e o rei o elevou a tal grau de autoridade que ele governava, sob dependência do soberano, todo o reino e tinha também todo poder perante a rainha, de modo que a felicidade dos judeus ia muito além do que eles podiam desejar. O que acabo de narrar foi o que aconteceu de mais importante à nossa nação durante o reinado de Artaxerxes. CAPÍTULO 7 JOÃO, SUMO SACERDOTE, MATA SEU IRMÃO JESUA NO TEMPLO. MANASSES, IRMÃO DEJADO, SUMO SACERDOTE, DESPOSA AFILHA DE SANABALETE, GOVERNADOR DE SAMARIA. 448. Depois da morte de Eliasibe, sumo sacerdote, Judas, seu filho, sucedeu-o. Tendo morrido Judas, João, seu filho, sucedeu-o, e foi causa de que Bagose, general do exército de Artaxerxes, profanasse o Templo e impusesse aos judeus um tributo de quinhentas dracmas, pagas à custa do público, para cada cordeiro que oferecessem em sacrifício. Isso aconteceu por um motivo, que relatarei a seguir. Bagose estimava muito Jesua, irmão de João, e prometera obter-lhe o cargo de sumo sacerdote. Um dia, quando os dois irmãos estavam no Templo, tiveram por esse motivo uma discussão, e João, arrebatado pela cólera, matou o irmão naquele santo lugar, cometendo assim um crime abominável, tanto que não há exemplo de semelhante impiedade entre os gregos e nem mesmo entre os povos mais bárbaros. E Deus não deixou impune esse sacrilégio: por essa causa, os judeus perderam a liberdade, e o Templo foi profanado pelos persas. Logo que Bagose soube disso, veio gritando com furor: "Ai! Miserável que sois, não tendes medo de cometer no vosso próprio santuário um crime tão espantoso?" Ele quis em seguida entrar lá e, como quisessem impedi-lo, disse com voz ainda mais forte: "Credes-me então mais impuro que esse corpo morto que vejo aí estendido?" Dizendo essas palavras, entrou no Templo e serviu-se desse pretexto para perseguir os judeus durante sete anos. Depois da morte de João, Jado, seu filho, sucedeu-o no cargo de sumo sacerdote. Ele tinha um irmão de nome Manasses, o qual havia desposado Nicasis, filha de Sanabalete, chuteense, e governador de Samaria, criado por Dario, rei dos persas. Sanabalete o escolhera para genro, porque, vendo que Jerusalém era uma cidade célebre e que causara muitas preocupações aos assírios e à Baixa Síria, tentou por esse meio conquistar o afeto dos judeus. CAPÍTULO 8 ALEXANDRE, O GRANDE, REI DA MACEDÔNIA, PASSA DA EUROPA PARA A ÁSIA E DESTRÓI O IMPÉRIO DOS PERSAS. QUANDO SE JULGA QUE VAI DESTRUIR JERUSALÉM, ELE PERDOA OS JUDEUS E TRATA-OS FAVORAVELMENTE. 449. Nesse mesmo tempo, Filipe, rei da Macedônia, foi morto à traição na cidade de Egéia, por Pausânias, filho de Ceraste, que era da família dos Orestes. Alexandre, o Grande, seu filho, sucedeu-o. E, passando o estreito do Helesponto, entrou na Ásia e venceu, numa grande batalha perto do rio Grânico, os que comandavam o exército de Dario. Conquistou em seguida a Lídia e a Jônia, e atravessando a Caria, entrou na Panfília. 450. No entanto, os mais ilustres de Jerusalém não podiam tolerar que Manasses, irmão de jado, sumo sacerdote, tivesse desposado uma estrangeira, porque isso violava as leis referentes aos casamentos e estabelecia uma mistura profana com nações idolatras. Além disso, fora exatamente essa a causa do cativeiro e de tantos males que haviam sofrido. Assim, eles insistiam em que Manasses ou despedisse a sua mulher ou não servisse mais no altar. Jado, forçado pelas queixas dos outros, fez valer essa proibição. Manasses então procurou Sanabalete, seu sogro, e disse-lhe que, ainda que amasse extremamente a sua mulher, o sacerdócio era uma tão grande honra entre os seus nacionais que ele não podia privar-se dela. Sanabalete respondeu-lhe que, se ele conservasse consigo sua filha, não somente o faria desfrutar aquela honra, mas obteria para ele o cargo de sumo sacerdote e príncipe da Judéia e conseguiria do rei Dario o consentimento para construir um templo semelhante ao de Jerusalém sobre o monte Gerizim, que é o mais alto da região e situa-se em Samaria. Sanabalete era então muito idoso, porém Manasses não deixou de sentir o efeito de suas promessas, pelo favor de Dario. Assim, estabeleceu-se em Samaria, e vários outros sacerdotes e judeus, que também haviam contraído semelhantes matrimônios, uniram-se a ele. Sanabalete, secundando a ambição do genro, deu-lhe dinheiro, casas e terras. Tudo isso veio causar grande agitação em Jerusalém. 451. Dario, tendo sabido da vitória obtida por Alexandre sobre os seus generais, reuniu todas as suas forças, para marchar contra ele antes que se tornasse senhor de toda a Ásia. Depois de passar o Eufrates e o monte Tauro, que está na Cilícia, resolveu dar-lhe combate. Quando Sanabalete viu que ele se aproximava de Jerusalém, disse a Manasses que cumpriria a sua promessa logo que Dario tivesse vencido Alexandre, pois tanto ele quanto os povos da Ásia duvidavam que os macedônios, sendo em tão pequeno número, ousassem combater o formidável exército dos persas. Os fatos, no entanto, mostraram o contrário. A batalha travou-se, e Dario foi vencido, com graves perdas. Sua mãe, sua mulher e seus filhos foram feitos prisioneiros, e ele foi obrigado a fugir para a Pérsia. Alexandre, depois da vitória, chegou à Síria. Tomou Damasco, apoderou-se de Sidom e sitiou Tiro. Durante o tempo em que esteve empenhado nessa empresa, escreveu a Jado, sumo sacerdote dos judeus, pedindo-lhe três coisas: auxílio, comércio livre com o seu exército e a mesma assistência dispensada a Dario. Se o fizesse, garantia-lhe que não teria motivo para se arrepender de ter preferido a sua amizade à de Dario. O sumo sacerdote respondeu que os judeus haviam prometido com juramento a Dario jamais tomar armas contra ele, e por isso não podiam fazê-lo enquanto ele vivesse. Alexandre ficou tão irritado com essa resposta que mandou dizer-lhe que, logo que tivesse tomado Tiro, marcharia contra ele com todo o seu exército para ensinar a ele e aos demais a quem se devia guardar um juramento. Em seguida, atacou Tiro com tanta força que dela se apoderou. E, depois de haver regularizado todas as coisas, foi sitiar Gaza, onde Baemes governava em nome do rei da Pérsia. 452. Voltemos, porém, a Sanabalete. Enquanto Alexandre ainda estava ocupado no cerco de Tiro, ele julgou que o tempo era próprio para realizar o seu intento. Assim, abandonou o partido de Dario e levou oito mil homens a Alexandre. O grande príncipe recebeu-o muito bem. Sanabalete disse-lhe então que tinha um genro de nome Manasses, irmão do sumo sacerdote dos judeus, que vários daquela nação se haviam juntado a ele pelo afeto que ele lhes tinha e que desejava construir um templo próximo de Samaria, sendo que o rei poderia disso tirar grande vantagem, porque assim dividiria as forças dos judeus e impediria que aquela nação pudesse se revoltar por inteiro e causar-lhe dificuldades, tal como fizeram os antepassados deles aos reis da Síria. Alexandre consentiu nesse pedido, ordenou que se trabalhasse com incrível diligência na construção do templo e constituiu Manasses sumo sacerdote. Sanabalete sentiu grande alegria por ter granjeado tão grande honra aos filhos que ele teria de sua filha. Ele morreu depois de passar sete meses junto de Alexandre no cerco de Tiro e dois no de Gaza. O ilustre conquistador, depois que tomou essa última cidade, avançou para Jerusalém, e o sumo sacerdote Jado, que bem conhecia a sua cólera contra ele, vendo-se com todo o povo em tão grave perigo, recorreu a Deus, ordenou orações públicas para implorar o seu auxílio e ofereceu-lhe sacrifícios. Deus apareceu-lhe em sonhos na noite seguinte e disse-lhe que espalhasse flores pela cidade, mandasse abrir todas as portas e fosse ao encontro de Alexandre revestido de suas vestes sacerdotais, acompanhado pelos demais, que deveriam estar vestidos de branco, sem nada temer do soberano, porque ele os protegeria. Jado comunicou com grande alegria a todo o povo a revelação que tivera, e todos se prepararam para esperar a vinda do rei. Quando se soube que ele já estava perto, o sumo sacerdote, acompanhado pelos outros sacerdotes e por todo o povo, foi ao seu encontro com essa pompa tão santa e tão diferente da de outras nações até o lugar denominado Safa, que em grego significa "mirante", porque de lá se pode ver a cidade de Jerusalém e o Templo. Os fenícios e os caldeus que integravam o exército de Alexandre não duvidavam de ele, na cólera em que se achava contra os judeus, lhes permitiria saquear Jerusalém e daria um castigo exemplar ao sumo sacerdote. Mas aconteceu justamente o contrário, pois o soberano, apenas viu aquela grande multidão de homens vestidos de branco e os sacerdotes revestidos com os seus paramentos de linho e o sumo sacerdote com o seu éfode de cor azul adornado de ouro e com a tiara sobre a cabeça, que continha uma lâmina de ouro sobre a qual estava escrito o nome de Deus, aproximou-se sozinho dele, adorou aquele augusto nome e saudou o sumo sacerdote, ao qual ninguém ainda havia saudado. Então os judeus reuniram-se em redor de Alexandre e elevaram a voz para desejar-lhe toda sorte de felicidade e de prosperidade. Porém os reis da Síria e os grandes que o acompanhavam ficaram tão espantados que julgaram que ele havia perdido o juízo. Parmênio, que desfrutava grande prestígio, perguntou-lhe como ele, que era adorado em todo mundo, adorava o sumo sacerdote dos judeus. Respondeu Alexandre: "Não é a ele, ao sumo sacerdote, que adoro, mas ao Deus de quem ele é o ministro, pois quando eu estava ainda na Macedônia e imaginava como poderia conquistar a Ásia, ele me apareceu em sonhos com essas mesmas vestes e exortou-me a nada temer. Disse-me que passasse corajosamente o estreito do Helesponto e garantiu que Deus estaria à frente de meu exército e me faria conquistar o império dos persas. Eis por que, jamais tendo visto antes alguém revestido de trajes semelhantes a esses com que ele me apareceu em sonho, não posso duvidar de que tenha sido por ordem de Deus que empreendi esta guerra, e assim vencerei Dario, destruirei o império dos persas, e todas as coisas suceder-me-ão segundo os meus desejos". Alexandre, depois de assim responder a Parmênio, abraçou o sumo sacerdote e os outros sacerdotes, caminhou no meio deles até Jerusalém, subiu ao Templo e ofereceu sacrifícios a Deus da maneira como o sumo sacerdote lhe disse para fazer. O sumo sacerdote mostrou-lhe em seguida o livro de Daniel, no qual estava escrito que um príncipe grego destruiria o império dos persas e disse-lhe que não duvidava de que era dele que a profecia fazia menção. Alexandre ficou muito contente. No dia seguinte, mandou reunir o povo e ordenou que dissessem que favores desejavam receber dele. O sumo sacerdote respondeu que eles suplicavam permissão para viver segundo as suas leis e as de seus antepassados e isenção, no sétimo ano, do tributo que lhe pagariam nos outros anos. Ele concordou. E, tendo eles também pedido que os judeus que moravam na Babilônia e na Média desfrutassem os mesmos favores, ele o prometeu com grande bondade e disse que se alguém desejasse servir em seus exércitos ele permitiria a tal pessoa viver segundo a sua religião e observar todos os seus costumes. Vários então alistaram-se. Esse grande príncipe, depois de agir desse modo em Jerusalém, passou às cidades vizinhas, que lhe abriram as portas. Os samaritanos, cuja capital então era Siquém, situada sobre o monte Gerizim e habitada por judeus desertores de sua nação, vendo que o conquistador tratara com bondade os de Jerusalém, resolveram dizer-lhe que também eram judeus. Pois, como dissemos há pouco, eles não nos reconhecem por compatriotas quando as coisa vão mal para nós e então falam a verdade. Mas quando a sorte nos é propícia eles procuram provar que têm a mesma origem, que são do nosso sangue, como descendentes de José por Manasses e Efraim, seus filhos. Assim, logo que Alexandre saiu de Jerusalém, eles foram, acompanhados pelos soldados que Sanabalete lhes havia mandado, à presença do soberano com grande aparato e demonstrações de alegria para pedir-lhe que fosse à sua cidade e honrasse o seu templo com a sua presença. Ele prometeu fazê-lo na volta. Quanto a um pedido para que também lhes perdoasse no sétimo ano os tributos, porque eles não semeavam a terra nessa ocasião, ele perguntou de que nação eles eram. Responderam que eram hebreus, mas que os sidônios os chamavam de siquemitas. Ele perguntou-lhes então se eram judeus. Eles responderam que não, e então ele lhes disse: "Eu concedi esse favor somente aos judeus, mas vou me informar desse assunto quando voltar e, depois que souber de tudo detalhadamente, farei o que for mais justo". Depois de assim lhes falar, despediu-os, mas ordenou às tropas de Sanabalete que o seguissem ao Egito, onde lhes daria terras, o que ele fez logo em seguida, e os aquartelou como guarnições da Tebaida. Depois da morte de Alexandre, o império foi dividido entre os seus sucessores, e o templo construído no monte Gerizim permaneceu em seu primitivo estado. Os judeus que moravam em Jerusalém e pecavam contra a fé, quer comendo alimentos proibidos, quer não observando o sábado, ou coisa semelhante, refugiavam-se entre os siquemitas, alegando que haviam sido injustiçados. Jado, sumo sacerdote, morreu nessa época, e Onias, seu filho, sucedeu-o. Livro Décimo Segundo CAPÍTULO 1 OS CHEFES DOS EXÉRCITOS DE ALEXANDRE, O GRANDE, DIVIDEM O IMPÉRIO DEPOIS DE SUA MORTE. TOLOMEU TORNA-SE DE IMPROVISO SENHOR DE JERUSALÉM. MANDA VÁRIAS COLÔNIAS DE JUDEUS AO EGITO E CONFIA NELES. GUERRAS CONTÍNUAS ENTRE JERUSALÉM E OS SAMARITANOS. 453. Alexandre, o Grande, morreu, depois de vencer os persas e tratar Jerusalém do modo como falamos. Seu império foi dividido entre os chefes de seu exército: Antígono recebeu a Ásia; Seleuco, a Babilônia e as nações vizinhas; Lisímaco, o Helesponto; Cassandro, a Macedônia e Tolomeu, filho de Lago, o Egito. Houve divergências entre eles com relação ao governo, as quais causaram sangrentas e longas guerras, desolação em várias cidades e a morte de um grande número de pessoas. A Síria sofreu todos esses males sob o reinado de Tolomeu, de quem acabamos de falar e ao qual se dava o nome de Sóter, isto é, "salvador", mas ele mostrou que não o tinha por justo título, pois veio a Jerusalém num dia de sábado com o pretexto de oferecer sacrifícios, e os judeus — como não desconfiaram dele, pois era dia de descanso — receberam-no sem dificuldade. Então esse príncipe tirou vários habitantes dos montes da Judéia, dos arredores de Jerusalém, da Samaria e do monte Cerizim e enviou-os para o Egito. Agatarchide, cnídio, que escreveu a história dos sucessores de Alexandre, censura por esse motivo a nossa tradição, dizendo que ela nos fez perder a liberdade. Disse ele: "Um povo, que traz o nome de judeu e que habita numa cidade grande e forte de nome Jerusalém, não tendo querido, por uma longa superstição, tomar as armas, permitiu que Tolomeu dela se tornasse senhor e rude dominador". Tolomeu, sabendo da resposta que os judeus tinham dado a Alexandre depois que vencera Dario — o que lhe deu a certeza de que eles observavam muito religiosamente os seus juramentos — confiou-lhes a guarda de diversos lugares, deu-lhes em Alexandria direitos de burguesia iguais aos dos macedônios e os obrigou, por juramento, a serem fiéis a ele e à sua posteridade. Vários outros judeus foram de boa mente estabelecer-se no Egito, para onde se dirigiam atraídos pela fertilidade do país e pelo afeto que Tolomeu testemunhava aos de sua nação. Os descendentes desses judeus fizeram contínua guerra aos samaritanos, porque nem uns nem outros queriam deixar os seus costumes. Os de Jerusalém sustentavam que somente o Templo de Jerusalém era santo e que não se deviam fazer sacrifícios em outros lugares. Por outro lado, os samaritanos sustentavam que era necessário oferecê-los no monte Gerizim. CAPÍTULO 2 TOLOMEU FILADELFO, REI DO EGITO, LIBERTA CENTO E VINTE MIL JUDEUS QUE ESTAVAM ESCRAVOS NO SEU REINO. MANDA VIR SETENTA E DOIS HOMENS DA JUDÉIA PARA TRADUZIR EM GREGO AS LEIS DOS JUDEUS, ENVIA RIQUÍSSIMOS PRESENTES AO TEMPLO E TRATA OS DEPUTADOS COM MAGNIFICÊNCIA REAL. 454. Tolomeu, cognominado Filadelfo, sucedeu no reino do Egito a Tolomeu Sóter, seu pai, e reinou trinta e nove anos. Mandou traduzir em grego as leis dos judeus e permitiu a cento e vinte mil homens que estavam nessa nação voltar ao seu país, e disso devo dar a razão. Demétrio Falero, diretor da biblioteca do príncipe, trabalhava com extremo cuidado para reunir, de todos os lugares do mundo, os livros que julgava merecerem essa honra e tinha isso como coisa que seria muito agradável ao soberano. Um dia, o rei perguntou-lhe quantos livros possuía, e ele respondeu que eram mais ou menos duzentos mil, mas esperava dentro de pouco tempo chegar a quinhentos mil, e que soubera haver entre os judeus muitas obras referentes às suas leis e aos seus costumes, escritas em sua língua e em seus caracteres e muito dignas de ocupar um lugar naquela soberba biblioteca. Porém, dariam muito trabalho para serem traduzidas em grego, porque a língua e os caracteres hebraicos tinham grande semelhança com os siríacos. No entanto, isso poderia ser feito, pois sua majestade não se importava com as despesas. O rei aprovou essa proposta e escreveu ao sumo sacerdote dos judeus, para que este lhe enviasse os livros. Aconteceu que naquele mesmo tempo Aristeu, a quem o príncipe amava extremamente por causa de sua moderação e sabedoria, tinha em mente pedir que pusessem em liberdade os judeus que estavam em seu reino. E essa ocasião pareceu-lhe muito favorável ao seu desígnio. No entanto, ele julgou dever comunicá-lo a Zozibe, a Tarentino e a André, chefes de seus guardas, antes de fazer a proposta ao rei, a fim de que eles apoiassem o que ia dizer. E todos foram da mesma opinião. Então ele falou deste modo ao soberano: "Tendo sabido que vossa majestade tem a intenção de ter não somente uma cópia das leis que os judeus observam, mas fazê-las traduzir, eu não estaria falando com sinceridade se fingisse não ver que isso não pode ser feito honestamente, quando vossa majestade conserva escravos neste reino um grande número de pessoas dessa nação. Mas seria, sem dúvida, digno de vossa bondade e generosidade libertar todos eles dessa miséria, pois, segundo o que pude concluir, após ter-me seguramente informado, o mesmo Deus que governa o vosso império e que adoramos sob o nome de Júpiter, porque nos conserva a vida, foi o autor da lei desse povo. Sendo, pois, que nenhuma outra nação lhe presta tão grande honra e culto tão particular, a sua piedade parece me obrigar a encaminhá-los ao seu país. Por isso, suplico humildemente que vossa majestade creia que a liberdade que tomo de vos falar assim não provém de nenhuma ligação ou aliança com esse povo, mas somente por eu saber que Deus é o Criador de todos os homens, em geral, e que as boas ações lhe são agradáveis". O rei escutou com atenção essas palavras e, com rosto alegre, perguntou a Aristeu qual seria o número de judeus aos quais ele propunha a liberdade. André, que estava presente, respondeu que podiam ser uns cento e vinte mil. Disse então o rei a Aristeu: "Credes, então, Aristeu, que o que me pedis é um pequeno presente?" Zozibe e Tarentino tomaram, então, a palavra e disseram ao rei que nada poderia seria mais digno de sua majestade que reconhecer com tão grandiosa ação o dever de agradecer a Deus por tê-lo elevado ao trono. O soberano sentiu tanto prazer ao constatar que todos pensavam do mesmo modo que prometeu — para satisfazer plenamente a vontade de Deus, segundo o desejo de Aristeu — pagar aos soldados, além do soldo, cento e vinte dracmas para cada judeu que tivessem como escravo. Eles disseram-lhe que essa despesa subiria a mais de quatrocentos talentos, mas ele respondeu que isso não o impediria de fazê-lo. Inclino-me a relatar as próprias palavras desse grande príncipe a esse respeito, a fim de que melhor se conheça a sua generosidade: "Queremos que todos os judeus aos quais os soldados do falecido rei, nosso pai, aprisionaram na Síria, na Fenícia e na judéia e venderam no Egito, como também os que antes ou mesmo depois foram vendidos em nosso reino, sejam libertados da servidão, e que se dêem de nossa moeda a cada um deles cento e vinte dracmas, que os nossos soldados receberão, além do soldo, pelos que forem de sua propriedade, e que os nossos tesoureiros paguem o resgate dos outros aos respectivos senhores. Porque tenho motivos para crer que isso ocorreu contra a vontade do rei, nosso pai, e contra toda a eqüidade, e que os soldados trouxeram ao Egito esse grande número de escravos pelo único desejo de se aproveitarem deles. O amor à justiça e a compaixão que se deve ter dos infelizes nos obriga a libertar todos esses escravos, depois de paga aos seus senhores a quantia que estipulamos. E, como não duvidamos de que a bondade da qual usamos nesta ocasião não nos será vantajosa, queremos que a presente determinação seja cumprida em boa fé, e, depois que for publicada, os que possuírem tais escravos nos dêem disso uma relação, dentro de três dias. Será permitido denunciar a quem não nos obedecer, e todos os seus bens serão confiscados em nosso favor". Esse documento foi apresentado ao rei, e ele achou que não estava bem explícito, pois deveria incluir expressamente os que haviam sido feito escravos antes e depois de tão grande número ser trazido ao Egito, quando Tolomeu Sóter se tornou senhor de Jerusalém. Ele queria, por uma bondade e magnificência reais, conceder a esses a mesma graça. Então ordenou que se tomasse a quantia necessária dos cofres dos tributos, para que fosse entregue aos tesoureiros e distribuída aos soldados como resgate desses judeus. A ordem foi executada em sete dias, e veio a custar ao soberano quatrocentos e sessenta talentos, porque os senhores dos escravos judeus cobraram também pelas crianças as cento e vinte dracmas de que falava a ordem real. Depois de uma libertação tão extraordinária, o rei, que nada fazia sem madura reflexão, ordenou a Demétrio que fizesse publicar a sua determinação a respeito da tradução dos livros hebraicos para a língua grega. Registrou-se o pedido apresentado a sua majestade por Demétrio, bem como as cartas escritas a esse respeito, o número e a riqueza dos presentes que foram enviados a fim de se dar a conhecer a extraordinária magnificência do soberano e o que os operários haviam feito como contribuição para a arte. A proposta apresentada ao rei por Demétrio, em forma de pedido, estava exarada nestes termos: "Demétrio, ao grande rei. Como vossa majestade me ordenou, fiz uma indagação a mais exata possível dos livros que ainda faltam para tornar perfeita a biblioteca real. Não houve cuidado ou solicitude que eu não empregasse nisso, e tenho de comunicar à vossa majestade que os livros que contêm as leis dos judeus estão no número dos que faltam, tanto porque estão escritos em caracteres hebraicos, que não conhecemos, quanto porque não nos incomodamos em procurá-los, porque vossa majestade ainda não havia manifestado o desejo de possuí-los. No entanto, é necessário possuí-los e que sejam fielmente traduzidos, porque contêm as mais sábias e perfeitas leis do mundo, pois foi o próprio Deus quem as outorgou, o que fez o historiador Hecateu Abderita dizer que não há poeta nem historiador que tenha falado assim, nem homem que tenha cumprido o que elas determinam, porque, sendo todas santas, não devem estar na boca dos profanos. É necessário, pois, se vossa majestade bem o julgar, que se escreva ao sumo sacerdote dos judeus para que ele escolha, entre os principais de cada tribo, os mais inteligentes e os que conhecem com mais perfeição essas leis e vo-los envie, a fim de que se reúnam e façam uma tradução exata e capaz de satisfazer plenamente os desejos de vossa majestade". Depois que o rei leu essa petição, ordenou que se escrevesse conforme o que nela se dizia a Eleazar, sumo sacerdote dos judeus, e determinou que se desse liberdade a todos os judeus que eram ainda escravos no seu reino. Ordenou que se enviassem cinqüenta talentos de ouro, para a confecção de taças, vasos e outros objetos próprios para as oblações, muitas pedras preciosas, que os guardas do tesouro haviam entregado aos joalheiros para que escolhessem e trabalhassem as que podiam ser usadas em adornos, e cem talentos de prata, para os sacrifícios e outros usos do Templo. Falarei das obras e dos ornamentos em que foram empregados, mas é preciso antes apresentar uma cópia da carta escrita ao sumo sacerdote e dizer de que modo ele foi elevado a essa dignidade. Depois da morte do sumo sacerdote Onias, Simão, seu filho, sucedeu-o e foi cognominado o Justo, por sua piedade e extrema bondade para com a nação. Deixou apenas um filho, de nome Onias, tão jovem que Eleazar, irmão de Simão, de quem se trata agora, exerceu no lugar dele o sumo sacerdócio. Foi a esse Eleazar que Tolomeu escreveu a seguinte carta: "O rei Tolomeu a Eleazar, sumo sacerdote, saudação. O falecido rei, nosso pai, tendo encontrado em seu reino vários judeus que os persas para lá haviam levado como escravos, tratou-os tão favoravelmente que os engajou em grande parte no seu exército, com bom soldo. Colocou vários deles como guarnição em diversos lugares, con-fiando-lhes até mesmo a defesa. Isso os tornou temíveis aos egípcios. E nós, depois de nossa ascensão ao trono, não lhes testemunhamos menos bondade, particularmente aos de Jerusalém — pois pusemos em liberdade mais de cem mil deles depois de pagar o resgate aos seus senhores — tanto estamos persuadidos de nada mais poder fazer de agradável a Deus para agradecer-lhe a dádiva de haver colocado o cetro em nossas mãos para o governo de tão grande reino. Fizemos também alistar em nossas tropas aqueles que pela idade são os mais aptos a pegar em armas e destacamos mesmo alguns deles para servir junto de nós, como prova de nossa confiança na sua fidelidade. Mas, para vos mostrar mais particularmente a nossa afeição pelos judeus de todo o mundo, queremos que se traduzam as vossas leis do hebraico para o grego, e colocaremos essa tradução em nossa biblioteca. Assim, far-nos-eis coisa muito grata se escolherdes em todas as vossas tribos pessoas que, pela idade e inteligência, tenham adquirido um grande conhecimento de vossas leis e sejam capazes de as traduzir com exata fidelidade. Não duvidamos de que essa obra, saindo como nós esperamos, nos trará grande glória. Para tratar convosco desse assunto, enviamo-vos André, comandante de nossos guardas, e Aristeu, que são dois dos nossos servidores de mais confiança. Eles vos estão levando, de nossa parte, cem talentos de prata, para serem empregados nas oblações dos sacrifícios e em outros usos do Templo. Esperamos a vossa resposta, e ela nos causará grande alegria". Eleazar, para responder a essa carta o mais respeitosamente possível, assim escreveu ao rei: "O sumo sacerdote Eleazar, ao rei Tolomeu, saudação. Recebi com o sentimento que devo ter pela vossa real benevolência a carta que vossa majestade se dignou escrever-me. Ela foi lida na presença de todo o povo, e nela notamos, com grande satisfação, sinais de vossa piedade para com Deus. Recebemos também e mostramos a todos os vinte vasos de ouro e os trinta de prata, as cinco taças e a mesa que devem ser consagradas e empregadas nos sacrifícios e no serviço do Templo, bem como os cem talentos que nos foram trazidos, da parte de vossa majestade, por André e Aristeu, cujos méritos os tornam tão dignos da afeição com que os honra vossa majestade. Vossa majestade pode ficar certo de que tudo faremos para mostrar o nosso reconhecimento pelos tantos favores com que vos dignais cumular-nos. Oferecemos também sacrifícios a Deus por vossa majestade, pela princesa vossa irmã, pelos príncipes, por vossos filhos e por todas as pessoas que vos são caras. Todo o povo pediu a Deus em suas orações que escute os vossos desejos, confirme o vosso reino em perfeita paz e faça com que essa tradução de nossas leis vos dê toda a satisfação que possais desejar. Escolhemos, majestade, seis homens de cada uma de nossas tribos para levar até vós as nossas santas leis e esperamos de vossa bondade e justiça que, quando não tiverdes mais necessidade deles, sejam mandados de volta em segurança com os que vos irão apresentá-los". Seria inútil, segundo a minha opinião, citar aqui os nomes das setenta e duas pessoas que levaram as leis dos judeus ao rei Tolomeu, embora todas sejam mencionadas na carta do sumo sacerdote. Não creio, porém, dever passar em silêncio a magnificência e a beleza dos presentes que o príncipe ofereceu a Deus, pois podem nos manifestar ainda mais a sua piedade. Não se contentou ele em fazer grandes despesas para esse fim, mas ofereceu presentes até aos operários, para incitá-los a trabalhar com maior cuidado e diligência. Assim, embora a continuação da história não me obrigue a falar disso, não deixarei de fazê-lo, pois tão extraordinária liberalidade merece que dela fiquem indícios para a posteridade. Começarei pela soberba mesa. Como o príncipe desejava que ela sobrepujasse em muito a que estava no Templo em Jerusalém, mandou tomar a medida desta, e era seu desejo que a sua fosse cinco vezes maior. Contudo, como ele também tinha em mente a comodidade e a magnificência, o temor de torná-la inútil ao uso a que era destinada obrigou-o a contentar-se em fazê-la do mesmo tamanho que a outra. Todavia, para embelezá-la e enriquecê-la, usou o mesmo que teria gasto para fazê-la maior, pois era perito em todas as artes e tão hábil em inventar coisas novas e admiráveis que ele mesmo fornecia os desenhos aos operários e os instruía sobre a maneira de executá-los. O comprimento da mesa era de dois côvados e meio, a largura, de um côvado e a altura, de um côvado e meio. Era de ouro maciço, muito puro. As bordas, cuja largura era de um palmo, tinham florões em relevo, também em escultura, dispostos ao redor de alguns cordões muito bem trabalhados. Os diversos lados desses florões, que eram de forma triangular, eram tão iguais e tão justos que de qualquer lado mostravam sempre a mesma figura. A parte inferior da mesa era muito bem trabalhada, mas a superior era ainda mais, porque ficava mais expôsta à vista, e, para qualquer lado que estivesse voltada, era sempre perfeitamente bela. Pedras preciosas de grande valor estavam presas com broches de ouro, a distância iguais, aos cordões de que falamos. Havia também ao redor de toda a mesa grande quantidade de outras pedras preciosas, cortadas de forma oval e entremeadas de adornos em relevo. E, ainda ao redor da mesa, estavam representadas, sob a forma de uma coroa, diversas espécies de frutos, tais como cachos de uvas, espigas de trigo e romãs. Todos esses frutos eram feitos de pedras preciosas coloridas e encastoadas no ouro. Viam-se também, sob essa coroa, uma fila de pérolas em forma de ovos e, abaixo das pérolas, uma fileira de pedras preciosas deforma oval, misturadas com obras de relevo, como as outras. A mesa era tão bela em si mesma e em todas as suas partes, e tão ricamente trabalhada, que de qualquer lado que fosse vista não se notava diferença alguma. Havia por baixo uma lâmina de ouro de quatro dedos de largura, que a atravessava inteiramente e na qual os pés da mesa estavam presos com grampos de ouro, a igual distância. Esses grampos prendiam de tal modo a parte inferior da mesa que, estando colocada em qualquer posição, apresentava sempre o mesmo aspecto. Gravado sobre a mesa estava um meandro,* assinalado por grande quantidade de pedras preciosas, como se fossem estrelas. Era um prazer ver brilhar os rubis, as esmeraldas e tantas outras pedras de valor, todas estimadas e procuradas pela sua excelência. Ao longo desse meandro, havia nós de escultura cujo centro, em forma de losango, era enriquecido com cristais e com âmbar, em intervalos iguais e tão bem dispostos que nada podia ser mais belo ou perfeito. As cornijas dos pés eram em forma de lírios, cujas folhas se dobravam por baixo da mesa, embora a haste fosse reta. Sua base, da largura de um palmo, era enriquecida com rubis e tinha uma dobra ao redor. Era de oito dedos o espaço entre os pés, e eles estavam apoiados sobre essa base. A figura dos pés era admirável. Viam-se heras e ramos de videira com os cachos entrelaçados de maneira muito delicada, tão agradável e semelhantes ao natural que, quando soprava o vento, os olhos se enganavam, parecendo vê-los mover-se, como se não fossem obras de arte, mas da natureza. As três peças de que toda a mesa era composta estavam tão bem adaptadas que não era possível perceber as junturas. A espessura da mesa era de meio côvado. Assim, a riqueza da matéria e a excelência e variedade dos ornamentos de tão magnífico presente mostravam muito bem que esse grande príncipe, não tendo podido, pelas razões que citamos, fazer essa mesa maior que a que estava no Templo, nada economizou para que a superasse em tudo o mais. ______________________ * Meandro é um rio da Frígia, que tem várias voltas e contravoltas. Havia também dois grandes vasos de ouro em forma de taça e talhados em escamas. Neles estavam encaixadas, desde os pés até em cima, diversas fileiras de pedras preciosas, que compunham um meandro de um côvado de largura, e acima dele havia gravuras excelentes. Um tecido em forma de rede, da largura de quatro dedos, que ia até o alto dos vasos e dos compartimentos feitos em losangos, aumentava ainda a beleza daquela obra. As bordas dos vasos eram enriquecidas com lírios e outras flores, e com ramos de videira carregados de cachos de uvas entrelaçados. Cada um desses vasos continha duas grandes medidas. Já as taças de prata eram mais brilhantes que espelhos e reproduziam o rosto dos que as contemplavam. O rei mandou também trinta vasos, nos quais o que não estava coberto de pedras preciosas tinha folhas de hera e de vinha muito bem gravadas. Não era possível contemplar essas obras sem admiração, porque o zelo a elas dedicado e a sua magnificência contribuíam mais para isso que o trabalho e a ciência daqueles excelentes artífices. O príncipe não se contentou em não medir despesas, mas deixava até mesmo negócios importantes para ir ver os operários trabalharem. E animava-os de tal modo com a sua presença que eles, para contentá-lo, duplicavam os esforços. Depois que o sumo sacerdote Eleazar recebeu esses ricos presentes, consagrou-os a Deus no Templo, em nome do príncipe, e prestou muita honra aos que os haviam levado, despe-dindo-os com muitos presentes. O rei, ao regresso deles, interrogou André e Aristeu sobre diversas coisas e mostrou tanta solicitude em conversar com os deputados que tinham vindo com eles que despediu, contra o seu costume, os que ali estavam para a audiência ordinária que ele dava a cada cinco dias aos seus súditos (ele também concedia uma, todos os meses, aos embaixadores). Esses sábios anciãos ofereceram-lhe os presentes do sumo sacerdote e apresentaram a lei que lhes fora entregue. O soberano fez perguntas sobre o que ela continha e, depois que a desdobraram, ficou admirado com a delicadeza do pergaminho sobre o qual estava escrita, em letras de ouro, bem como com as folhas presas tão juntamente que não era possível perceber as costuras. Depois de a observar por muito tempo, disse que lhes agradecia por terem vindo, e mais ainda aos que os tinham enviado, e que não podia agradecer suficientemente a Deus por haverem trazido a ele as suas leis. Os deputados, com demonstrações de afeto, desejaram-lhe toda sorte de prosperidade. O rei ficou tão comovido que não pôde reter as lágrimas, porque elas não são somente sinal de grande tristeza, mas também de imensa alegria. Ele ordenou em seguida que entregassem os livros aos que os deviam guardar, abraçou-os e disse-lhes que era justo, depois de haver falado do objetivo de sua viagem, falar também do que lhes competia fazer. Assim, para mostrar o quanto a vinda deles lhe era agradável, queria que durante o resto de sua vida se renovasse a memória daquela data, que coincidia também com o dia em que ele vencera uma batalha naval sobre Antígono. Concedeu-lhes ainda a honra de estarem à sua mesa e ordenou que fossem muito bem alojados, nos altos da fortaleza que fica próxima do promontório. Nicanor, que era encarregado de receber os estrangeiros, teve particular cuidado deles e ordenou o mesmo a Doroteu, pois o rei havia ordenado que, para melhor se tratarem os estrangeiros, as cidades fornecessem o que tinham do gosto deles e que tudo fosse preparado segundo o costume do país de onde vinham. Porque ele sabia que, por mais apetitosas que sejam as iguarias, não podem ser consideradas boas se não se adaptarem ao gosto da pessoa ou não forem preparadas da maneira a que ela está habituada. Como Doroteu estava encarregado disso, Nicanor ordenou-lhe que fizesse duas fileiras de bancos, nos quais os deputados deveriam sentar-se, nos banquetes do rei, metade deles à sua direita e metade à esquerda. Tudo ele fez para honrá-los e ordenou a Doroteu que os servisse à maneira do país deles. Os sacerdotes egípcios, que tinham o costume de orar antes da refeição do rei, não o fizeram. Então o soberano disse a Eliseu, um dos deputados, que era sacerdote, que fizesse a oração. Ele levantou-se e rogou a Deus pela prosperidade do rei e de seus súditos. Todos os que estavam presentes proferiram aclamações de alegria e depois puseram-se à mesa. O rei, durante a refeição, fez perguntas Fílonsóficas aos deputados e ficou tão satisfeito com as respostas que continuou por doze dias a tratá-los do mesmo modo. Se alguém quiser saber mais particulares a esse respeito, terá apenas de ler o que Aristeu escreveu. Mas o rei não foi o único que lhes admirou as respostas. O filósofo Menedemo confessou que elas o confirmavam na opinião de que todas as coisas são governadas pela Providência e lhe forneciam razões para sustentar o seu parecer. O rei chegou a conceder-lhes a honra de dizer que obtivera tanto proveito de suas conservações que aprendera até mesmo de que modo devia proceder para bem governar o seu reino. Ordenou em seguida que fossem levados aos aposentos já para eles preparados. Três dias depois, Demétrio levou-os por uma estrada longa sete estádios, pela ponte que une a ilha a terra firme, a uma casa situada à beira-mar, do lado norte, afastada de qualquer barulho, para que nada pudesse perturbá-los em seu trabalho, o qual exigia muita atenção e cuidado, e rogou-lhes que, tendo naquele lugar tudo o que podiam desejar, começassem sem mais tardar o grande empreendimento para o qual haviam sido trazidos. Eles o fizeram com toda a dedicação e constância, trabalhando assiduamente para que a tradução fosse exatíssima. Trabalhavam ininterruptamente até as nove horas da manhã, quando lhes levavam o alimento. (Nisso eles eram muito bem tratados, pois Doroteu seguia exatamente as ordens recebidas, apresentando-lhes os mesmos alimentos que haviam sido preparados para a mesa real.) Eles iam todas as manhãs ao palácio saudar o soberano e depois punham-se a trabalhar, após lavar as mãos nas águas do mar. Empregaram apenas setenta e dois dias para traduzir toda a Lei. Terminada a obra, Demétrio reuniu todos os judeus e leu-lhes a tradução na presença dos setenta e dois intérpretes. Eles a aprovaram, elogiaram muito Demétrio por haver imaginado uma coisa tão proveitosa para eles e rogaram-lhe que também mandasse fazer aquela leitura aos chefes de sua nação. Eliseu, sacerdote, o mais idoso dos intérpretes e os magistrados constituídos para governo do povo pediram em seguida que nada mais se viesse a mudar naquela obra, que fora concluída com tão raro êxito. Essa proposta foi aprovada, dando a esse ato força de lei, porém com a condição de que antes seria permitido a cada um examinar a tradução, para ver se nada havia a acrescentar ou a suprimir e a fim de que, tendo sido o assunto muito bem ponderado, nunca mais se tivesse de voltar a ele. O rei viu com grande prazer que o seu desígnio tivera muito bom êxito, e com proveito para o povo. E a sua alegria aumentou em muito ainda quando ele ouviu a leitura das santas leis. Não se cansava de admirar a prudência e a sabedoria do legislador que as elaborara. E, um dia, quando conversava com Demétrio, perguntou-lhe como nenhum historiador ou poeta havia falado daquelas leis, sendo elas tão excelentes. Ele respondeu-lhe que, como eram divinas, ninguém se animara a fazê-lo, e os que o haviam feito foram castigados por Deus. Teopompo, disse ele ainda, teve essa intenção, isto é, inserir alguma coisa delas em sua história, e perdeu o juízo durante trinta dias. Depois de reconhecer, em intervalos de lucidez e em um sonho, que aquilo lhe acontecera por ele haver querido penetrar as coisas divinas e dar notícia delas a homens profanos, a cólera de Deus foi aplacada com preces, e ele voltou ao seu juízo normal. O profeta Teodecto, tendo misturado em uma de suas tragédias algo que tirara dos livros divinos, perdeu a visão e só a recobrou depois de reconhecer a sua falta e rogar a Deus que o perdoasse. Quando o rei recebeu os livros das mãos de Demétrio, adorou-os e ordenou que fossem guardados com o máximo cuidado, a fim de que em nada pudessem ser modificados. Disse depois aos sábios intérpretes que era justo permitir-lhes o regresso ao seu país, e rogava que viessem muitas vezes visitá-lo, pois os receberia com muito prazer e dar-lhes-ia tantos presentes que não se arrependeriam da viagem. Depois de lhes falar de maneira tão gentil, despediu-os com muitos e magníficos presentes. Deu a cada um diversas espécies de vestess, dois talentos de ouro, uma taça do peso de um talento e assentos para se deitarem e para as refeições. Ao sumo sacerdote Eleazar, mandou dez leitos cujos pés eram de prata, um vaso do peso de trinta talentos, dez túnicas de púrpura, uma belíssima coroa de ouro, cem peças de fazenda de fino linho, diversos vasos para beber e turíbulos e taças de ouro para serem consagrados a Deus. Na carta que lhe escreveu, rogou-lhe que permitisse aos deputados vir visitá-lo todas as vezes que quisessem, pois teria grande prazer em conversar com eles, pela sua ciência e capacidade, e far-Ihes-ia ainda sentir os efeitos de sua liberalidade. Pode-se avaliar, pelo que acabo de referir, com que magnificência Tolomeu Filadelfo, rei do Egito, tratou os judeus. CAPÍTULO 3 FAVORES RECEBIDOS PELOS JUDEUS DOS REIS DA ÁSIA. ANTÍOCO, O GRANDE, CONTRAI ALIANÇA COM PTOLOMEU, REI DO EGITO, QUE LHE DÁ CLEÓPATRA, SUA FILHA, EM CASAMENTO E DIVERSAS PROVÍNCIAS COMO DOTE, ENTRE AS QUAIS AJUDÉIA. ONIAS, SUMO SACERDOTE, IRRITA O REI DO EGITO PELA RECUSA EM LHE PAGAR TRIBUTO. 455. Os reis da Ásia trataram também os judeus com grande honra, por causa das provas que estes, nas guerras, lhes davam de sua fidelidade e coragem. Seleuco, cognominado Nicanor, deu-lhes o direito de burguesia, tal como aos macedônios e aos gregos, em todas as cidades que construiu na Ásia, na Baixa Síria e mesmo em Antioquia, que é a capital. Eles desfrutam ainda hoje esse direito, pois, não querendo usar o óleo dos estrangeiros, os que têm o encargo do comércio são obrigados a dar-lhes uma certa soma de dinheiro no valor do óleo. Os habitantes de Antioquia esforçaram-se, durante as últimas guerras, por abolir esse costume. Mas Múcio, governador da Síria, impediu-o. E esses mesmos habitantes e os de Alexandria não puderam obter dos imperadores Vespasiano e Tito que os privassem de seu direito de burguesia. Nisso os romanos, e particularmente esses dois grandes príncipes, mostraram a sua justiça e generosidade. As tribulações que sofreram nas guerras contra nós e o ressentimento pela nossa revolta não os persuadiram a tocar em nossos privilégios. Em vez de se deixarem levar pela cólera e pelas instâncias de dois povos tão importantes como o de Alexandria e o de Antioquia, eles tiveram mais consideração aos antigos méritos de nossa nação que às ofensas que dela receberam e ao desejo manifestado por nossos inimigos de nos maltratarem. E deram-lhes esta razão, digna deles: aqueles dentre nós que tomaram armas contra os romanos já haviam sido castigados por isso na mesma guerra, e não seria justo privar de um direito adquirido com justo título os que não os haviam ofendido. Sabe-se também que Marco Agripa fez semelhante justiça aos judeus, quando os jônios instaram com ele para privá-los do direito de burguesia concedido por Antíoco, neto de Seleuco, ao qual os gregos dão o nome de Deus. Pois, se quisessem ser tratados como eles, então que adorassem os mesmos deuses. Esse assunto foi posto em deliberação, e os judeus, defendidos por Nicolau de Damasco, ganharam a causa, sendo-lhes permitido continuar a viver segundo as suas leis e costumes. O soberano declarou, até mesmo em favor dele próprio, que não era permitido fazer inovação alguma. Se alguém desejar saber mais particularmente como o assunto decorreu, terá apenas de ler os livros cento e vinte e três e cento e vinte e quatro desse historiador. E verdade que não há motivo de admiração pelo juízo pronunciado por Agripa, pois não havíamos ainda tomado armas contra os romanos. Mas sem isso não saberíamos admirar o bastante a grandeza da coragem de Vespasiano e de Tito, os quais, depois de se haverem exposto a tantos perigos e dificuldades na guerra que sustentamos contra eles, em vez de se deixarem levar pelo ressentimento, procederam com tanta moderação e justiça. Devemos, porém, retomar agora o fio de nossa narração. 456. Durante o tempo em que Antíoco, o Grande, reinava na Ásia e fazia guerra a Ptolomeu Filopater, rei do Egito, e a seu filho, não ainda vencedor nem vencido, a Judéia e a Baixa Síria sofriam do mesmo modo e eram como um barco batido pelas ondas, pela boa ou má sorte desse príncipe. Mas, por fim, Antíoco, vitorioso, submeteu a judéia. Após a morte de Ptolomeu Filopater, Ptolomeu, seu filho, cognominado Epifânio, enviou contra a Síria um grande exército, sob o comando de Escopas, que se apoderou de várias cidades e pôs a nossa nação sob o domínio desse príncipe. Pouco tempo depois, Antíoco venceu Escopas numa grande batalha perto da nascente do Jordão e reconquistou a Síria e Samaria. Os judeus, então, entregaram-se inteiramente a ele, receberam o seu exército na cidade, alimentaram os seus elefantes e ajudaram as tropas que atacaram as guarnições deixadas por Escopas na fortaleza de Jerusalém. Antíoco, para recompensá-los pela afeição que lhe haviam demonstrado, escreveu aos generais de seu exército e aos seus mais féis servidores, que disso sabiam, que resolvera gratificá-los. Transcreverei a cópia da carta, depois de dizer de que modo Políbio Megalopolitano fala dela no décimo sexto livro de sua história. Diz ele: "Escopas, general do exército de Ptolomeu, entrou no inverno pela parte superior do país e submeteu os judeus". Ele acrescenta pouco depois: "Quando Antíoco venceu Escopas, tornou-se senhor das cidades de Samaria, Gadara, Batanea e Aíla, e imediatamente os judeus que moram em Jerusalém, onde está o célebre Templo, abraçaram o seu partido". Estas são palavras do próprio historiador. A carta de Antíoco, após a qual retomarei o fio da história, assim estava exarada: "O rei Antíoco, a Ptolomeu, saudação. Os judeus nos testemunharam grande afeto logo que penetramos no seu território. Eles vieram à nossa presença com os seus chefes, receberam-nos em sua cidade com toda espécie de honras, deram alimento às nossas tropas e aos nossos elefantes e uniram-se aos nossos contra a guarnição egípcia da fortaleza de Jerusalém. Cremos que é dever de nossa bondade manifestar-lhes a nossa gratidão. Assim, para lhes darmos os meios de repovoar a sua cidade, que tantos revezes tornaram deserta, e para lá reunir os anciãos esparsos por diversas nações, ordenamos o que segue. Primeiramente que, em favor da religião e por um sentimento de piedade lhes seja dada a importância de vinte mil peças de prata, para a compra de animais para os sacrifícios, e medidas de trigo recolhidas na província, para delas se tirar a flor da farinha, e trezentos e sessenta e cinco medidas de sal. Queremos também que lhes sejam fornecidos todos os artigos de que necessitarem para a reparação das portas e das outras dependências do Templo e que a madeira, que para esse fim será obtida da Judéia, das províncias vizinhas e do monte Líbano, não pague tributo, bem como todos os outros materiais de que tiverem necessidade para a reedificação do Templo. Permitimos também aos judeus viver segundo as suas leis e costumes e isentamos os seus governadores, sacerdotes, escribas e cantores do tributo ordenado por cabeça, do presente que costumavam oferecer ao rei — uma coroa de ouro — e de tudo o mais em geral. E, para que a cidade de Jerusalém possa ser mais rapidamente repovoada, isentamos também de todo tributo, durante três anos, todos os que nela residem agora e os que vierem habitá-la no mês de hiperbereteom. Diminuímo-lhes, para futuro, o terço de todos os tributos, em consideração às perdas que sofreram. Queremos ainda que todos os cidadãos que foram aprisionados e feitos escravos sejam postos em liberdade com seus filhos e restaurados em todos os seus bens". O príncipe não se contentou em escrever essa carta, mas, para mostrar o seu respeito pelo Templo, fez um edito contendo o que segue: que jamais seria permitido a um estrangeiro lá penetrar sem o consentimento dos judeus, assim como ao judeu que não se tivesse purificado segundo o que a Lei determina; que não se levaria à cidade carne de cavalo, de mula ou de asno, quer domesticado, quer selvagem, de pantera, de raposa, de lebre ou de qualquer outro animal imundo que fosse proibido comer entre os judeus; que nem mesmo se levariam as suas peles e não se criaria nenhum deles, mas somente animais de que os seus antepassados estavam acostumados a se servir para os sacrifícios, sob pena de os contraventores pagarem uma multa de três mil dracmas de prata em favor dos sacerdotes. O mesmo príncipe deu-nos ainda outra prova de seu afeto e da confiança que depositava em nós, pois, quando soube que havia rebelião na Frígia e na Lídia, escreveu a Zêuxis, que comandava o seu exército nas províncias superiores e era o mais querido de seus generais, que mandasse para a Frígia alguns dos judeus que moravam em Jerusalém. Assim estava escrita a sua carta: "O rei Antíoco a Zêuxis, seu pai, saudação. Tendo sabido que alguns provocam rebelião na Frígia e na Lídia, julgamos que esse assunto merece a nossa atenção e cuidado. Depois de termos tratado disso em nosso conselho, julgamos conveniente mandar para lá, aos lugares onde seja mais necessário, uma guarnição de dois mil judeus dentre os que moram na Mesopotâmia e na Babilônia, porque a sua piedade para com Deus e as provas que os reis nossos prede-cessores receberam de seu afeto e de sua fidelidade nos dão motivo para crer que eles nos serão muito úteis. Assim, é nosso desejo que, não obstante todas as dificuldades, os encaminheis para lá. Que vivam segundo as suas leis e se lhes dêem espaço para construir e terras para cultivar e plantar vinhas, sem que sejam obrigados, durante dez anos, a contribuir com qualquer coisa dos frutos que colherem. Queremos também que lhes forneçais o trigo de que precisarem para viver até que tenham colhido o fruto de seu trabalho, a fim de que, depois de receberem tantas provas de nossa benevolência, nos sirvam ainda de melhor vontade. Recomendamos que tomeis grande cuidado deles, de modo que ninguém se atreva a lhes causar desprazer". 457. Isso basta para mostrar o afeto de Antíoco, o Grande, pelos judeus. Esse príncipe fez aliança com Ptolomeu, rei do Egito, e deu-lhe Cleópatra, sua filha, em casamento. E, como dote, entregou-lhe a Baixa Síria, a Fenícia, a judéia e metade dos tributos de suas províncias, pagos pelos principais habitantes a esses dois reis, que entregavam a soma aos seus tesouros. 458. Ao mesmo tempo, os samaritanos, que então eram poderosos, causaram muitos males aos judeus, quer por devastações no campo, quer por fazerem prisioneiros. Onias, filho de Simão, o justo, e sobrinho de Eleazar, havia sucedido no cargo de sumo sacerdote a Manasses, que o havia ocupado depois da morte de Eleazar. Onias era um homem de pouco Espírito e tão avaro que não queria pagar o tributo de vinte talentos de prata que seus predecessores estavam acostumados a pagar ao rei do Egito. Ptolomeu, cognominado Evérgete, pai de Filopater, ficou tão irritado com isso que mandou Ateniom, que desfrutava grande prestígio perante ele, a Jerusalém para ameaçá-lo de entregar o país ao saque de suas tropas se ele não cumprisse a obrigação. E ele foi o único dentre os judeus que não se atemorizou, pois seu amor pelo dinheiro o tornava insensível a tudo o mais. CAPÍTULO 4 JOSÉ, SOBRINHO DO SUMO SACERDOTE ONIAS, OBTÉM DE PTOLOMEU, REI DO EGITO, O PERDÃO PARA O TIO, CONQUISTA AS BOAS GRAÇAS DO PRÍNCIPE E FAZ GRANDE FORTUNA. HIRCANO, FILHO DE JOSÉ, COLOCA-SE TAMBÉM OTIMAMENTE NO ESPÍRITO DE PTOLOMEU. MORTE DE JOSÉ. 459. José, filho de Tobias e de uma irmã de Onias, o qual, embora muito jovem, era tão sensato e virtuoso que todos o honravam em Jerusalém, tendo sabido de sua mãe, no seu país natal, de nome Ficola, que chegara um homem da parte do rei para o fim de que falamos, foi imediatamente ter com Onias, seu tio, e disse-lhe que era estranho que, tendo sido escolhido pelo povo para a honra do sumo sacerdócio, tivesse tão pouco interesse pelo bem público, a ponto de não temer colocar todos os seus concidadãos em perigo por não pagar o que devia. Se a sua paixão pelo dinheiro era tão grande que o fazia desprezar os interesses do país, ele devia pelo menos ir ter com o rei e pedir-lhe que perdoasse toda ou parte da soma a pagar. Onias respondeu-lhe que pouco se importava com o sumo sacerdócio e preferia renunciá-lo a procurar o rei. José, então, rogou que lhe permitisse falar ao rei em nome dos habitantes de Jerusalém. Tendo obtido com facilidade a permissão, mandou reunir todo o povo no Templo e disse-lhes que a negligência de seu tio não os devia atemorizar e que se oferecia para ir falar com o rei, da parte deles, a fim de provar-lhe que nada haviam feito que pudesse desagradá-lo. O povo agradeceu-lhe muito, e José foi imediatamente procurar o deputado do rei, levou-o à sua casa, tratou-o bem durante alguns dias, deu-lhe muitos presentes e disse que o seguiria até o Egito. Tanta delicadeza, unida à franqueza e às excelentes qualidades de José, ganharam de tal modo o coração de Ateniom que ele mesmo o exortou a fazer aquela viagem e prometeu-lhe uma boa ajuda, a fim de que ele sem dificuldade conseguisse do rei tudo o que desejava. Quando o deputado regressou para junto do rei, censurou muito a ingratidão de Onias, mas não poupou elogios a José e garantiu-lhe as razões do povo, cuja defesa fora obrigado a empreender por causa da negligência do tio. O mesmo deputado continuou a prestar tão bons serviços a José que o rei e a rainha Cleópatra, sua mulher, conceberam grande afeto por ele, mesmo antes de tê-lo visto. José arranjou dinheiro com amigos que tinha em Samaria. Empregou vinte mil dracmas nos preparativos e partiu para Alexandria. Encontrou no caminho os mais ilustres das cidades da Síria e da Fenícia, que iam tratar com o rei sobre o tributo que deviam pagar, o qual o príncipe impunha todos os anos aos mais ricos. Eles zombaram da pobreza de José, e aconteceu que, quando chegaram, o rei voltava de Mênfis. José foi à sua presença e encontrou-o ainda no carro com a rainha sua esposa. Ateniom lá estava também e, logo que viu José, disse ao rei que era aquele o judeu de quem havia falado. O rei saudou-o, pediu que subisse ao carro e fez-lhe amargas queixas de Onias. José respondeu que o rei devia perdoar a velhice do tio, pois os velhos em nada diferem das crianças, e que ele e todos os outros, que eram jovens, nada fariam que pudesse desagradá-lo. Essa resposta tão sensata aumentou ainda a afeição que o rei já concebera por ele. Ordenou que o alojassem no palácio e convidou-o à sua mesa. Isso causou não pouco desprazer aos sírios que José havia encontrado no caminho. No dia da adjudicação dos tributos, os da Síria, da Fenícia, da judéia e de Samaria, todos juntos, chegaram à soma de oito mil talentos. José, então, censurou-os por se reunirem para contribuir com tão pouco e ofereceu-se para dar duas vezes aquela importância e deixar ainda, em favor do rei, o confisco dos condenados, do qual pretendiam aproveitar-se. O rei viu com prazer que José aumentava as suas rendas, mas perguntou que cauções oferecia. José respondeu, com gentileza, que eram muito boas, as quais o rei não poderia recusar. O rei pediu-lhe que as apresentasse, e ele disse: "Minhas cauções, majestade, serão vossa majestade e a rainha, pois ambos respondereis por mim". O príncipe sorriu e adjudicou-lhe os tributos sem exigir caução. Assim, os homens ilustres das outras cidades, que também estavam ali, voltaram confusos para os seus países. José tomou depois dois mil homens das tropas do rei, a fim de forçar os recusantes a pagar os tributos, e, depois de entregar a Alexandre quinhentos talentos da parte dos que estavam em melhor condição na corte, foi para a Síria. Os habitantes de Asquelom foram os primeiros a desprezar as suas ordens. E, não se contentando em não querer pagar, ultrajaram-no com palavras. Mas ele soube castigá-los. Ordenou imediatamente a prisão de vinte dos principais do povo e os mandou matar. Depois escreveu ao rei, para prestar contas do que havia feito, e enviou-lhe mil talentos, provenientes do confisco. O príncipe ficou tão satisfeito com o seu proceder que o elogiou magnificamente e permitiu que, dali por diante, fizesse do confisco o uso que desejasse. O castigo dos ascalonitas encheu de temor as outras cidades da Síria, que lhe abriram as portas e pagaram o tributo sem dificuldade alguma. Os habitantes de Citópolis, contudo, também recusaram pagar e igualmente ultrajaram José. Ele os tratou como aos ascalonitas e enviou também ao rei o que obteve do confisco. Aumentando as rendas do rei, fez a si mesmo um grande benefício. E, como era muito sensato, julgou dever servir-se disso para aumentar o próprio prestígio. Por isso, não se contentou em dar inteira satisfação ao príncipe, mas fez grandes presentes aos que desfrutavam o favor do soberano e aos mais ilustres da corte. 460. José passou vinte e dois anos desse modo, sempre em franca prosperidade. Teve sete filhos de uma esposa e um oitavo, de nome Hircano, de outra, que era filha de Solim, seu irmão, e que desposara como vou narrar. Partiu ele para Alexandria com Solim, que para lá levara a filha a fim de casá-la com alguma personalidade importante de sua nação. José ceava com o rei, e uma jovem muito bela dançou com tanta graça diante do príncipe que conquistou o coração de José. Ele falou com o irmão e rogou-lhe que, como a sua lei não lhe permitia desposá-la, providenciasse um meio para que pudesse tê-la como senhora. Solim o prometeu, mas à noite, em vez disso, mandou colocar na cama de José a própria filha, muito bem trajada. José, que naquele dia estava muito contente, não percebeu a fraude. O amor de José aumentou ainda mais, e ele disse ao irmão que, não podendo vencer aquela paixão, temia que o rei não lhe quisesse mais dar aquela jovem. Solim disse-lhe para não ficar apreensivo, pois poderia, sem temor, satisfazer o seu desejo e desposá-la. Disse-lhe depois quem ela era e de como preferira permitir que a própria filha sofresse aquela vergonha a deixar que ele se submetesse a outra ainda maior. José agradeceu-lhe o afeto demonstrado e desposou a filha dele, da qual teve Hircano, de quem acabamos de falar. Este demonstrou, desde a idade de treze anos, tanta inteligência e sabedoria que sobrepujava todos os outros irmãos. Mas as suas excelentes qualidades, em vez de fazê-lo amado, despertaram neles ódio e inveja. José, querendo saber qual dos filhos do primeiro matrimônio era o melhor, mandou educá-los e instruí-los com grande cuidado por excelentes mestres. Eram, porém, tão preguiçosos que voltaram dos estudos tão ignorantes como quando partiram. Mandou depois Hircano, que era o mais jovem de todos, com trezentos pares de bois para o deserto, a sete dias dali, a fim de fazê-lo trabalhar a terra e semeá-la, mas deu ordem para que, secretamente, se tirassem os arreios necessários para os atrelar. Assim, quando Hircano chegou ao lugar determinado, aconselharam-no a voltar ao seu pai para obter os arreios. Como, no entanto, ele não queria perder tempo, serviu-se de um expediente que superava a sua idade. Mandou matar uns vinte daqueles bois, deu a carne para os servos comerem e usou o couro para fazer os arreios. Assim, arou e semeou a terra. O pai, ao regresso dele, abraçou-o e o louvou muito por aquela atitude. Essa demonstração de juízo e inteligência aumentou ainda mais o afeto que o pai sentia por ele, e José sempre o amou como se fosse o único filho. Entretanto crescia cada vez mais entre os irmãos de Hircano o despeito e a inveja. A notícia de que o rei Ptolomeu tivera mais um filho causou muita alegria e regozijo em toda a Síria. Os mais ilustres do país foram, por esse motivo, com grande aparato a Alexandria. José foi obrigado a ficar, por causa da idade avançada, mas pediu aos filhos do primeiro matrimônio que fizessem aquela viagem. Eles não quiseram ir porque, diziam, não conheciam os costumes da corte nem sabiam tratar com os reis, mas que ele poderia enviar Hircano, o irmão mais moço. José ficou muito satisfeito com essa proposta e perguntou a Hircano se estava disposto a ir. Ele respondeu que sim e que dez mil dracmas lhe seriam suficientes, porque não queria fazer muitas despesas. Quanto aos presentes que devia oferecer ao rei, julgava que não seria preciso enviá-los por ele, mas poderia mandar que lhe fosse entregue em Alexandria o dinheiro necessário para comprar algo raro e de grande valor e oferecê-lo, de sua parte, ao príncipe. O pai, que era bom administrador, ficou tão satisfeito com a moderação e sabedoria do filho que julgou que dez talentos bastariam para os presentes e escreveu a Ariom que os entregasse. Ariom era o encarregado de manusear todo o dinheiro que se mandava da Síria para Alexandria para pagar ao rei os tributos quando o prazo expirasse. Passavam-lhe todos os anos pelas mãos mais ou menos três mil talentos. Hircano partiu com as cartas e, chegando a Alexandria, entregou-as a Ariom. Este perguntou a Hircano quanto iria querer, julgando que ele pediria dez talentos ou um pouco mais. Mas ele exigiu mil talentos. O homem ficou tão encolerizado que o repreendeu, dizendo-lhe que, em vez de seguir o exemplo do pai, que economizara e ajuntara riquezas com trabalho e moderação, ele queria gastá-las em superfluidades e em coisas desnecessárias e que só lhe daria dez talentos, conforme a ordem recebida e ainda com a condição de serem empregados unicamente na compra de presentes para o rei. Hircano, irritado com essa resposta, mandou prender Ariom, mas como esse homem tinha grande prestígio perante a rainha Cleópatra, mandou a esposa procurá-la para informar o que se passava e suplicar que mandasse castigar tão grande insolência. A princesa falou com o rei, que logo mandou perguntar a Hircano por que, tendo sido enviado a ele por seu pai, não viera ainda cumprimentá-lo e por que mandara colocar Ariom na prisão. Ele respondeu que a lei de seu país proibia aos filhos de família provar carnes imoladas antes que entrassem no Templo para oferecer sacrifícios a Deus, e ele julgara que não devia comparecer diante de sua majestade até poder oferecer os presentes de que seu pai o havia encarregado, nara demonstrar o seu reconhecimento pelos favores que devia ao soberano. Quanto a Ariom, ele o havia castigado com justiça por não ter querido obedecer-lhe, pois os senhores, quer grandes, quer pequenos, têm igual poder sobre os seus servidores, e, se os particulares não fossem obedecidos pelos seus senhores, os próprios reis poderiam ser desprezados pelos seus súditos. O rei sorriu e admirou a resolução do moço. Assim, Ariom não fez mais oposição a ele e, para sair da prisão, entregou os mil talentos que ele pedia. Três dias depois, Hircano foi prestar a sua homenagem ao rei e à rainha, que o receberam muito favoravelmente, concedendo-lhe a grande honra de comer à sua mesa, pelo afeto que nutriam por seu pai. Ele comprou depois secretamente cem moços belos e apresentáveis e instruídos nas letras, que lhe custaram um talento cada um, e também cem moças, pelo mesmo preço. O rei, em seguida, deu um banquete aos mais ilustres de suas províncias e mandou convidá-lo, porém o colocaram no lugar mais afastado. Os outros convidados desprezavam-no por sua pouca idade e por isso puseram diante dele os ossos das iguarias que haviam comido, sem que Hircano se mostrasse ofendido. Então, um certo Trifom, que fazia alarde ao zombar de todos e divertia o rei com os seus chistes, disse, para fazer rir os convidados: "Majestade! Veja a quantidade de ossos que está diante de Hircano e poderá assim imaginar de que maneira o seu pai rói toda a Síria". Essas palavras provocaram gargalhadas, e o rei perguntou a Hircano como é que ele tinha diante de si tantos ossos. Respondeu ele: "Vossa majestade não se deve admirar, pois os cães comem os ossos com a carne, como vossa majestade pode ver que fizeram os que estão à mesa" — e indicou os convidados —, "pois nada mais resta diante deles. Mas os homens se contentam em comer a carne e deixar os ossos, como eu fiz, pois sou homem". O rei ficou tão satisfeito com essa resposta que proibiu aos convidados se ofenderem. No dia seguinte, Hircano foi à casa dos mais estimados pelo rei e perguntou aos servidores que presentes os seus amos haviam preparado para dar ao rei pelo nascimento do príncipe seu filho. Disseram-lhe que uns dariam doze talentos, outros, um pouco mais ou um pouco menos, cada qual segundo as suas posses. Ele fingiu-se aborrecido porque, dizia, não tinha meios para dar o mesmo e apenas poderia oferecer-lhe cinco. Os servidores contaram tudo aos seus senhores, que se alegraram, convencidos de que o rei ficaria insatisfeito ao receber de Hircano um presente tão mesquinho. Chegou o dia, e os que maior presente deram ao rei ofereceram-lhe vinte talentos. Hircano ofereceu ao príncipe os cem moços que havia comprado, cada qual apresentando-lhe um talento, e à rainha, as cem moças de que falamos, cada uma delas entregando também o mesmo presente à soberana. O rei, a rainha e toda a corte ficaram extraordinariamente admirados com tão grande e surpreendente magnificência. Mas Hircano não se limitou a isso. Deu também presentes de grande valor aos que desfrutavam maior prestígio perante o rei e aos seus oficiais, a fim de que lhe fossem favoráveis e o salvassem do perigo em que o colocaram algumas cartas de seus irmãos, que pediam para a qualquer custo a sua morte. O rei ficou tão comovido com a sua generosidade que lhe disse para pedir o que quisesse. Ele respondeu que desejava apenas que sua majestade escrevesse em seu favor ao seu pai e a seus irmãos. O príncipe o fez e escreveu também aos governadores de suas províncias, recomendando-o. E, depois de lhe dar provas de muito particular afeição, despediu-o com grandes presentes. Os irmãos de Hircano souberam, com grande desprazer, da grande honra que o rei lhe prestara, e partiram ao seu encontro com a deliberação de matá-lo, sem que o pai se atrevesse a impedi-los, embora o soubesse, mas estava encole-rizado por haver ele gastado nos presentes tão grande soma de dinheiro. Só não ousava manifestar-se por temer o rei. Assim, os irmãos atacaram Hircano no caminho. Ele, porém, defendeu-se tão valentemente que matou dois deles e vários dos que os acompanhavam. O resto fugiu para Jerusalém, e Hircano ficou muito surpreso, quando lá chegou, por ver que ninguém o vinha receber. Então retirou-se para além do Jordão e ocupou-se em receber os tributos que os bárbaros deviam pagar. Seleuco, cognominado Sóter, filho de Antíoco, o Grande, reinava então na Ásia. José, pai de Hircano, morreu nessa época, depois de recolher os tributos da Síria, da Fenícia e da Samaria durante vinte e dois anos. Era um homem de bem, de grande inteligência e tão hábil nos negócios que tirou os judeus da pobreza em que jaziam e os pôs em condições de viver comodamente. Onias, seu tio, morreu também pouco depois e deixou Simão, seu filho, como sucessor no sumo sacerdócio, o qual teve também um filho, de nome Onias, que o substituiu no cargo. Ario, rei da Lacedemônia,* escreveu-lhe a seguinte carta. ____________________ * Ou Esparta. CAPÍTULO 5 ARIO, REI DA LACEDEMÔNIA, ESCREVE A ONIAS, SUMO SACERDOTE, PARA FAZER ALIANÇA COM OS JUDEUS, SENDO OS LACEDEMÔNIOS DESCENDENTES DE ABRAÃO. HIRCANO CONSTRÓI UM SOBERBO PALÁCIO E SE SUICIDA, PARA NÃO CAIR NAS MÃOS DE ANTÍOCO. 461. "Ario, rei da Lacedemônia, a Onias, saudação. Vimos por certos títulos que os judeus e os lacedemônios têm a mesma origem, sendo ambos os povos descendentes de Abraão. Sendo nós então irmãos, nossos interesses devem ser comuns, e é justo que nos façais saber com inteira liberdade o que desejais de nós, e nos portaremos da mesma maneira a vosso respeito. Demoteles vos entregará esta carta, escrita numa folha quadrada e selada com um sinete, onde está impressa a figura de uma águia que tem uma serpente nas garras". 462. Depois da morte de José, a divisão entre os filhos suscitou graves perturbações, pois a maior parte favorecia os mais velhos, contra Hircano, que era o mais jovem, e particularmente Simão, sumo sacerdote, porque eram parentes. Assim, Hircano não quis voltar a Jerusalém, mas ficou além do Jordão. Fazia continuamente guerra aos árabes, matando muitos deles e fazendo prisioneiros a outro tanto. Construiu um castelo bem forte, cujos muros externos desde a base até o alto eram de mármore branco, cheio de figuras de animais maiores que o natural. Rodeou-o com um fosso profundo, cheio de água, e mandou cavar no rochedo de uma montanha vizinha grandes cavernas, cuja entrada era tão estreita que permitia somente passar uma pessoa por vez, para lhe servirem de refúgio, caso fosse acossado pelos seus irmãos. Havia nesse castelo grandes salas, quartos com todos os móveis necessários e fontes que jorravam água em abundância. Nada podia ser mais belo e mais vistoso. Esse majestoso edifício, situado além do Jordão e próximo de Essedom, na fronteira da Arábia e da Judéia, era rodeado de belos jardins. Hircano deu-lhe o nome de Tiri e de lá não se afastou durante os sete anos em que Seleuco reinou na Síria. Vindo a morrer esse príncipe, Antíoco, seu irmão, cognominado Epifânio, sucedeu-o. Ptolomeu, rei do Egito, cognominado Epifânio, morreu também e deixou dois filhos ainda muito jovens, dos quais o mais velho se chamava Fílonmetor, e o mais novo, Fiscom. O grande poder de Antíoco espantou Hircano, e ele teve tanto medo de cair em suas mãos e de ser castigado severamente pela guerra que fizera contra os árabes que se matou. Esse príncipe, então, apoderou-se de todos os seus bens. CAPÍTULO 6 ONIAS, COGNOMINADO MENEIAU, VENDO-SE EXCLUÍDO DO SUMO SACERDÓCIO, RETIRA-SE PARA JUNTO DO REI ANTÍOCO E RENUNCIA A RELIGIÃO DE SEUS ANTEPASSADOS. ANTÍOCO ENTRA NO EGITO, MAS OS ROMANOS O OBRIGAM A SE RETIRAR. 463. Onias, sumo sacerdote, morreu nesse mesmo ano, e Antíoco, rei da Síria, de que acabamos de falar, deu o sumo sacerdócio a Jesus, cognominado Jasão, irmão de Onias, pois este só deixara um filho de pouca idade, de que falaremos a seu tempo. Mas Antíoco, depois, tendo ficado insatisfeito com Jasão, tirou-lhe essa dignidade e deu-a a Onias, cognominado Meneiau, seu irmão mais novo, que era um dos três filhos que Simão havia deixado e que foram sucessivamente sumo sacerdotes, como dissemos. Jasão, não se podendo conformar por ter sido excluído do cargo, tornou-se inimigo de Meneiau, e os filhos de Tobias declararam-se a favor deste. A maior parte do povo, porém, apoiava Jasão, e assim eles foram obrigados a se refugiar junto de Antíoco. Disseram ao soberano que haviam decidido renunciar os costumes de seu país para abraçar a religião e a maneira de viver dos gregos e pediram-lhe permissão para construir uma praça de esportes em Jerusalém. Ele consentiu, e então eles ocultaram os sinais da circuncisão, para não serem distin-guidos dos gregos quando, correndo ou lutando, tivessem de se despir. Eles abandonaram assim todas as leis de seus antepassados e não se diferenciavam em nada dos estrangeiros. 464. A profunda paz de que Antíoco desfrutava e o seu desprezo pela pouca idade dos filhos de Ptolomeu, que os tornava incapazes de tomar conhecimento das coisas, fizeram-no conceber a idéia de conquistar o Egito. Então declarou-lhe guerra e entrou no país com um poderoso exército. Foi diretamente a Pelusa, enganou o rei Filopater, tomou Mênfis e marchou para Alexandria, a fim de se apoderar da cidade e do rei. Mas os romanos declararam que lhe fariam guerra se ele não se retirasse para o seu país. E assim, ele foi obrigado a abandonar essa empresa, como já dissemos em outro lugar. Como referi apenas de passagem a maneira pela qual ele se apoderou da Judéia e do Templo, quero descrevê-la particularmente aqui e retomar, para esse fim, ao assunto de antes. CAPÍTULO 7 O REI ANTÍOCO, RECEBIDO NA CIDADE DE JERUSALÉM, DESTRÔI-A COMPLETAMENTE, SAQUEIA O TEMPLO E CONSTRÓI UMA FORTALEZA. ABOLE O CULTO A DEUS. VÁRIOS JUDEUS ABANDONAM A RELIGIÃO. OS SAMARITANOS RENUNCIAM A SUA NACIONALIDADE E CONSAGRAM O TEMPLO DE GERIZIM AO JÚPITER GREGO. 465. O temor de se meter numa guerra contra os romanos obrigou o rei Antíoco a abandonar a conquista do Egito. Ele veio então com o seu exército a Jerusalém, cento e quarenta e três anos depois que Seleuco e seus sucessores começaram a reinar na Síria. Sem dificuldade, tornou-se senhor dessa praça, porque os de seu partido abriram-lhe as portas, e mandou matar vários do partido contrário, apoderou-se de grande quantidade de dinheiro e voltou a Antioquia. Dois anos depois, no vigésimo quinto dia do mês que os hebreus chamam quisleu, e os macedônios, apeleu, na centésima qüinquagésima terceira Olimpíada, ele voltou a Jerusalém e não poupou nem mesmo os que o acolheram na esperança de que ele não faria nenhum ato de hostilidade. Sua insaciável avareza fez com que ele não temesse violar-lhes também a fé, despojando o Templo das muitas riquezas de que, sabia ele, estava cheio. Tomou os vasos consagrados a Deus, os candelabros de ouro, a mesa sobre a qual se punham os pães da proposição e os turíbulos. Levou até mesmo as tapeçarias de escarlate e de linho fino e pilhou tesouros que estavam escondidos havia muito tempo. Afinal, nada deixou lá. E, para cúmulo da maldade, proibiu aos judeus oferecer a Deus os sacrifícios ordinários, como a sua lei os obrigava. Depois de saquear toda a cidade, mandou matar uma parte dos habitantes e levou dez mil escravos com suas mulheres e filhos. Mandou queimar os mais belos edifícios, destruiu as muralhas e construiu, na Cidade Baixa, uma fortaleza com grandes torres, as quais dominavam o Templo, e lá colocou uma guarnição de macedônios, entre os quais estavam vários judeus, tão maus e ímpios que não havia males que não infligissem aos habitantes. Mandou também construir um altar no Templo e ordenou que lá se sacrificassem porcos, o que é uma das coisa mais contrárias à nossa religião. Obrigou então os judeus a renunciar o culto ao verdadeiro Deus e a adorar os seus ídolos, e ordenou que se construíssem templos para eles em todas as cidades, determinando que não se passasse um dia sem que lá se imolassem porcos. Proibiu também aos judeus, sob graves penas, circuncidar os filhos, e nomeou fiscais para saber se eles estavam observando as suas determinações e as leis que ele impunha e obrigá-los a isso, caso recusassem obedecer. A maior parte do povo obedeceu, voluntariamente ou por medo, mas essas ameaças não puderam impedir aos que possuíam virtude e generosidade de observar as leis de seus pais. O cruel príncipe os fazia morrer por meio de vários tormentos. Depois de os mandar retalhar a golpes de chicote, a sua horrível desumanidade não se contentava em fazê-los crucificar, mas, enquanto ainda respiravam, fazia enforcar e estrangular perto deles as suas mulheres e os filhos que haviam sido circuncidados. Mandava queimar todos os livros das Sagradas Escrituras e não poupava ninguém na casa em que os encontrava. 466. Os samaritanos, vendo os judeus afligidos por tantos males, evitavam dizer que tinham a mesma origem, que eram da mesma raça e que o seu templo em Gerizim era consagrado ao Deus Todo-poderoso. Diziam, ao contrário, que eram descendentes dos persas e dos medos e que tinham sido enviados a Samaria para lá morar; o que era verdade. Eles enviaram deputados ao rei Antíoco e apresentaram-lhe a seguinte petição: "Petição que os sidônios, habitantes de Siquém, apresentam ao rei Antíoco, deus visível. Nossos antepassados, tendo sido amargurados por grandes e freqüentes pestes, haviam deliberado celebrar, por uma antiga superstição, uma festa à qual os judeus dão o nome de Sabat e construíram sobre o monte Gerizim um templo em honra a um Deus anônimo, onde imolavam vítimas. Agora que vossa majestade se julga obrigado a castigar os judeus como eles merecem, os que executam as vossas ordens querem nos tratar como a eles, porque pensam que temos a mesma origem. Mas é fácil verificar, pelos nossos arquivos, que somos sidônios. Assim, como não podemos duvidar, majestade, de vossa bondade e proteção, suplicamos que ordeneis a Apolônio, nosso governador, e a Nicanor, procurador-geral de vossa majestade, que não nos considerem mais culpados dos mesmos crimes que os judeus, cujos costumes e origem diferem inteiramente dos nossos. E, se julgarem bem e for do agrado de vossa majestade, seja o nosso templo, que até agora não teve o nome de Deus algum, chamado futuramente templo do Júpiter grego, a fim de que fiquemos em paz e, trabalhando sem temor, possamos pagar maiores tributos a vossa majestade". Antíoco, depois de ler a petição, escreveu a Nicanor, nestes termos: "O rei Antíoco a Nicanor. Os sidônios que moram em Siquém nos apresentaram a petição anexa a esta carta. Aqueles que a trouxeram provaram suficientemente, a nós e ao nosso conselho, que eles não têm parte nos crimes e faltas dos judeus, antes desejam viver segundo os costumes gregos. Por isso nós os declaramos inocentes dessa acusação, concedemo-lhes o pedido que nos fizeram — dar ao seu templo o nome de Júpiter grego — e ordenamos o mesmo a Apolônio, seu governador. Dado no ano quarenta e seis e no décimo primeiro dia do mês de hecatombeom". CAPÍTULO 8 MATATIAS (OU MATIAS) E SEUS FILHOS MATAM OS QUE O REI ANTÍOCO ENVIOU PARA OBRIGÁ-LOS AFAZER SACRIFÍCIOS ABOMINÁVEIS E RETIRAM-SE PARA O DESERTO. MUITOS OS SEGUEM, E UM GRANDE NÚMERO DELES É SUFOCADO NAS CAVERNAS, POR NÃO QUERER SE DEFENDER EM DIA DE SÁBADO. MATATIAS ABOLE ESSA SUPERSTIÇÃO E EXORTA OS SEUS FILHOS A LIBERTAR O PAÍS. 467. 1 Macabeus 2. Naquele mesmo tempo, numa aldeia da Judéia chamada Modim, havia um sacerdote da descendência de Joaribe, nascido em Jerusalém, que se chamava Matatias, filho de João, filho de Simão, filho de Asmoneu. Matatias tinha cinco filhos: João, cognominado Gadis; Simão, cognominado Martés; Judas, cognominado Macabeu; Eleazar, cognominado Auram; jônatas, cognominado Afo. Esse virtuoso e nobre judeu queixava-se freqüentemente a seus filhos do estado deplorável em que a nação se encontrava: da ruína de Jerusalém, da desolação do Templo e de tantos outros males que a afligiam. E acrescentava que lhes seria muito melhor morrer pela defesa das leis e da religião de seus pais que viver sem honra em meio a tantos sofrimentos. 468. Quando os enviados do rei chegaram àquela aldeia para obrigar os judeus a executar as suas ordens, dirigiram-se primeiramente a Matatias, por ser o principal, a fim de forçá-lo a oferecer os abomináveis sacrifícios, pois não duvidavam que os outros lhe seguiriam o exemplo. Disseram-lhe que o rei demonstraria a todos, por meio de recompensas, a gratidão de que lhes seria devedor. Ele respondeu que, mesmo que todas as outras nações obedecessem, pelo medo, a tão injuriosa determinação, nem ele nem seus filhos abandonariam jamais a religião de seus antepassados. Como um judeu se encaminhasse para sacrificar segundo a intenção do rei, Matatias e os filhos, inflamados de justo zelo, lançaram-se sobre ele de espada em punho e não somente o mataram como também a esse oficial, de nome Apeles, e aos soldados que ele tinha levado para obrigar o povo a cometer tão grande impiedade. Matatias derrubou depois o altar e exclamou: "Se há ainda alguém aqui que ame a nossa religião e o serviço de Deus, que me siga". Em seguida, deixando todos os seus bens, partiu com os filhos para o deserto. Todos os outros habitantes seguiram-no com as suas mulheres e filhos e refugiaram-se nas cavernas. Imediatamente os que comandavam as tropas do rei souberam o que se havia passado. Reuniram então uma parte da guarnição da fortaleza de Jerusalém e os perseguiram. Quando os alcançaram, procuraram convencê-los a se arrepender do que haviam feito e seguir um conselho melhor, a fim de não terem de induzi-los pela força. Não podendo convencê-los, os soldados os atacaram num sábado e os sufocaram nas cavernas, porque a reverência que os judeus dedicavam a esse dia era tão grande que o temor de violá-lo, mesmo em tal extremo, fez com que eles, para manter o descanso que a Lei ordenava, não somente deixassem de se defender como também nada fizessem para obstruir a entrada das cavernas. Assim, cerca de mil judeus foram sufocados, contando-se as suas mulheres e filhos. Os que se salvaram foram ter com Matatias e o escolheram para seu chefe. Ele disse-lhes que não deviam ter receio de combater num sábado, porque, do contrário, violariam a Lei, tornando-se homicidas de si mesmos, pois os seus inimigos não deixariam de escolher tais dias para atacá-los e, se ninguém se defendesse, todos facilmente morreriam. Assim resgatou-os daquele erro, e depois não tiveram mais dificuldades em tomar as armas nesse santo dia, quando a isso a necessidade os obrigava. O generoso chefe em pouco tempo reuniu uma tropa considerável, e aqueles aos quais o temor obrigara a se refugiar nas nações vizinhas vieram unir-se a ele. Então, derrubou os altares consagrados aos falsos deuses, não poupando, dos que lhe caíram nas mãos, ninguém que se tivesse deixado conduzir à idolatria. Mandou circuncidar todos os meninos que ainda não haviam passado por esse rito e rechaçou os que Antíoco enviara para impedi-lo. 469. Depois que esse grande homem governou o povo durante um ano, caiu doente e, vendo-se prestes a morrer, mandou chamar os filhos e disse-lhes: "Meus filhos, eis-me chegado à última hora, que é inevitável a todos os homens. Bem sabeis qual o desígnio a que me propus. Rogo-vos que não o abandoneis, mas mostreis a todos como vos é querida a memória de vosso pai, pelo zelo que ireis demonstrar na observância de nossas santas leis e em reerguer a honra de nossa pátria. Nunca tenhais relações com os que a atraiçoam, voluntariamente ou à força, para entregá-la aos nossos inimigos. Fazei ver que sois verdadeiramente meus filhos, calcando aos pés tudo o que puder impedir a defesa de nossa religião, e sede sempre solícitos em dar a vida para mantê-la. Estejais certos de que, agindo assim, Deus vos contemplará com olhos favoráveis, aceitará a vossa virtude, vos restabelecerá naquela ditosa liberdade e vos dará os meios de observar com alegria a maneira de viver de nossos antepassados. Nossos corpos estão sujeitos à morte, porém a memória de nossas boas obras nos torna de algum modo imortais. Concebei, então, meus filhos, um tão grande amor pela verdadeira e sólida glória e não tenhais receio em expor a vossa vida para conquistá-la. Segui este conselho que vos dou: vivei em grande união, de modo que todos se alegrem ao ver o esforço com que empregais em uma causa comum e tão justa os talentos que Deus vos concedeu. Assim, como Simão é muito sensato, sou de opinião que sigais sempre o seu conselho, como se fosse o vosso pai. O extremo valor de Macabeu vos obriga a dar-lhe o comando das tropas, pois, sob suas ordens, vingareis sem dúvida os ultrajes feitos à nossa nação pelos seus inimigos, e não haverá homem algum de virtude e de piedade que não se una a vós numa tão santa empresa". CAPÍTULO 9 MORTE DE MATATIAS.JUDAS MACABEU, UM DE SEUS FILHOS, TOMA A DIREÇÃO DOS EMPREENDIMENTOS, LIBERTA O PAÍS E O PURIFICA DAS ABOMINAÇÕES QUE NELE SE HAVIAM COMETIDO. 470. 1 Macabeus 3. Matatias, depois de falar desse modo, rogou a Deus que ajudasse os seus filhos naquele tão glorioso e justo empreendimento que era restaurar o seu povo à antiga maneira de viver. Ele morreu logo depois, e foi enterrado em Modim. Todo o povo lamentou-o com sensível pena, no ano cento e quarenta e seis. Judas, seu filho, cognominado Macabeu, tomou em seu lugar a direção dos interesses do povo. Seus irmãos secundaram-no generosamente, e ele expulsou os inimigos, matou todos os falsos judeus, que tinham violado as leis de seus pais, e purificou a província de todas as abominações que nela se haviam cometido. CAPÍTULO 10 JUDAS MACABEU DERROTA E MATA APOLÔNIO, GOVERNADOR DE SAMARIA, E SEROM, GOVERNADOR DA BAIXA SÍRIA. 471. Quando Apolônio, governador de Samaria pelo rei Antíoco, soube dos progressos e dos feitos de Judas Macabeu, marchou contra ele com o seu exército. Esse valente chefe do povo de Deus foi também contra ele, derrotou-o e matou um grande número de soldados. Saqueou em seguida todo o seu acampamento, tirou-lhe a espada e a levou em triunfo. E assim, saiu-se completamente vencedor. 472. Reuniu depois um exército considerável, e Serom, governador da Baixa Síria, que recebera do rei Antíoco ordem para reprimir a ousadia daqueles revoltosos, veio acampar com todas as suas tropas e com judeus ímpios e traidores da pátria que se haviam refugiado entre eles numa aldeia da Judéia, de nome Bete-Horom. Judas marchou contra ele para dar-lhe combate. Mas vendo que os seus soldados não estavam dispostos a isso, tanto por causa do número dos inimigos quanto em razão de não estarem alimentados, disse-lhes que a vitória não dependia do número de homens, mas da confiança que eles tivessem em Deus, pois podiam ver, pelos exemplos de seus antepassados, quantas vitórias gloriosas foram obtidas contra inimigos de número incontável. Além disso, eles estavam combatendo pela defesa de suas leis e pela salvação de suas esposas e filhos, e assim, nada seria capaz de lhes resistir, pois tinham a justiça do seu lado, e a força que dela provém é invencível. Essas palavras os animaram de tal modo que, desprezando o temível exército dos sírios, eles os atacaram, desbaratando-os. Mataram o seu general, puseram os outros em fuga e os perseguiram até um lugar chamado O Campo. Oitocentos morreram na luta, e o resto salvou-se fugindo para a região à beira-mar. CAPÍTULO 11 JUDAS MACABEU DERROTA UM GRANDE EXÉRCITO ENVIADO POR ANTÍOCO CONTRA OS JUDEUS. LÍSIAS RETORNA NO ANO SEGUINTE COM UM EXÉRCITO AINDA MAIS FORTE. JUDAS MATA CINCO MIL HOMENS E OBRIGA LÍSIAS A SE RETIRAR. PURIFICA E RESTAURA O TEMPLO. OUTROS GRANDES FEITOS DESSE PRÍNCIPE DOS JUDEUS. O rei Antíoco ficou tão irritado com a derrota de seus dois generais que não se contentou em reunir todas as suas tropas, mas tomou ainda, sob pagamento, soldados das ilhas e resolveu marchar contra os judeus no começo da primavera. Porém o seu tesouro ficou esgotado depois do pagamento das tropas, tanto porque as revoltas de seus súditos o impediam de receber os tributos quanto pelo fato de ele ser naturalmente muito amigo do luxo, fazendo enormes despesas. Assim, julgou conveniente ir antes à Pérsia receber o que lhe era devido. Ao partir, deixou a Lísias, em quem depositava toda a sua confiança, a direção dos negócios, o governo das províncias que se estendem desde o Eufrates até o Egito e a Ásia Menor, e uma parte de suas tropas e de seus elefantes. Recomendou-lhe que tivesse grande cuidado de seu filho, o príncipe Antíoco, durante a sua ausência, e que destruísse toda a Judéia, levando escravos todos os seus habitantes, aniquilasse Jerusalém e exterminasse a nação dos judeus. Depois de dar essas ordens, partiu para a viagem à Pérsia, no ano cento e quarenta e sete, passando o Eufrates e marchando para as províncias superiores. 473. Lísias escolheu, dentre os mais valentes generais e os de maior confiança do rei, Ptolomeu, filho de Dorímenes, Górgias e Nicanor e os enviou à Judéia com quarenta mil soldados de infantaria e sete mil de cavalaria. Depois que chegaram a Emaús e acamparam na planície vizinha, foram aumentados com o reforço dos sírios e das nações limítrofes e com grande número de judeus. Vieram também alguns negociantes com dinheiro para comprar os escravos e com cadeias para ligá-los. Judas, vendo aquela grande multidão de inimigos, exortou os seus soldados a não temer, mas a colocar toda a sua confiança em Deus e a se revestir de um saco, como faziam os seus pais nos grandes perigos, a fim de pedir a Ele que lhes concedesse a vitória, pois era o único meio de atrair a sua misericórdia e obter a força de que precisavam para vencer os inimigos. Ordenou em seguida aos chefes de campo e oficiais que assumissem o comando das tropas, como se fazia antigamente. Despediu os recém-casados e os que haviam adquirido alguma propriedade recentemente, de modo que a má disposição deles por haverem deixado a mulher ou a propriedade não viesse diminuir a coragem dos outros. Depois fez uma exortação aos soldados com estas palavras: "Jamais encontraremos ocasião em que nos seja mais necessário mostrar coragem e desprezar o perigo do que esta, pois, se combatermos generosamente, a liberdade será a recompensa de nosso valor, e, por mais desejável que ela seja por si mesma, tanto mais a devemos desejar, porque não poderemos sem ela conservar a nossa santa religião. Considerai então que o resultado desta jornada ou nos cumulará de felicidade, dando-nos os meios de observar em paz as leis e os costumes de nossos antepassados, ou nos lançará a toda espécie de misérias, cobrindo-nos de infâmia, se, por nossa pusilanimidade, formos causa de que o resto de nossa nação seja completamente exterminado. Lembrai-vos de que nem os covardes nem os corajosos podem evitar a morte, mas, expondo-se a vida pela religião e pelo país, é possível conquistar uma glória imortal. E não duvideis de que, indo ao combate com a firme resolução de morrer ou de vencer, o dia de amanhã vos fará triunfar sobre os vossos inimigos". 474. As palavras de judas animaram-nos, e, ante o aviso de que Górgias, guiado por alguns judeus trânsfugas, vinha atacá-los durante a noite com mil cavaleiros e cinco mil soldados de infantaria, ele decidiu antecipar-se e ir-lhes ao encontro, atacando naquela mesma noite o acampamento dos inimigos, que então estaria mais fraco, pela diminuição de seus homens. Assim, depois de dar a refeição aos seus homens e acender várias fogueiras, marchou protegido pelas trevas para Emaús. Górgias não deixou de vir e, como não encontrou ninguém no acampamento dos judeus, julgou que o medo os obrigara a se esconder nos montes. Marchou então para ir procurá-los. Judas, ao despontar do dia, chegou ao acampamento dos inimigos, com três mil homens somente, todos muito mal armados, tanto era triste a sua situação. Quando ele viu que aqueles aos quais queria atacar estavam bem armados e tinham o seu campo muito bem defendido, disse aos seus homens que nada deveriam temer, pois Deus sentiria prazer vendo que eles não temiam atacar, naquele estado, um exército tão numeroso e de inimigos tão bem armados, e certamente lhes daria a vitória. Ordenou em seguida que se tocasse o sinal de avançar. A surpresa dos inimigos foi tão grande que muitos foram mortos de imediato, e os outros, perseguidos até Gadara e aos campos da Iduméia, de Azoto e de jamnia, de modo que eles perderam três mil homens. Judas proibiu aos seus de se entregarem ao saque, porque tinham ainda de combater Górgias, mas lhes prometeu que, após tê-lo vencido, iriam se enriquecer com tantos despojos. Judas ainda falava, quando viram Górgias, que regressava com as suas tropas, aparecer num elevado. Quando ele viu a mortandade, a derrota do exército do rei e o campo incendiado, não teve dificuldade em imaginar o que havia acontecido. Vendo que judas se preparava para atacá-lo, ficou tomado de tanto medo que fugiu. Assim, Judas venceu-o sem combate e permitiu então aos seus soldados que se entregassem ao saque. Eles encontraram grande quantidade de ouro, de prata, de escarlate e de púrpura e voltaram com grande alegria, cantando hinos em louvor a Deus, o autor da vitória que contribuiu para a reconquista da liberdade. 475. No ano seguinte, Lísias, para reparara vergonha daquela derrota, reuniu um novo exército, composto de tropas escolhidas, em número de sessenta mil soldados de infantaria e cinco mil cavaleiros, entrou na Judéia e veio pelos montes acampar próximo de Bete-Zur. Judas marchou contra ele com dez mil homens. Vendo a potência dos inimigos, rogou a Deus que lhe fosse favorável e confiou no seu auxílio. Então atacou pela vanguarda e a desfez, matou cinco mil homens e lançou tal medo nos outros que Lísias, vendo que os judeus estavam resolvidos ou a perecer ou a reconquistar a liberdade e temendo deles mais o desespero que as forças, retirou-se para Antioquia com o resto de seu exército. Ali, tomou soldados estrangeiros sob pagamento e preparou-se para voltar à Judéia com um exército ainda mais poderoso que o primeiro. 476. Judas, após obter tão grandes vitórias sobre os generais do exército de Antíoco, persuadiu os judeus a ir a Jerusalém dar graças a Deus, como lhe eram devidas, purificar o Templo e oferecer sacrifícios. Quando lá chegaram, no entanto, encontraram as portas queimadas e os muros cheios de mato, o qual havia crescido durante aquele período de inteiro abandono. Tão grande desolação arrancou suspiros do coração e lágrimas dos olhos de Judas. E, depois de ordenar que uma parte da tropa sitiasse a fortaleza, pôs mãos à obra para purificar o Templo. Fez-se tudo com o máximo cuidado. Judas colocou nele um candelabro, uma mesa e um altar de ouro completamente novos. Mandou colocar também portas novas e cobriu-as com cortinas. Depois destruiu o altar dos holocaustos, porque fora profanado, e mandou fazer um novo, com pedras que não houvessem sido trabalhadas a martelo. No dia vinte e cinco do mês de quisleu, que os macedônios chamam apeleu, acenderam-se as luzes do candelabro, incensou-se o altar, colocaram-se os pães sobre a mesa e ofereceram- se holocaustos sobre o novo altar. Isso se deu no mesmo dia em que, três anos antes, o Templo fora indigna-mente profanado por Antíoco e abandonado, no dia vinte e cinco do mês de apeleu, no ano cento e quarenta e cinco, e na Olimpíada cento e cinqüenta e três. A renovação ocorreu no mesmo dia do ano cento e quarenta e oito e da Olimpíada cento e cinqüenta e quatro, como o profeta Daniel havia predito, quatrocentos e oito anos antes, dizendo clara e distintamente que o Templo seria profanado pelos macedônios. Judas celebrou durante oito dias com todo o povo, por meio de solenes sacrifícios, a festa da restauração do Templo, e não houve regozijo honesto a que não se entregassem durante esse período. Eram festins e banquetes públicos. O ar ressoava os hinos e cânticos que se elevavam em louvor a Deus, e a alegria de se ver, depois de tantos anos, quando menos se esperava, a restauração dos antigos costumes de nossos pais e a prática de nossa religião foi tão grande que foi determinado realizar-se todos os anos aquela festa, durante oito dias. Chamaram-na festa das luzes porque, segundo a minha opinião, essa felicidade foi como uma luz agradável que dissipou as trevas de nossos longos sofrimentos, aparecendo numa ocasião em que não poderíamos sequer imaginá-la. Judas, em seguida, mandou restaurar as muralhas da cidade, fortificou as grandes torres e colocou soldados para defendê-las contra os inimigos. Fortificou também a cidade de Bete-Zur, para dela se servir como fortaleza contra os ataques. 477. Os povos vizinhos, não podendo tolerar a ressurreição do poder de nossa nação, armaram ciladas aos judeus e mataram vários deles. Judas, que estava continuamente no campo, para impedir tais incursões, atacou ao mesmo tempo Acrabatena,* matou um grande número de idumeus, descendentes de Esaú, e apoderou-se de grandes despojos. Tomou também o forte de onde os filhos de Baam, seu príncipe, incomodavam os judeus, matou os que o defendiam e incendiou-o. Marchou depois contra os amonitas, que eram em grande número, comandados por Timóteo, venceu-os, tomou-lhes a cidade de Jasor, saqueou-a e levou como escravos todos os seus habitantes. As nações vizinhas, porém, logo que souberam que ele havia voltado para Jerusalém, reuniram todas as suas forças e atacaram os judeus que moravam na fronteira de Galaade. Estes refugiaram-se no castelo de Atemam e mandaram contar a Judas que corriam o perigo de cair nas mãos de Timóteo. Judas recebeu ao mesmo tempo cartas da Galiléia, pelas quais lhe davam aviso de que os de Ptolemaida, de Tiro e de Sidom e outros povos vizinhos se reuniam para atacá-lo. __________________ * Ou Acrabim. CAPÍTULO 12 FEITOS DE SIMÃO, IRMÃO DE JUDAS MACABEU, NA GALILÉIA. VITÓRIA OBTIDA POR JUDAS EJÔNATAS, SEU IRMÃO, SOBRE OS AMONITAS. OUTROS JEITOS DE JUDAS. 478. Judas Macabeu, a fim de atender às necessidades dos dois povos que se encontravam ao mesmo tempo ameaçados, entregou três mil homens escolhidos a Simão, seu irmão, para que fosse em socorro dos judeus da Galiléia, enquanto ele e Jônatas, seu outro irmão, e oito mil homens marcharam para a Galatida. O resto das tropas ficou para a guarda da Judéia, sob o comando de José, filho de Zacarias, e de Azarias, com ordem de velarem cuidadosamente pela conservação dessa província e de não se meterem em combate algum até a sua volta. Simão, logo que chegou à Galiléia, combateu os inimigos e colocou-os em fuga. Perseguiu-os até as portas de Ptolemaida, livrou de suas mãos os judeus que haviam sido feito prisioneiros e voltou para a Judéia com grandes despojos. Judas, por seu lado, acompanhado por Jônatas, seu irmão, depois de passar o Jordão, marchou durante três dias, sendo recebido como amigo pelos nabateenses. Estes disseram-lhe que os judeus da Galatida estavam sitiados em sua cidade e oprimidos pelos inimigos, e o exortaram a se apressar em socorrê-los. Esse aviso o fez marchar com rapidez através do deserto. Atacou e tomou, a caminho, a cidade de Bozra, incendiou-a e mandou matar todos os habitantes que estavam em condições de pegar em armas. Então continuou a marchar durante toda a noite até chegar perto do castelo onde os judeus estavam sitiados por Timóteo. Ele chegou ao despontar do dia e viu que os inimigos já aprontavam as escadas para escalá-lo e mandavam as máquinas avançar. Assim, ordenou aos trom-beteiros que dessem o toque para avançar. Ele exortou os soldados a se mostrarem corajosos no combate, auxiliando os irmãos, e, depois de dividir as tropas em três grupos, atacou os inimigos por trás. Não teve dificuldade em destroçá-los, porque, quando os inimigos souberam que era o valente Macabeu quem os atacava, cuja coragem já era deles conhecida, bem como a sua rara perícia e felicidade nos combates, apressaram-se em abandonar o campo, fugindo. Ele os perseguiu tão ferozmente que oito mil foram mortos. Em seguida, atacou uma cidade dos bárbaros, de nome Mala, tomou-a, mandou matar todos os seus habitantes, exceto as mulheres, e reduziu-a a cinzas. Destruiu também Bezer, Cáspora e ainda outras cidades da Galátida. Pouco tempo depois, Timóteo reuniu grandes forças e tomou como tropas auxiliares, dentre outras, um grande número de árabes. Acampou além da torrente, em frente à cidade de Rafa, e exortou os seus soldados a fazer todos os esforços possíveis para impedir que os judeus passassem, porque nisso residia toda a sua esperança de vitória. Logo que Judas soube que Timóteo se preparava para o combate, avançou com todas as suas tropas, passou a torrente e atacou os inimigos. A maior parte dos que lhe resistiram foram mortos, e os outros abandonaram as armas. Uma parte salvou-se, e o resto refugiou-se no templo de Carnaim, onde esperavam salvação. Judas, porém, tomou a cidade, queimou o templo e matou todos eles a ferro e fogo. 479. Depois de tantos e tão felizes resultados, esse general reuniu todos os judeus que estavam na província de Galaade, com as suas mulheres, filhos e bens, a fim de reconduzi-los à Judéia. E, como não podia, sem alongar demasiado o caminho, evitar passar pela cidade de Efrom, mandou pedir aos habitantes que lhe permitissem a passagem. Mas eles lhe fecharam as portas, entupindo-as com pedras, judas, irritado com a recusa, exortou os seus a exigir satisfação. Então sitiou a cidade e a tomou em vinte e quatro horas. Mandou matar todos os seus habitantes, exceto as mulheres, e a incendiou. O número dos que pereceram foi tão grande que não era possível atravessar as ruas, tão juncadas estavam de cadáveres. Depois de passar o Jordão e o Grande Campo, onde estava a cidade de Bete-Seã, que os gregos chamam Citópolis, chegou com o exército a Jerusalém, cantando hinos e loas para glorificar a Deus. Muitas outras demonstrações de regozijo davam eles então pelas grandes vitórias conquistadas. Ele ofereceu em seguida sacrifícios a Deus, em ação de graças, não somente por Ele os haver feito triunfar de seus inimigos, mas também por conservar, de maneira miraculosa, a vida de todos os seus, pois, apesar de tantos e tão sangrentos combates, nenhum deles havia perecido. 480. José, filho de Zacarias, o qual Judas, como dissemos, tinha deixado para guardar a Judéia ao partir com Jônatas, seu irmão, para Galaade, contra os amonitas, e depois de enviar Simão, seu outro irmão, à Galileia, contra os habitantes de Ptolemaida, desejou também conquistar alguma honra. Marchou com todas as suas tropas contra a cidade de jamnia, mas Górgias, que lá estava com o seu exército, veio contra ele, derrotou-o e matou dois mil homens. O resto fugiu, retirando-se para a Judéia. Assim, ele foi com justiça castigado por não haver obedecido à ordem que Judas lhe dera, ou seja, não travar combate com os inimigos até o seu regresso. Isso deu motivo a que se admirasse ainda mais a previdência e a sábia orientação desse excelente chefe dos israelitas. Judas e seus irmãos não deixavam de fazer guerra aos idumeus e os oprimiam de todos os lados: tomaram-lhes a cidade de Hebrom, destruíram todas as suas fortificações, incendiaram as suas torres, devastaram a região vizinha e tornaram-se senhores das cidades de Maressa e Azoto, a qual saquearam e depois voltaram a Jerusalém, com grandes despojos. CAPÍTULO 13 O REI ANTÍOCO EPIFÂNIO MORRE DE TRISTEZA POR TER SIDO OBRIGADO A LEVANTAR VERGONHOSAMENTE O CERCO DA CIDADE DE ELIMAIDA, NA PÉRSIA, ONDE PRETENDIA SAQUEAR UM TEMPLO CONSAGRADO A DIANA, E POR CAUSA DA DERROTA DE SEUS GENERAIS PELOS JUDEUS. 481. 1 Macabeus 6. Por esse mesmo tempo, o rei Antíoco Epifânio, que, como vimos, havia partido para as províncias superiores, soube que havia, numa cidade muito rica da Pérsia, de nome Elimaida, um templo consagrado a Diana, cheio de dádivas, dentre as quais escudos e couraças presenteados por Alexandre, o Grande, filho de Filipe da Macedônia. Resolveu apoderar-se dela e então cercou-a. Mas foi enganado em suas esperanças, porque os habitantes da cidade demonstraram tanta coragem que não somente o obrigaram a levantar o cerco como também o perseguiram. Pode-se até mesmo dizer que foi fugindo, e não se retirando, que ele chegou à Babilônia, com muitas e preciosas perdas. Curtia ele ainda a mágoa de tão triste acontecimento, quando lhe trouxeram a notícia de que os judeus haviam derrotado os seus generais e se tornavam cada vez mais fortes. Esse acréscimo de aflição deixou-o de tal modo abatido que ele adoeceu, a ponto de perceber que o seu fim se aproximava. Mandou então chamar os servidores de mais confiança e contou-lhes como se sentia, bem como a causa de sua enfermidade, e que merecia aquele castigo, por haver perseguido os judeus, saqueado o seu Templo e desprezado o Deus que eles adoravam. E, acabando de dizer essas palavras, morreu. A esse respeito, admiro-me de que Políbio Megalopolitano, homem de reconhecida probidade, tenha atribuído a morte desse soberano ao seu desejo de saquear o templo de Diana. É muito mais verossímil que a morte lhe tenha sido o castigo do sacrilégio que ele cometera, saqueando os tesouros que estavam no Templo em Jerusalém. Não quero, no entanto, altercar nem discutir com aqueles que estão mais pela opinião de Políbio que pela minha. CAPÍTULO 14 ANTÍOCO EUPÁTOR SUCEDE AO REI ANTÍOCO EPIFÂNIO, SEU PAI. JUDAS MACABEU CERCA A FORTALEZA DE JERUSALÉM. ANTÍOCO VEM CONTRA ELE COM UM GRANDE EXÉRCITO E CERCA BETE-ZUR. AMBOS LEVANTAM O CERCO E TRAVAM UMA BATALHA. MARAVILHOSO FEITO DE CORAGEM E MORTE DE ELEAZAR, UM DOS IRMÃOS DE JUDAS. ANTÍOCO TOMA BETE-ZUR E CERCA O TEMPLO EM JERUSALÉM. QUANDO OS JUDEUS ESTAVAM QUASE REDUZIDOS AOS EXTREMOS, ELE LEVANTA O CERCO ANTE A NOTÍCIA DE QUE FILIPE SE DECLARARA REI DA PÉRSIA. 482. O rei Antíoco Epifânio, pouco antes de sua morte, que se deu no ano cento e quarenta e nove, havia constituído Filipe, que era um de seus mais íntimos confidentes, governador do reino. Confiou a ele a coroa, o manto real e o seu anel, para que os entregasse ao filho, recomendando-lhe grande cuidado na sua educação e formação, até que ele estivesse na idade de governar por si mesmo. Logo que Lísias, preceptor do jovem Antíoco, soube da morte do rei, comunicou-a ao povo e apresentou-lhe o novo rei, ao qual deu o nome de Eupátor. 483. Nesse mesmo tempo, os macedônios que estavam como guarnição na fortaleza de Jerusalém, ajudados pelos judeus que se haviam juntado a eles, faziam muito mal aos outros judeus. E, como essa fortaleza dominava o Templo, faziam arremetidas e matavam os que vinham oferecer sacrifícios. Judas Macabeu, não podendo mais tolerar semelhante abuso, resolveu sitiar a fortaleza. Reuniu o maior número de soldados possível e a atacou fortemente, no ano cento e cinqüenta desde que aquelas províncias haviam sido submetidas a Seleuco. Empregou duas máquinas, elevou as plataformas e tudo fez para realizar o seu intento. Alguns daqueles judeus trânsfugas saíram à noite e, na companhia de outros homens tão ímpios quanto eles, foram procurar o jovem rei Antíoco. Disseram-lhe que era próprio do cargo dele salvá-los, juntamente com outros de sua nação, no extremo perigo em que se encontravam, pois eram perseguidos unicamente por haverem renunciado aos costumes judaicos, em obediência ao rei seu pai. Além disso, a fortaleza de Jerusalém e a guarnição real que lá ele havia colocado em breve cairiam sob o poder de judas, caso ele não mandasse imediatamente algum socorro. O jovem soberano, cheio de cólera ante essas palavras, mandou chamar imediatamente o comandante das tropas e ordenou-lhe não somente recrutar homens em seu território, mas tomar soldados estrangeiros sob pagamento. Assim ele reuniu um exército de cem mil soldados de infantaria, vinte mil de cavalaria e trinta e dois elefantes, e deu o comando a Lísias. O rei partiu de Antioquia com essas tropas, veio à Iduméia e sitiou Bete-Zur. Nisso levou muito tempo, porque os habitantes se defendiam corajosamente e queimavam em grandes arremetidas as máquinas com que ele batia nas muralhas. Judas, sabendo da marcha do rei, levantou o cerco e veio com todas as suas tropas contra ele, acampando a setenta estádios do exército inimigo, num lugar muito estreito, chamado Bete-Zacarias. Logo que Antíoco soube disso, levantou também o cerco de Bete-Zur, para marchar contra ele. Quando estava próximo, mandou colocar os seus homens em ordem de batalha, ao despontar do dia. Mas como o lugar era demasiado estreito para fazer marchar à frente os elefantes, ele foi obrigado a fazê-los caminhar um atrás do outro. Quinhentos cavaleiros e mil soldados de infantaria acompanhavam cada animal, e todos levavam uma torre cheia de arqueiros. Quanto ao resto das tropas, ele ordenou aos comandantes que se encaminhassem pelos dois flancos do monte. O exército do soberano, desse modo, lançou-se ao ataque, soltando grandes gritos, que ressoavam pelas quebradas, enquanto os seus escudos de ouro e de cobre rebrilhavam com tanto resplendor que ofuscavam a vista. Nada, porém, foi capaz de abater o ânimo de Judas Macabeu. Ele os enfrentou com tanta coragem que seiscentos dos primeiros que o atacaram caíram mortos na mesma hora. Eleazar, seu irmão, cognominado Auran, vendo que dentre todos os elefantes havia um mais soberbamente ajaezado que os outros, julgou que o rei estaria sobre ele. Assim, sem medir a extensão do perigo a que se expunha, abriu caminho através dos que rodeavam esse elefante, matando vários deles e afugentando os demais, chegou até junto do prodigioso animal, colocou-se por baixo de seu ventre e matou-o a golpes de espada. Porém ficou esmagado sob o peso do elefante e morreu. Terminou assim gloriosamente a vida, depois de vendê-la bem caro aos inimigos. Judas, vendo que eles eram muito superiores em número, retirou-se para Jerusalém, a fim de continuar o cerco da fortaleza. Antioco, depois de enviar parte de suas tropas contra Bete-Zur, marchou para Jerusalém com o resto do exército. Quando os habitantes de Bete-Zur, que tinham falta de víveres, se viram tão fortemente atacados, entregaram-se, depois de os inimigos prometerem com juramento não lhes fazer mal algum. Mas Antioco faltou-lhes à palavra, pois lhes conservou somente a vida, expulsando-os nus da cidade, onde estabeleceu uma guarnição. Sitiou em seguida o Templo, em Jerusalém, e o cerco durou muito tempo, porque os judeus se defendiam valentemente, derrubando as máquinas com outras máquinas. Os víveres, porém, começavam a faltar, porque era o sétimo ano, no qual a nossa lei proíbe semear e cultivar a terra. Assim, muitos foram obrigados a se retirar, e só uns poucos ficaram para continuar a resistir ao cerco. Estavam as coisas nesse pé, quando o rei e Lísias souberam que Filipe se declarara rei e vinha da Pérsia avançando contra eles. Essa notícia os obrigou a levantar o cerco, sem que se falasse de Filipe aos comandantes ou aos soldados. Lísias teve do rei somente ordem para dizer-lhes que o Templo era tão forte que seria necessário muito tempo para conquistá-lo, que o exército começava a sentir falta de víveres e que interesses do Estado chamavam o rei a outros lugares. E, como os judeus, ciosos da observância de suas leis, preferiam a morte e estavam sempre prontos a recomeçar a guerra, era preferível fazer amizade e aliança com eles e voltar à Pérsia. Lísias falou-lhes desse modo, e as suas palavras foram aprovadas e aceitas. CAPÍTULO 15 O REIANTÍOCO EUPÁTOR FAZ A PAZ COM OS JUDEUS. CONTRA A SUA PALAVRA, MANDA DESTRUIR OS MUROS QUE RODEIAM O TEMPLO. MANDA CORTAR A CABEÇA DE ONIAS, COGNOMINADO MENELAU, SUMO SACERDOTE, E DÁ O CARGO AALCIM. ONIAS, SOBRINHO DE MENELAU, RETIRA-SE PARA O EGITO, ONDE O REI E A RAINHA CLEÓPATRA LHE PERMITEM CONSTRUIR, EM HELIÓPOLIS, UM TEMPLO SEMELHANTE AO DE JERUSALÉM. 484. Depois dessa resolução, o rei Antíoco mandou dizer a Judas Macabeu e a todos os que com ele estavam sitiados no Templo, por meio de um arauto, que queria oferecer a paz e permitir-lhes viver segundo as suas leis. Eles receberam a proposta com alegria. Depois que o príncipe deu a sua palavra e a confirmou com juramento, saíram do Templo, e Antíoco lá entrou. Mas, tendo observado bem o lugar, viu que era muito forte e, violando o próprio juramento, fez destruir até os alicerces o muro que o rodeava. Depois voltou para Antioquia, levando o sumo sacerdote Onias, cognominado Menelau, e, em Beroé, na Síria, mandou que lhe cortassem a cabeça. Foi Lísias quem deu conselho para tal, dizendo que se o rei queria que os judeus vivessem em paz e não lhe perturbassem o reino com novas rebeliões, tinha de matar Menelau, porque ele levara o rei seu pai a obrigar o povo a abandonar a sua religião, causando assim os males que lhes haviam sucedido. Com efeito, o sumo sacerdote era um homem tão mau e ímpio que, para chegar àquele cargo, o qual exerceu por dez anos, não tivera medo de levar a sua nação a violar as santas leis. Alcim, também chamado Jacim, sucedeu-o. 485. Depois que Antíoco pôs em ordem os interesses da Judéia, marchou contra Filipe e encontrou-o já de posse do reino. Mas logo soube castigar o usurpador, pois venceu-o numa grande batalha, aprisionou-o e o mandou matar. 486. O filho do sumo sacerdote Onias, que era apenas uma criança quando o pai morreu, vendo que o rei, a conselho de Lísias, mandara matar Menelau, seu tio, e dado o cargo a Alcim, que não era da casta sacerdotal, transferindo assim aquela honra para outra família, refugiou-se junto de Ptolomeu, rei do Egito. Foi muito bem recebido por este e pela rainha Cleópatra, sua esposa, que lhe permitiram construir na cidade de Heliópolis um templo semelhante ao de Jerusalém, de que falaremos a seu tempo. CAPÍTULO 16 DEMETRIO, FILHO DE SELEUCO, FOGE DE ROMA, VEM À SÍRIA, FAZ-SE COROAR REI E MANDA MATAR O REI ANTIOCO E LÍSIAS. ENVIA BACIDA COM UM EXÉRCITO À JUDÉIA, PARA EXTERMINAR JUDAS MACABEU E TODO O SEU PAÍS. CONSTITUI ALCIM COMO SUMO SACERDOTE, QUE PRATICA ATOS DE GRANDE CRUELDADE. JUDAS, PORÉM, O OBRIGA A IR PEDIR AUXÍLIO A DEMETRIO. 487. 1 Macabeus 7. Nesse mesmo tempo, Demetrio, filho de Seleuco, fugiu de Roma, apoderou-se da cidade de Trípoli, na Síria, engajou um grande número de soldados e se fez coroar rei. Os povos vieram de todos os lados para se juntar a ele e aceitaram o seu domínio com tanta alegria que lhe entregaram o rei Antioco e Lísias, aos quais ele mandou matar imediatamente. Antioco havia reinado somente dois anos. Vários judeus, que haviam fugido por causa de sua impiedade, voltaram para junto desse novo rei, e Alcim, sumo sacerdote, uniu-se a eles para acusar os seus compatriotas, particularmente Judas Macabeu e seus irmãos, de haverem matado os de seu partido quando estes lhes caíram nas mãos, obrigando assim os outros a abandonar o país para viver em segurança noutros lugares. Isso os impelia a suplicar-lhe que mandasse alguém de confiança para se informar das acusações que se faziam contra Judas. Demetrio, animado por essas palavras contra Judas, enviou para lá Bacida,* governador da Mesopotâmia, com um exército. Esse homem era um valente general e fora muito querido do rei Antioco Epifânio. Demetrio deu-lhe ordem expressa de exterminar todos os que seguiam Judas, e este por primeiro. Recomendou-lhe particularmente que ajudasse Alcim, que deveria acompanhá-lo nessa guerra. O general partiu de Antioquia e, quando chegou à Judéia, mandou dizer a Judas e a seus irmãos, com o fim de surpreendê-los, que queria fazer a paz e contrair aliança com eles. Judas, porém, desconfiou de suas palavras, visto que ele vinha com uma tropa considerável, mais parecendo desejar a guerra que a paz. Outros, que não eram tão prudentes, prestaram fé às palavras de Bacida, julgando que nada tinham a temer de Alcim, pois era um compatriota. Foram, portanto, ter com eles, depois que ambos prometeram com juramento não lhes fazer mal algum, nem aos de seu partido. Mas Bacida, contra a palavra que empenhara, mandou matar sessenta deles. Essa perfídia impediu que os demais lhe dessem fé, e ele afastou-se imediatamente de Jerusalém, chegando a Bete-Zaíte, onde matou todos os que conseguiu aprisionar e ordenou ao povo que obedecesse a Alcim, com quem deixou parte das tropas. Depois voltou para Antioquia, a fim de falar com o rei Demétrio. _____________________ * Ou Báquides. 488. Alcim, para conquistar a afeição do povo e firmar sua autoridade, falava com tanta doçura a todos que muitos, dos quais a maior parte era composta de ímpios e fugitivos, se alinharam ao lado dele. Começou então a devastar o país e mandou matar, do partido de Judas, os que lhe caíram nas mãos. Judas, vendo que ele se fortificava cada dia mais e que tantos homens de bem pereciam pela sua crueldade, pôs-se em campo e matou, do partido de Alcim, todos os que pôde apanhar. Então esse inimigo de seu próprio país, não se julgando forte o bastante para enfrentá-lo, voltou a Antioquia para pedir socorro ao rei Demétrio, deixando o rei ainda mais irritado contra Judas. Alcim acusou-o de muitos males e da intenção de causar outros ainda maiores, caso sua majestade não enviasse poderosas forças para castigá-lo. CAPÍTULO 17 O REI DEMÉTRIO, A PEDIDO DE ALCIM, MANDA NICANOR COM UM GRANDE EXÉRCITO CONTRA JUDAS MACABEU, A QUEM PROCURA SURPREENDER. TRAVAM UMA BATALHA, E NICANOR É MORTO. MORTE DE ALCIM POR UM TERRÍVEL CASTIGO DE DEUS. JUDAS É CONSTITUÍDO SUMO SACERDOTE EM SEU LUGAR E FAZ ALIANÇA COM OS ROMANOS. 489. 1 Macabeus 7. Ante essas queixas de Alcim, o rei Demétrio julgou conveniente, para a segurança do reino, não permitir que Judas Macabeu se fortificasse ainda mais, e enviou contra ele um grande exército, sob o comando de Nicanor, que com ele havia escapado de Roma e desfrutava grande prestígio perante o rei. Esse general partiu com ordem de não poupar um só dos judeus. Quando chegou a Jerusalém, no entanto, não julgou conveniente revelar a Judas o propósito de sua vinda. Resolveu agir pela astúcia e mandou-lhe dizer que não compreendia por que razão ele queria entregar-se aos perigos de uma guerra e que estava disposto a afirmar-lhe com juramento que nada devia temer, pois viera com os seus amigos apenas para lhe manifestar as intenções do rei, muito favoráveis à sua nação. Judas e seus irmãos deixaram-se persuadir por estas palavras. O juramento foi feito de parte a parte, e eles o receberam com o seu exército. Nicanor saudou Judas e, enquanto ainda falavam, fez sinal aos seus para que o aprisionassem. Judas, porém, percebeu-o e escapou. Assim foi descoberta a traição de Nicanor, e Judas só pensava agora em se preparar para a guerra. O combate travou-se perto da aldeia de Cafarsalama, onde judas levou a pior e foi obrigado a se retirar para Jerusalém. 490. Um dia, quando Nicanor descia da fortaleza e vinha para o Templo, alguns sacerdotes e anciãos foram à sua presença, com algumas vítimas que diziam desejar oferecer pela prosperidade do rei Demétrio. Mas ele, em vez de recebê-las favoravelmente, proferiu blasfêmias contra Deus e ameaçou destruir o Templo se não lhe entregassem Jerusalém. Assim, no temor de que se viram possuídos, tudo o que puderam fazer foi rogar a Deus, com lágrimas, que os protegesse. Nicanor foi acampar em Bete-Horom, onde recebeu, da Síria, um novo esforço. Judas acampou a trinta estádios dele, num lugar de nome Adasa, com mil homens somente. Exortou-os a não se assustarem com o número dos inimigos nem com outras aparentes vantagens que eles desfrutavam nos requisitos para a luta, mas que se lembrassem de que eram judeus e da causa pela qual combatiam, pois isso seria suficiente para livrá-los de todo o temor. O combate logo iniciou, com grande entusiasmo de parte a parte. Vários inimigos foram mortos, e Nicanor também morreu, depois de fazer tudo o que é próprio de um grande general. Com a sua morte, as tropas perderam a coragem, abandonaram as armas e fugiram. Judas perseguiu-os com tenacidade, matou a todos os que apanhou e comunicou a todas as terras da vizinhança, pelo som de trombetas, que Deus lhe concedera a vitória. Os judeus, avisados por esse sinal, saíram imediatamente com armas, cortaram o caminho dos fugitivos e os atacaram. Não escapou um sequer dos nove mil homens que formavam aquele exército. Essa vitória deu-se no dia treze do mês de adar, que os macedônios chamam distro. E nós celebramos essa festa todos os anos, a partir dessa data. Nossa nação desfrutou, em seguida, paz e descanso durante algum tempo e pôde saborear os frutos da paz até enfrentar novamente outros perigos e novos combates. 491. Alcim, sumo sacerdote, queria mandar demolir os antigos muros do santuário, construídos pelos santos profetas, mas Deus o castigou imediatamente com uma doença tão cruel que ele caiu por terra e morreu, depois de sofrer durante vários dias dores contínuas e insuportáveis. Ele exerceu esse cargo durante quatro anos, e o povo, por um consentimento unânime, escolheu Judas Macabeu para sucedê-lo. 492. O novo sumo sacerdote, constatando que o poder dos romanos era tão grande que eles haviam submetido os gaiatas, os espanhóis e os cartagineses, subjugado a Grécia e vencido os reis Perseu, Filipe e Antíoco, o Grande, resolveu fazer amizade com eles e enviou a Roma, para esse fim, dois de seus amigos: Eupotemo, filho de João, e Jasão, filho de Eleazar, com o fim de rogar aos romanos que os recebessem em aliança e em amizade, e escrevessem ao rei Demétrio que os deixasse em paz. O senado os recebeu muito favoravelmente, concedeu-lhes o que pediam e mandou exarar o pedido como decreto, em tábuas de cobre, que foram colocadas no Capitólio. Deram-lhes uma cópia, cujas palavras eram estas: "Nenhum dos que estão sujeitos aos romanos fará guerra aos judeus, tampouco auxiliará os seus inimigos com trigo, navios ou dinheiro. Os romanos ajudarão os judeus com todas as suas posses contra os que os atacarem, e os judeus auxiliarão os romanos do mesmo modo, se estes forem atacados. Se os judeus quiserem acrescentar ou diminuir alguma coisa a esta aliança que contraem com os romanos, não o poderão fazer sem o consentimento de todo o povo romano, que deverá ratificá-lo". Essa cópia foi escrita por Eupotemo e por Jasão, sendo então Judas o sumo sacerdote, e Simão, seu irmão, o general de todo o exército. Esse tratado foi o primeiro que os judeus fizeram com os romanos. CAPÍTULO 18 O REI DEMÉTRIO MANDA BACIDA COM UM NOVO EXÉRCITO CONTRA JUDAS MACABEU, QUE, EMBORA TENHA SOMENTE OITOCENTOS HOMENS, DECIDE COMBATÊ-LO. 493. 1 Macabeu 9. O rei Demétrio, tendo sabido da morte de Nicanor e da inteira derrota de seu exército, enviou um outro contra os judeus, comandado por Bacida. Ele partiu de Antioquia, entrou na Judéia, acampou perto de Arbelas, na Galiléia, forçou as cavernas para onde vários judeus se haviam retirado e avançou pelo lado de Jerusalém. Soube, a caminho, que Judas estava numa aldeia chamada Bersete e marchou imediatamente contra ele. Judas tinha então somente dois mil homens, a maior parte dos quais, mil e duzentos homens, ficou atemorizada pelo número dos inimigos e fugiu, ficando-lhe somente oitocentos. Mesmo abandonado desse modo e não tendo nenhum meio de fortificar as suas tropas, ele resolveu combater com os poucos soldados que lhe restavam. Exortou-os a suprir pela coragem o que lhes faltava e a superar pelo valor a grandeza do perigo. Eles lhe fizeram ver a desproporção entre as suas forças e as dos inimigos, dizendo que era melhor se retirarem para reunir novos soldados e então voltar para combatê-los, mas ele respondeu: "Deus me livre ser tão infeliz. Que o Sol jamais me veja voltar as costas ao inimigo. Embora me deva custar a vida, não irei obscurecer por uma fuga vergonhosa o brilho de tantas vitórias que conquistei sobre eles. Recebê-los-ei com armas na mão e, combatendo generosamente, aceitarei o que prouver a Deus permitir que me aconteça". Essas palavras, vindo de tão corajoso comandante, tiveram tanta força que persuadiram o pequeno número a desprezar tão grande perigo e a sustentar sem temor o ímpeto daquele poderoso exército. CAPÍTULO 19 JUDAS MACABEU ENFRENTA COM OITOCENTOS HOMENS TODO O EXÉRCITO DO REI DEMÉTRIO E É MORTO, DEPOIS DE PRATICAR INCRÍVEIS PROEZAS DE VALOR. ELOGIO A ELE. 494. Bacida dispôs as suas tropas em ordem de batalha e colocou a cavalaria em duas alas, pondo no meio os que estavam armados à ligeira, com os arquei-ros sustentados pelas falanges macedônias. Ele comandava em pessoa a ala direita. Depois de marchar nessa ordem, aproximou-se dos inimigos, ordenou aos trombeteiros que dessem o toque de avançar e aos demais que iniciassem o ataque. Judas, por seu lado, fez a mesma coisa, e a luta foi tão acirrada, de parte a parte, que durou até o pôr-do-sol. Judas, tendo notado que Bacida combatia na ala direita com a elite de suas tropas, tomou os mais valorosos dentre os seus e foi atacá-lo, com tanta coragem que atravessou os seus temíveis batalhões e os desbaratou. Colocou-os em fuga e os perseguiu até os montes de Asa. Os da ala esquerda, vendo que ele tinha avançado demais, seguiram-no e o rodearam de todos os lados. Na impossibilidade de se retirar, Judas continuou firme e, depois de matar uma porção deles, ficou tão esgotado que caiu exausto e morreu gloriosamente, coroando assim as suas grandes e imortais vitórias. Os soldados, não podendo mais resistir após a perda de tal comandante, só pensaram em se salvar. Simão e Jônatas, seus irmãos, levaram-lhe o corpo durante algumas tréguas e foram a Modim, onde ele foi enterrado com grande magnificência na sepultura de seu pai. Todo o povo lamentou-o durante vários dias e prestou-lhe todas as homenagens que a nossa nação costuma prestar à memória dos filhos mais ilustres. Tal foi o glorioso fim de Judas Macabeu, grande general e comandante, homem admirável, que, tendo sempre diante dos olhos os mandamentos que recebera de seu pai, empreendeu corajosamente muitas ações difíceis e perigosas, para o bem e a liberdade de sua pátria. Será, pois, motivo de admiração que a honra de tê-la libertado da escravidão dos macedônios, com um número infinito de feitos extraordinários, lhe tenham granjeado uma reputação que nenhum século verá terminar? Exerceu ele durante três anos o sumo sacerdócio. Livro Décimo Terceiro CAPÍTULO 1 DEPOIS DA MORTE DE JUDAS MACABEU, JÔNATAS, SEU IRMÃO, É ESCOLHIDO PELOS JUDEUS PARA GENERAL DE SUAS TROPAS. BACIDA, GENERAL DO EXÉRCITO DE DEMÉTRIO, TENTA MATÁ-LO À TRAIÇÃO E, NÃO CONSEGUINDO, ATACA-O. GRANDE COMBATE E BELA RETIRADA DE JÔNATAS. OS FILHOS DE AMAR MATAM JOÃO, SEU IRMÃO. JÔNATAS SE VINGA. BACIDA CERCA JÔNATAS E SIMÃO, SEU IRMÃO, EM BETALAGA. ELES O OBRIGAM A LEVANTAR O CERCO. 495. 1 Macabeus 9. Vimos no livro precedente que os judeus se libertaram da escravidão dos macedônios pela coragem e valor de Judas Macabeu, que foi morto no último dos muitos combates nos quais se empenhara para reconquistar a liberdade. Depois da perda desse generoso chefe, aqueles de nossa nação que haviam abandonado as leis de seus pais fizeram mal, como nunca antes, aos que permaneciam fiéis a Deus. E uma grande carestia afligiu de tal modo a judéia que vários dentre aqueles passaram para os macedônios, a fim de garantir a própria subsistência. Bacida entregou a esses desertores o encargo dos negócios da província, e eles começaram por lhe entregar todos os que puderam apanhar, tanto os amigos particulares de Judas Macabeu quanto os que eram favoráveis ao seu partido. Não se contentando em mandá-los matar, o cruel general valia-se de tormentos desconhecidos e inauditos. Os judeus, vendo-se reduzidos à extrema miséria, qual nem mesmo haviam sofrido após o cativeiro na Babilônia, e tendo motivo para temer a completa ruína, pediram a Jônatas, irmão de judas, que imitasse o valor de seu admirável irmão, o qual terminara a vida combatendo até o último suspiro pela salvação de sua pátria, e não permitisse que toda a nação perecesse por falta de um chefe tão competente quanto ele. Jônatas respondeu que estava pronto a sacrificar a sua vida pelo bem público, e, como todos julgassem que não podiam confiar o cargo a pessoa mais digna, escolheram-no para chefe com o consentimento geral. 496. Bacida, apenas o soube, com medo de que jônatas causasse tantas preocupações quanto o irmão ao rei e aos macedônios, resolveu mandar matá-lo à traição. Mas Jônatas e Simão descobriram o seu intento e se retiraram com vários dos de seu partido para o deserto próximo de Jerusalém, detendo-se junto do lago de Asfar. Bacida, pensando que eles estavam com medo, marchou imediatamente contra eles com todas as suas tropas e acampou além do Jordão. Quando Jônatas soube disso, enviou João, seu irmão, cognominado Gadis, com a bagagem, aos árabes nabateenses, que eram seus amigos, para lhes pedir que a guardassem até que tivessem terminado a luta com Bacida. Porém os filhos de Amar saíram da cidade de Medeba e o atacaram, saquearam toda a bagagem e o mataram, bem como a todos os que o acompanhavam. Tão negra ação não ficou impune. Os irmãos de João tiraram vingança, como diremos em seguida. Bacida, sabendo que Jônatas se retirara aos pantanais do Jordão, escolheu o sábado para atacá-lo, na persuasão de que a observância da Lei os impediria de combater. Jônatas fez ver aos seus que os inimigos que tinham à frente e o rio, que estava por trás, tirando-lhes a passagem e os meios de fuga, exigiriam deles toda a coragem e todo o empenho na luta, se quisessem salvar-se de tão grande perigo. Em seguida, fez a Deus uma oração para pedir-lhe a vitória e atacou os inimigos, matando vários deles. Bacida, vendo-o aproximar-se de maneira tão ousada, reuniu todas as suas forças para desferir-lhe um tremendo golpe. Jônatas, porém, o evitou e, percebendo que não estava em condições de resistir por muito tempo a um inimigo tão numeroso, lançou-se com o seu exército ao rio, passando-o a nado, o que os inimigos não ousaram fazer. Assim, Bacida, que perdeu no combate uns dois mil homens, voltou para a fortaleza de Jerusalém e fortificou várias cidades que haviam sido destruídas, isto é, Jerico, Emaús, Bete-Horom, Betei, Tamnata, Faraton, Tefon e Gazara,* rodean-do-as com muralhas com torres grandes e fortes e colocando nelas guarnições, a fim de poder usá-las como base nas incursões contra os judeus. Fortificou de modo particular a fortaleza de Jerusalém, onde mantinha prisioneiros os principais dos judeus, que lhe haviam sido entregues como reféns. ________________ * Ou Cezer. 497. Por esse mesmo tempo, Jônatas e Simão souberam que os filhos de Amar iriam levar, da cidade de Gatala, com grande pompa e magnificência, a filha de um dos principais dos árabes, que um deles recebera como noiva, para celebrar as bodas. Os dois irmãos julgaram que não haveria ocasião melhor para vingar a morte de João, seu irmão. Assim, marcharam com grandes forças para Medeba e puseram-se de emboscada no monte que está à passagem. Logo que viram a noiva aproximar-se com o noivo e seus amigos, atiraram-se sobre eles, mataram todos, levaram o que eles tinham de mais precioso e voltaram, depois de se sentirem plenamente vingados. Eles mataram cerca de quatrocentos, entre homens, mulheres e crianças, e sua moradia agora era nos pantanais do Jordão. 498. Bacida, depois de colocar as guarnições na Judéia, voltou para visitar o rei Demétrio. Assim, os judeus ficaram em paz durante dois anos. Mas os ímpios desertores, vendo que Jônatas e os seus viviam tranqüilos, sem nada temer, foram pedir ao rei que enviasse Bacida novamente, para os aprisionar, pois então nada seria mais fácil que os surpreender durante a noite e matar todos eles. Bacida partiu, por ordem do príncipe, e logo que chegou à Judéia escreveu aos seus amigos e aos judeus que eram de seu partido, ordenando que prendessem Jônatas. Eles tudo fizeram para consegui-lo, mas inutilmente, porque ele vivia de sobreaviso. Bacida ficou de tal modo encolerizado contra aqueles falsos judeus, pensando que eles o haviam enganado, bem como ao rei, que mandou matar uns cinqüenta dentre os principais. Jônatas e seu irmão, não se sentindo bastante fortes, retiraram-se com os seus homens para uma aldeia do deserto, de nome Betalaga,* e a rodearam com muralhas e fortificaram as torres, a fim de poderem ficar em segurança. Bacida sitiou-os com todas as suas tropas e com os judeus de seu partido, procurando atacá-los durante vários dias, mas eles se defendiam corajosamente. Jônatas, deixando o irmão na cidade, para continuar resistindo ao cerco, saiu secretamente e, com os soldados de que dispunha, atacou à noite o acampamento dos inimigos, matando muitos deles. Depois mandou avisar o irmão, que saiu também e incendiou as máquinas com que eram atacados, matando um grande número de inimigos. Bacida, vendo-se acossado de todos os lados e não tendo esperança de tomar a cidade, ficou de tal modo perturbado que parecia ter perdido a razão. Então descarregou a sua cólera sobre os miseráveis trânsfugas, que ele julgava terem enganado o rei ao persuadir o soberano a enviá-lo para a Judéia. Depois disso, pensava apenas em como levantar o cerco sem desonra e retirar-se. ______________________ * Ou Bete-Busi. CAPÍTULO 2 JÔNATAS FAZ A PAZ COM BACIDA. 499. 1 Macabeus 9. Quando Jônatas soube da disposição de Bacida, mandou fazer-lhe uma proposta de paz, dizendo-lhe que, se concordasse, deveria começar por entregar os prisioneiros, e ele faria o mesmo. Bacida, não querendo perder uma ocasião tão favorável para levantar honestamente o cerco, não teve dificuldade em fazer o tratado. Prometeram com juramento não fazer mais guerra entre si, e os prisioneiros foram postos em liberdade. Bacida voltou para junto do rei, seu senhor, a Antioquia, e nunca mais veio com armas à Judéia. jônatas, depois de assim cuidar da tranqüilidade e da segurança de sua pátria, fixou moradia na cidade de Micmás, onde se entregou ao governo do povo: apaziguava os litígios, castigava os maus e os ímpios, e de nada se esquecia para reformar os costumes de sua nação. CAPÍTULO 3 ALEXANDRE BALAS, FILHO DO REI ANTÍOCO EPIFÂNIO, ENTRA COM ARMAS NA SÍRIA. A GUARNIÇÃO DE PTOLEMAIDA ABRE-LHE AS PORTAS, POR CAUSA DO ÓDIO QUE TINHA AO REI DEMÉTRIO, QUE SE PREPARA PARA A GUERRA. 500. No ano cento e sessenta, Alexandre, cognominado Balas, filho do rei Antíoco Epifânio, entrou com armas na Síria, e a guarnição da cidade de Ptolemaida entregou-lhe a praça, pelo ódio que tinha ao rei Demétrio, por causa do seu orgulho, que o tomava inacessível. Ele ficava encerrado num palácio real muito próximo de Antioquia e fortificado por quatro grandes torres, onde não permitia a ninguém ir vê-lo. Ali, sem se incomodar com os destinos do reino, passava a vida ociosamente, o que lhe valeu o desprezo e a aversão de seus súditos, como o dissemos em outro lugar. Mas quando ele soube que Alexandre fora recebido em Ptolemaida, reuniu todas as suas forças a fim de marchar contra ele. CAPÍTULO 4 O REI DEMÉTRIO PROCURA ALIANÇA COM JÔNATAS, QUE SE SERVE DESSA OCASIÃO PARA REPARAR AS FORTIFICAÇÕES DE JERUSALÉM. 501. 1 Macabeus 10. O príncipe enviou, ao mesmo tempo, embaixadores a Jônatas para convidá-lo a se unir com ele num pacto de amizade e de aliança, pois desejava antepor-se a Alexandre, não duvidando de que este se propunha também obter o auxílio de Jônatas, e julgou poder consegui-lo tanto mais facilmente quanto não desconhecia o ódio que havia entre eles. Mandava-o ainda reunir tropas, quantas pudesse, para ajudá-lo naquela guerra e permitia-lhe retomar os reféns judeus que Bacida havia deixado na fortaleza de Jerusalém. Jônatas, logo que recebeu as cartas, foi a Jerusalém e leu-as na presença de todo o povo e da guarnição da fortaleza. Os judeus ímpios e fugitivos que lá se haviam refugiado ficaram muito surpreendidos, porque o rei permitia a Jônatas reunir soldados e retirar os reféns. Depois que estes lhe foram entregues, ele os enviou todos aos seus respectivos parentes e serviu-se da ocasião para fazer grandes restaurações em Jerusalém. Estabeleceu aí a sua moradia, sem que houvesse oposição, e mandou reconstruir as muralhas, com grandes pedras quadradas, para que pudessem resistir aos ataques dos inimigos. Quando as guarnições dispersas pelas cidades fortificadas da Judéia o viram agir desse modo, abandonaram o seu posto e se retiraram para Antioquia, exceto os de Bete-Zur e os da fortaleza de Jerusalém, porque eram guarnições compostas principalmente de judeus desertores e sem religião. CAPÍTULO 5 O REI ALEXANDRE BALAS PROCURA JÔNATAS AMIGAVELMENTE E DÁ-LHE O CARGO DE SUMO SACERDOTE, VACANTE PELA MORTE DE JUDAS MACABEU, SEU IRMÃO. O REI DEMÉTRIO FAZ-LHE AINDA MAIORES PROMESSAS. OS DOIS REIS TRAVAM UMA BATALHA, E DEMÉTRIO É MORTO. 502. Como o rei Alexandre Balas conhecia os grandes feitos de Jônatas na guerra contra os macedônios e sabia, além disso, o quanto ele fora afligido por Demétrio e por Bacida, general do exército, disse aos seus servidores, logo que soube do oferecimento que esse príncipe lhe fizera, que julgava não poder, em tal conjuntura, contrair uma aliança cujo auxílio lhe fosse mais vantajoso do que com jônatas, porque este, além de seu grande valor e experiência na guerra, tinha motivos particulares para odiar Demétrio, pelo mal que dele havia recebido e pelas angústias suportadas. Se eles julgassem conveniente, faria aliança com ele, contra Demétrio, pois nada haveria de mais útil para eles. Todos aprovaram esse projeto. Ele escreveu imediatamente a Jônatas a seguinte carta: "O rei Alexandre a Jônatas, seu irmão, saudação. A estima que temos há muito pelo vosso valor e fidelidade nas promessas nos leva a desejar unirmo-nos a vós com uma aliança de amizade, e estamos vos enviando emissários para esse fim. Para dar provas disso, vos constituímos, com a presente, sumo sacerdote, vos recebemos no número de nossos amigos e vos fazemos presente de um traje de púrpura e de uma coroa de ouro, porque não duvidamos que tantos sinais de honra recebidos de nós e unidos ao pedido que fazemos não vos obriguem a desejar reconhecê-los". Jônatas, depois de receber essa carta, revestiu-se de ornamentos de sumo sacerdote, no dia da festa dos Tabernáculos, quatro anos depois da morte de Judas Macabeu, seu irmão. Durante esse tempo, o cargo esteve vago. Ele então reuniu um grande número de pessoas e mandou forjar uma grande quantidade de armas. 503. Demétrio soube disso com sensível desprazer, mas culpou a sua própria demora, que dera ocasião a Alexandre de atrair ao seu partido com tantas demonstrações de estima um homem de tanto mérito. Não deixou, porém, de escrever a Jônatas e ao povo, nestes termos: "O rei Demétrio a Jônatas e à nação dos judeus, saudação. Sabendo de que modo resististes às solicitações que os nossos inimigos vos fizeram de violar a nossa aliança, não podemos louvar o bastante a vossa fidelidade nem exortar-vos em demasia a agir sempre desse modo. Podeis contar com a nossa palavra: não há favores que não possais esperar de nós, como recompensa. E, para vos provar o que dissemos, dispensamo-vos da maior parte dos tributos e vos desobrigamos, desde já, do que estáveis acostumados a pagar a nós e aos nossos predecessores, como também do sal, das coroas de ouro de que nos fazeis presentes e do terço das sementes, da metade das frutas das árvores e do imposto por cabeça devido pelos que moram na Judéia e nas três províncias vizinhas, isto é, Samaria, Galiléia e Peréia, e isso para sempre. Queremos ainda que a cidade de Jerusalém, sendo sagrada, desfrute o direito de asilo e seja isenta, com o seu território, das décimas e de toda espécie de imposto. Permitimos a jônatas, vosso sumo sacerdote, que constitua para a guarda da fortaleza de Jerusalém os que mais merecerem a sua confiança, a fim de vô-la conservar. Colocamos em liberdade os judeus aprisionados na guerra e ainda escravizados entre nós. Isentamo-vos de fornecer cavalos para os correios. E nosso desejo que todos os sábados, as festas solenes e os três dias que as precedem sejam dias de liberdade e de franquia, e que os judeus que moram em nossos territórios sejam livres e possam usar armas a nosso serviço, até trinta mil, recebendo o mesmo soldo que os nossos soldados. Eles podem ser postos nas guarnições de nossas praças e recebidos em nossas guardas pessoais, e os seus chefes serão tratados favoravelmente em nossa corte. Permitimos a todos os das três províncias vizinhas de que acabamos de falar que vivam segundo as leis de vossos antepassados e encarregamos o vosso sumo sacerdote de cuidar para que nenhum judeu vá adorar a Deus em outro templo que não o de Jerusalém. Ordenamos que seja tomada de nossas rendas, todos os anos, a soma de cento e cinqüenta mil dracmas de prata, para as despesas dos sacrifícios, e que o que sobrar seja empregado em vosso proveito. Quanto às dez mil dracmas que os reis estavam acostumados a receber do Templo cada ano, nós as deixamos aos sacerdotes e aos outros ministros desse lugar sagrado, porque sabemos que elas lhes pertencem. Proibimos que se atente contra qualquer pessoa que se retirar ao Templo em Jerusalém ou ao oratório que lhe está próximo, ou contra os seus bens, seja pelo que nos deve, seja por qualquer outro motivo. E permitimos que, à nossa custa, repareis o Templo e as muralhas da cidade e que eleveis altas torres. E ainda, se houver na Judéia lugar próprio para se construírem cidadelas, queremos que tal se faça também à nossa custa". O rei Alexandre, após reunir grandes forças, tanto as tropas tomadas sob pagamento quanto as que na Síria se haviam revoltado contra Demétrio, marchou contra este, e travou-se a batalha. A ala esquerda do exército de Demétrio rompeu a ala direita do de Alexandre, obrigando-o a fugir. Perseguiu-o por muito tempo, com grande mortandade, e saqueou o seu acampamento. Porém, a ala direita de Demétrio, na qual ele combatia, não pôde resistir à ala esquerda de Alexandre, que a atacava. O príncipe fez, nessa ocasião, atos extraordinários de valor. Matou com as próprias mãos muitos inimigos e, enquanto perseguia outros, o seu cavalo caiu num pântano, do qual não pôde mais sair. Assim, a pé, abandonado, rodeado por inimigos e acossado pelas flechas, caiu crivado de feridas, depois de se defender com invencível coragem. Ele reinou onze anos, como já dissemos. CAPÍTULO 6 ONIAS, FILHO DE ONIAS, SUMO SACERDOTE, CONSTRÓI NO EGITO UM TEMPLO SEMELHANTE AO DE JERUSALÉM. CONTESTAÇÃO ENTRE OS JUDEUS E OS SAMARITANOS ANTE PTOLOMEU FILOMETER, REI DO EGITO, COM RELAÇÃO AO TEMPLOS DE JERUSALÉM E DE GERIZIM. OS SAMARITANOS PERDEM A CAUSA. 504. Onias, filho de Onias, sumo sacerdote, que, como dissemos, se retirara para Alexandria, a Ptolomeu Filometer, rei do Egito, vendo que a Judéia fora destruída pelos macedônios e pelos seus reis, e desejando eternizar-lhe a memória, escreveu ao rei e à rainha Cleópatra para suplicar que lhe permitissem construir no Egito um templo semelhante ao de Jerusalém e lá constituir sacerdotes e levitas de sua nação. Uma profecia de Isaías, que havia predito, cem anos antes, que um judeu edificaria no Egito um templo em honra ao Deus Todo-poderoso, fortaleceu ainda mais o seu desígnio. Sua carta assim estava escrita: "Quando, com a ajuda de Deus, prestei a vossa majestade grandes serviços na guerra, notei, passando pela Baixa Síria, pela Fenícia e por Leontópolis, que é do governo de Heliópolis, e por outros lugares, que os judeus lá haviam construído diversos templos sem observar as regras necessárias para esse fim, o que causou entre eles grande divergência. Os egípcios cometem a mesma falta, pela multidão de templos e pela diversidade de seus sentimentos nas coisas da religião. Mas encontrei em um castelo chamado Bubaste, o Selvagem, um lugar muito apropriado para a construção de um templo, porque lá se encontram animais em abundância e outras coisas próprias para os sacrifícios, e onde já existe um templo, meio destruído e que não está consagrado a divindade alguma, cuja demolição, se vossa majestade o permitir, poderá servir à construção de um outro, em honra ao Deus Todo-poderoso, que será semelhante ao de Jerusalém e nele se rogará pela prosperidade de vossas majestades e dos príncipes vossos filhos. Ele congregará todos os judeus que moram no Egito, porque eles aí se reunirão para cantar louvores a Deus, como o predisse profeta Isaías, nestas palavras: Haverá no Egito um lugar consagrado a Deus (ao que ele acrescenta diversas coisas referentes a esse lugar)". O rei Ptolomeu e a rainha Cleópatra, a qual era ao mesmo tempo sua mulher e irmã, mostraram a sua piedade em uma resposta cujos termos lançavam sobre Onias todo o pecado, se houvesse naquilo transgressão à Lei. Eis as palavras: "O rei Ptolomeu e a rainha Cleópatra a Onias, saudação. Vimos por vossa carta o pedido que nos fazeis de permitir-vos reconstruir o templo em rumas de Bubaste, o Selvagem, perto de Leontópolis, que é do governo de Heliópolis, e temos dificuldades em crer que seja coisa agradável a Deus consagrar-lhe um templo num lugar tão impuro e cheio de animais. Como nos afirmais, todavia, que o profeta Isaías predisse há muito tempo que isso iria acontecer, nós vô-lo permitimos, caso seja coisa que se possa fazer sem desobedecer à vossa lei, pois não queremos absolutamente ofender a Deus". Onias, depois dessa permissão, construiu um templo igual ao de Jerusalém, contudo um pouco menor e não tão rico. Não lhe citarei as medidas nem os vasos que foram consagrados, pois disso já falei no sétimo livro da Guerra dos Judeus. Onias não teve dificuldade em encontrar entre os judeus sacerdotes e levitas com os mesmos sentimentos para servirem naquele templo. 505. Suscitou-se por aquele mesmo tempo, em Alexandria, uma tão grande questão entre os judeus e os samaritanos, os quais haviam, sob o reinado de Alexandre, o Grande, construído um templo no monte Gerizim, que o rei Ptolomeu desejou ser informado a esse respeito. Os judeus diziam que o Templo de Jerusalém, tendo sido construído segundo as Leis de Moisés, era o único que devia ser reverenciado. Os samaritanos, ao contrário, sustentavam que o de Gerizim era o verdadeiro. O soberano reuniu um grande conselho para decidir a questão, e começou por dizer que os advogados que perdessem a causa seriam condenados à morte. Sabeu e Teodósio falaram pelo samaritanos, e Andrônico, filho de Messalam, pelo judeus e pelos de Jerusalém. Todos protestaram com juramento, diante de Deus e do rei, que não trariam outras provas senão as da Escritura e da Lei e rogaram ao soberano que mandasse matar aqueles que violassem o juramento. Os judeus de Alexandria estavam muito aflitos por aqueles que defendiam a sua causa e não podiam ver, sem extrema dor, que se pusesse em dúvida o direito do mais antigo e augusto Templo do mundo. Sabeu e Teodósio consentiram que Andrônico falasse primeiro, e ele demonstrou, por meio de provas tiradas da Lei e pela série contínua dos sumo sacerdotes, a santidade e a autoridade do Templo de Jerusalém. Provou-as também pelos ricos e magníficos presentes que todos os reis da Ásia haviam oferecido e pela honra que lhe prestaram, os quais não tinham, ao invés, nenhum apreço pelo Templo de Gerizim. A isso ele acrescentou outras razões, persuadindo o rei de tal modo que ele declarou que o Templo de Jerusalém era o que realmente fora construído conforme as Leis de Moisés. E mandou matar Sabeu e Teodósio. CAPÍTULO 7 ALEXANDRE BALAS, DE POSSE PACÍFICA DO REINO DA SÍRIA, PELA MORTE DE DEMETRIO, DESPOSA AFILHA DE PTOLOMEU FILOMETER, REI DO EGITO. GRANDES HONRAS PRESTADAS POR ALEXANDRE AFÔNATAS, SUMO SACERDOTE. 506. 1 Macabeus 11. Depois que o rei Demetrio, como dissemos, morreu na batalha e Alexandre Balas, por sua morte, se tornou senhor de toda a Síria, este escreveu a Ptolomeu Filometer, rei do Egito, para pedir-lhe a princesa Cleópatra, sua filha, em casamento, dizendo que era muito justo, visto que Deus lhe havia concedido a graça de vencer Demetrio e reconquistar o reino de seu pai, que ele o recebesse como aliado quando outras considerações não o tornassem indigno disso. Ptolomeu recebeu essa carta com satisfação e respondeu que tivera conhecimento, com bastante prazer, de que ele voltara aos seus domínios, os quais lhe pertenciam com justo título, e de boa mente lhe dava a sua filha. Ele devia apenas vir a Ptolemaida, para onde ela seria levada, a fim de lá celebrarem as bodas. Tudo isso se realizou. Ptolomeu deu como dote à filha uma soma digna de tão grande rei. Alexandre escreveu a jônatas, sumo sacerdote, convidando-o para o casamento. Ele compareceu, deu magníficos presentes aos dois reis e foi por eles recebido com grandes honras. Alexandre obrigou-o a mudar de trajes para vestir um manto de púrpura, obrigou-o a sentar-se perto dele, no trono, e ordenou aos seus principais oficiais que o levassem pela cidade clamando que o rei proibia a quem quer que fosse dizer algo contra ele ou causar-lhe algum desprazer. Tantos favores mostraram a todos o prestígio de Jônatas perante o rei, e os seus inimigos, que tinham vindo para acusá-lo, retiraram-se, temendo que o mal que lhe desejavam viesse a cair sobre eles próprios. O afeto que Alexandre lhe dedicava era tão grande que esse príncipe o considerava o homem a quem mais estimava sobre a terra. CAPÍTULO 8 DEMETRIO NICANOR, FILHO DO REI DEMETRIO, ENTRA NA CILÍCIA COM UM EXÉRCITO. O REI ALEXANDRE BALAS DÁ O COMANDO DE SEU EXÉRCITO A APOLÔNIO, QUE INJUSTAMENTE ATACA JÔNATAS, SUMO SACERDOTE. JÔNATAS O DERROTA, TOMA AZOTO E INCENDEIA O TEMPLO DE DAGOM. PTOLOMEU FILOMETER, REI DO EGITO, VEM EM AUXÍLIO DO REI ALEXANDRE, SEU GENRO, QUE LHE ARMA EMBOSCADAS POR MEIO DE AMORNO. PTOLOMEU TIRA-LHE AFILHA E A DÁ EM CASAMENTO A DEMÉTRIO. OS HABITANTES DE ANTIOQUIA RECEBEM PTOLOMEU, E EXPULSAM ALEXANDRE, QUE RETORNA COM UM EXÉRCITO. PTOLOMEU E DEMÉTRIO COMBATEM E VENCEM ALEXANDRE. PTOLOMEU MUITO FERIDO, MORRE, PORÉM ANTES VÊ A CABEÇA DE ALEXANDRE, ENVIADA POR UM PRÍNCIPE ÁRABE, FÔNATAS CERCA A FORTALEZA DE JERUSALÉM E APLACA COM PRESENTES O REI DEMÉTRIO, QUE CONCEDE NOVAS GRAÇAS AOS JUDEUS. ESSE PRÍNCIPE, VENDO-SE EM PAZ, DISPENSA OS SEUS ANTIGOS SOLDADOS. 507. No ano cento e sessenta e cinco, Demétrio, cognominado Nicanor, filho do rei Demétrio, tomou sob pagamento um grande número de soldados que Lastene, de Creta, lhe forneceu, embarcou nessa ilha e foi à Cilícia. Essa notícia deixou muito perturbado o rei Alexandre Balas, que então estava na Fenícia. Ele partiu imediatamente para Antioquia, a fim de prevenir-se antes da chegada de Demétrio, e deu o comando de seu exército a Apolônio Davo. Esse general avançou para )amnia e mandou dizer a Jônatas, sumo sacerdote, que era estranho que ele fosse o único a viver à vontade e em paz sem prestar nenhum serviço ao rei; que não permitiria por mais tempo a censura que todos lhe moviam de não obrigá-lo ao cumprimento do dever; que ele não se iludisse na esperança de que não o poderiam atacar nos montes; que, se de fato ele era valente e tinha confiança em suas forças, como queria que se pensasse, viesse então à planície para encerrar aquela questão por meio de um combate, cujo resultado haveria de mostrar qual dos dois era o mais valente; que ele estivesse avisado de que tinha os melhores soldados, recrutados em todos os lugares da terra, os quais estavam acostumados a vencer; e que aquele combate se daria num lugar onde se teria necessidade de armas, e não de pedras, e onde os vencidos não podiam esperar a salvação pela fuga. Jônatas, irritado com tais bravatas, partiu imediatamente de Jerusalém com dez mil homens escolhidos, acompanhado por Simão, seu irmão, e foi acampar próximo da cidade de Jope. Os habitantes fecharam-lhes as portas. Vendo, porém, que ele se preparava para forçá-las, abriram-nas. Quando Apolônio soube que ele havia se apoderado da cidade, marchou por Azoto com oito mil soldados de infantaria e três mil de cavalaria. Em seguida, aproximou-se de Jope em marchas pequenas, sem rumor, e depois afastou-se um pouco para atacar Jônatas na planície, porque confiava na sua cavalaria. Jônatas avançou e o perseguiu até Azoto. Apolônio, mal o viu na planície, mudou de idéia e mandou sair ao mesmo tempo mil cavaleiros de uma emboscada que havia preparado numa torrente a fim de atacar os judeus pela retaguarda. Jônatas, que previra o movimento, não se admirou. Formou um batalhão compacto, em quadrados, para poder resistir de todos os lados, e exortou os seus a mostrar toda a sua coragem naquela eventualidade. O combate durou até a tarde. Jônatas deu o comando de uma parte do exército a Simão, seu irmão, e ordenou às tropas perto dele que se cobrissem com os escudos, para receber os dardos da cavalaria inimiga. Eles fizeram assim, e a cavalaria gastou todos os seus dardos sem conseguir causar-lhes mal algum. Quando Simão viu que os inimigos estavam cansados por terem lançado tantos dardos inutilmente o dia todo, atacou-os com tanta violência, principalmente a infantaria, que os derrotou. A fuga atemorizou também a cavalaria, e assim ela foi desbaratada e fugiu desordenadamente, jônatas os perseguiu até Azoto e matou um grande número deles. O resto refugiou-se num templo de Dagom, mas ele entrou na cidade e mandou incendiá-la, fazendo o mesmo com as cidades da vizinhança. Também não respeitou o templo e o incendiou, e assim morreram queimados todos os que nele se haviam refugiado. O número dos inimigos que pereceram nesse dia, tanto pelas chamas quanto pelas armas, foi de dez mil homens. Jônatas, ao sair de Azoto, acampou próximo de Asquelom. Os habitantes ofereceram-lhe presentes. Ele os recebeu, agradeceu-lhes a boa vontade e retornou vitorioso a Jerusalém, com ricos despojos. O rei Alexandre Balas mostrou-se satisfeito com a derrota de Apolônio, porque este havia atacado o seu amigo e os seus confederados contra a sua vontade. E, para mostrar a Jônatas em que estima ele tinha o seu valor, mandou-lhe um broche de ouro que somente os parentes dos reis podiam usar e deu-lhe perpetuamente Acarom e seu território. 508. Nesse mesmo tempo, o rei Ptolomeu Filometer veio à Síria com forças de terra e de mar, em socorro de Alexandre, seu genro, por ordem de quem todas as cidades o receberam com alegria, exceto Azoto, que lhe fez grandes queixas de jônatas, por ele haver incendiado o templo de Dagom e todo o país, passando-o a ferro e fogo, ao que esse rei nada respondeu. Jônatas dirigiu-se a Jope, onde ele estava, e foi muito bem recebido. Depois de acompanhá-lo até o rio de Eleutério, voltou a Jerusalém com ricos presentes, ofertados pelo príncipe. 509. Enquanto Ptolomeu estava em Ptolemaida, pouco faltou que não perecesse numa emboscada que Alexandre lhe armara por meio de Amônio, seu amigo. Mas ele descobriu e escreveu a Alexandre, dizendo que punisse aquele traidor como merecia. Vendo que ele não fazia caso, não duvidou em pensar que fora o próprio Alexandre o autor de tão grande traição e ficou irritado contra o pérfido príncipe, que já se tornara odioso aos habitantes de Antioquia por causa desse mesmo Amônio, que lhes havia feito muito mal. O detestável ministro de tão negra ação não deixou, no entanto, de receber o castigo que merecia. Tendo se vestido de mulher, para se salvar, foi morto nessa ocasião, perdendo a vida de forma vergonhosa, como diremos mais tarde. 510. Ptolomeu, arrependendo-se da aliança que fizera com Alexandre e de havê-lo ajudado, tirou-lhe a filha e enviou embaixadores a Demetrio para oferecê-la a este em matrimônio, com a promessa de restaurá-la no seu reino. Ele recebeu o oferecimento com grande alegria, e assim, nada mais restava a Ptolomeu senão persuadir os de Antioquia a receber esse jovem príncipe, contra o qual estavam indispostos, por causa da lembrança do que haviam sofrido sob o reinado de seu pai. E eles, devido ao ódio que sentiam de Alexandre, por causa de Amônio, resolveram, sem mais, expulsá-lo da cidade. Alexandre retirou-se para a Cilícia, e Ptolomeu Filometer entrou em Antioquia, onde foi saudado como rei pelos habitantes e pelo seu exército. Por isso foi obrigado permitir que lhe colocassem na cabeça dois diademas: um de rei da Ásia e outro de rei do Egito. Mas ele era naturalmente justo, muito prudente, moderado e pouco ambicioso, e não queria ofender os romanos. Por essa razão reuniu todos habitantes dessa grande cidade e os persuadiu a receber Demetrio como rei, garantindo-lhes que, por lhe dever Demetrio muitas obrigações, este esqueceria a inimizade que houvera entre seu pai e eles. A isso ele acrescentou que o orientaria sobre a maneira de bem governar e recomendar-lhe-ia que nada fizesse que fosse indigno de um príncipe. Quanto a ele, contentava-se com o reino do Egito. Assim, esse sábio rei os persuadiu a receber Demetrio. 511. Alexandre, depois de reunir um grande exército, entrou na Cilícia e na Síria, devastou-as e incendiou tudo. Ptolomeu e Demetrio, então seu genro, combateram-no e o venceram, obrigando-o a fugir para a Arábia. Aconteceu nessa batalha que o cavalo de Ptolomeu assustou-se com o barrido de um elefante e jogou-o por terra. Os inimigos imediatamente o rodearam de todos os lados e o teriam matado os seus guardas não o tivessem tirado daquele perigo. Mas ele recebeu tantas feridas na cabeça que ficou quatro dias sem poder falar nem compreender o que lhe diziam. No quinto dia, quando começava a voltar a si, um príncipe árabe, de nome Zabez, mandou-lhe a cabeça de Alexandre. Assim ele soube ao mesmo tempo da morte de seu inimigo e viu com os próprios olhos que a notícia era verdadeira. Mas a sua alegria não durou muito, pois logo em seguida ela também terminou, junto com a sua vida. Alexandre Balas reinou apenas cinco anos, como já dissemos. 512. Demetrio Nicanor, com a morte de Alexandre, entrou na posse do reino e logo deu mostras de seu mau gênio. Esquecendo-se de todas as obrigações que devia a Ptolomeu Filometer e da aliança que fizera com ele, pelo casamento com Cleópatra, tratou tão mal os seus soldados que eles se retiraram para Alexandria, detestando a sua ingratidão. Deixaram-lhe, porém, os elefantes. 513. Nesse mesmo tempo, Jônatas, sumo sacerdote, reuniu todas as suas forças na Judéia, para atacar a fortaleza de Jerusalém, onde havia uma guarnição de macedônios e para onde os judeus desertores da religião de seus antepassados se haviam retirado. A confiança na resistência da praça fez com que eles, no início, zombassem daquela empresa, e alguns desses judeus foram avisar Demetrio do assédio. Ele ficou tão encolerizado que partiu de Antioquia com o seu exército, para marchar contra Jônatas. Quando chegou a Ptolemaida, escreveu-lhe dizendo que viesse encontrá-lo, e jônatas foi, sem abandonar o cerco. Fez-se acompanhar por alguns sacerdotes e anciãos do povo, e levou-lhe ouro, prata, ricos vestess e grande quantidade de outros presentes, que aplacaram a sua cólera. Ele o recebeu com grande honra, confirmou-o no sumo sacerdócio, como os reis seus predecessores haviam feito, e não somente deixou de prestar fé às acusações dos judeus trânsfugas como ainda decretou que toda a Judéia e as três províncias que a ela estavam unidas, a saber, Samaria, Jope e a Caliléia, pagariam doravante apenas trezentos talentos de tributo, no total, como se vê pelas cartas que ele fez expedir, nestes termos: "O rei Demetrio a Jônatas, seu irmão e à nação dos judeus, saudação. Mandamo-vos cópia da carta que escrevemos a Lastenes, nosso parente, a fim de que vejais o que ela contém: O rei Demetrio, a Lastenes, nosso pai, saudação. Querendo mostrar aos judeus o quanto estamos satisfeitos pela maneira como correspondem por suas ações ao afeto que lhes dedicamos e dar-lhes provas disso, ordenamos que os três bailiados de Aferema, Lida e Ramate, com os seus territórios, sejam tirados de Samaria e anexados à Judéia e lhes restituímos tudo o que os reis nossos predecessores estavam habituados a receber dos que iam oferecer sacrifícios em Jerusalém, bem como os outros tributos que deles tiravam, provenientes dos frutos da terra e das árvores. Nós os dispensamos, além disso, do imposto do direito de gabela e dos presentes que davam aos reis, sem que nada mais, por esse motivo, se exija deles para o futuro. Dai, pois, ordem para que o nosso desejo seja satisfeito e enviai uma cópia desta carta a Jônatas, para ser conservada num lugar muito digno do santo Templo". 514. Demétrio, vendo-se em paz, julgou nada mais ter a recear. Licenciou as suas tropas, das quais antes havia diminuído o soldo, e conservou somente os estrangeiros por ele trazidos de Creta e das outras ilhas. Assim, ele atraiu a ira de seus próprios soldados, os quais os reis predecessores não trataram do mesmo modo, pagando-os mesmo em tempo de paz, a fim de que eles estivessem sempre prontos para servi-los com afeto quando deles tivessem necessidade na guerra. CAPÍTULO 9 TRÍFON TENTA RESTABELECER ANTÍOCO, FILHO DE ALEXANDRE BALAS, NO REINO DA SÍRIA.JÔNATAS CERCA A FORTALEZA DE JERUSALÉM E MANDA SOCORRO AO REI DEMÉTRIO NICANOR, QUE POR ESSE MEIO REPELE OS HABITANTES DE ANTIOQUIA, QUE O HAVIAM SITIADO EM SEU PALÁCIO. SUA INGRATIDÃO PARA COM JÔNATAS. É VENCIDO PELO JOVEM ANTÍOCO E FOGE PARA A CILÍCIA. GRANDES HONRAS PRESTADAS POR ANTÍOCO A JÔNATAS, QUE O AJUDA CONTRA DEMÉTRIO. GLORIOSA VITÓRIA OBTIDA POR JÔNATAS SOBRE O EXÉRCITO DE DEMÉTRIO. JÔNATAS RENOVA A ALIANÇA COM OS ROMANOS E OS LACEDEMÔNIOS. SEITAS DOS FARISEUS, SADUCEUS E DOS ESSÊNIOS. OUTRO EXÉRCITO DE DEMÉTRIO NÃO OUSA COMBATER JÔNATAS. ESTE TENTA FORTIFICAR JERUSALÉM. DEMÉTRIO É VENCIDO E APRISIONADO POR ÁRSACES, REI DOS PARTOS. 515. Quando Diodoro, cognominado Trífon — que era de Apaméia e fora um dos chefes e comandantes do exército de Alexandre Balas — viu que os soldados de Demétrio Nicanor estavam indispostos contra ele, foi procurar um árabe de nome Male, que educava Antíoco, filho de Alexandre. Contou-lhe do descontentamento dos soldados de Demétrio e rogou que lhe entregasse o jovem príncipe, pois queria colocá-lo no trono de seu pai. O árabe, que não podia prestar fé a essas palavras, recusou-o de início, mas Trífon insistiu tanto que por fim ele se deixou vencer pelos pedidos. 516. jônatas, sumo sacerdote, persistia no seu intento de expulsar os macedônios da fortaleza de Jerusalém, os quais ainda faziam parte da guarni-ção, bem como aqueles judeus ímpios que nela se haviam refugiado. Ele queria também libertar todas as outras fortalezas da Judéia das guarnições que as ocupavam e então enviou embaixadores com presentes ao rei Demétrio para pedir-lhe permissão. O príncipe não somente consentiu como disse que faria ainda mais, tão logo se tivesse livrado da guerra que estava empreendendo e que o impedia de executar imediatamente o seu desejo. Enquanto isso, rogava a Jônatas que lhe mandasse auxílio, porque os seus soldados o haviam abandonado e passado para o lado dos inimigos. Jônatas enviou três mil soldados escolhidos. Quando os antioquenses, que esperavam apenas o momento de matar Demétrio pelos grandes males que lhes causara e pelos ultrajes que haviam recebido do rei seu pai, viram o auxílio que ele recebia de Jônatas, o receio de que ele reunisse forças ainda maiores, caso não se antecipassem, levou-os a tomar as armas. Eles o sitiaram em seu palácio e apoderaram-se das ruas e avenidas, para impedi-lo de escapar. Demétrio tentou fugir com os soldados estrangeiros e com os judeus auxiliares, mas depois de um grande combate foi obrigado, devido ao número dos oponentes, a voltar para o palácio. Então os judeus, servindo-se da vantagem que tinham num lugar assaz elevado, lançaram-lhes dardos do alto das ameias, que os obrigaram a abandonar as casas vizinhas e incendiá-las, o que destruiu imediatamente toda a cidade, pois as casas estavam muito próximas umas das outras e eram feitas de madeira. Os habitantes, não podendo resistir à violência do fogo, pensaram somente em salvar as suas mulheres e filhos. O rei, enquanto os judeus os perseguiam por um lado, atacou-os pelo outro, por diversos lugares. Vários foram mortos, e o resto foi obrigado a deixar as armas e se entregar. Ele perdoou-lhes a revolta, acalmou a sedição, deu aos judeus os despojos que haviam apanhado e enviou-os a Jerusalém, a Jônatas, com grandes elogios, dizendo que lhe devia a vitória alcançada sobre os seus súditos. Mas bem depressa mostrou também a sua ingratidão, pois, não se contentando em não cumprir o que prometera a Jônatas, ainda ameaçou fazer-lhe guerra, caso os judeus não lhe pagassem o mesmo tributo que pagavam ao seus predecessores Essas ameaças teriam sido seguidas por fatos se Trífon não o tivesse obrigado a voltar as armas contra ele. Vindo da Arábia para a Síria com o jovem Antíoco, filho de Alexandre Balas, que fizera coroar rei, e com os soldados de Demetrio que não haviam mais recebido o seu soldo, os quais agora estavam unidos a ele, deu combate a Demetrio. Venceu-o, tomou-lhe os elefantes, apoderou-se de Antioquia e obrigou-o a fugir para a Cilícia. 517. O jovem Antioco enviou depois embaixadores a Jônatas, com cartas pelas quais o chamava de amigo e aliado, confirmando-o no cargo de sumo sacerdote e concedendo-lhe as quatro províncias que haviam sido unidas à judéia. Mandou-lhe também vasos de ouro, uma veste de púrpura, um broche de ouro com a autorização de usá-lo e afirmou que o considerava um de seus maiores amigos. Além disso, constituiu a Simão, irmão de Jônatas, general das tropas que ele mantinha desde Tiro até o Egito. Jônatas, cumulado de tantos favores e honras, enviou, por seu lado, embaixadores ao jovem príncipe e a Trífon para afirmar que jamais lhes faltaria à amizade e à fidelidade, e que se unia a eles para combater Demetrio, de quem tinha muitos motivos para se lamentar, pois este lhe pagara com ingratidão os auxílios dele recebidos. Antioco permitiu-lhe em seguida recrutar soldados na Síria e na Fenícia, a fim de marchar contra as tropas de Demetrio, e ele foi logo às cidades vizinhas. Estas o receberam muito bem, mas não lhe deram soldados. Ele partiu para a Asquelom, cujos habitantes compareceram à sua presença com muitos presentes. Ele os exortou, como aos das outras cidades e da Baixa Síria, a abraçar, como ele havia feito, o partido de Antioco e abandonar o de Demetrio, para se vingarem das injúrias que dele tinham recebido. As razões de que se serviu foram tão poderosas que eles se deixaram persuadir e prometeram-lhe auxílio. Dali ele partiu para Gaza, a fim de ganhar também os seus habitantes em favor de Antioco. Estes, porém, em vez de fazer o que ele desejava, fecharam-lhe as portas. Para vingar-se, ele devastou os campos, sitiou a cidade e, depois de deixar parte de suas tropas para continuar o assédio, foi com o resto incendiar as aldeias vizinhas. Os habitantes de Gaza, não podendo numa alternativa tão difícil esperar socorro de Demetrio, pois, ainda que ele estivesse em condições de atendê-los, a distância faria com que não o pudesse enviar imediatamente, foram então obrigados a ceder. Assim, enviaram embaixadores a Jônatas, contraíram aliança com ele e obrigaram-se a unir as suas armas naquela guerra. Esse exemplo nos faz ver que a maior parte dos homens não sabe o que lhes é útil, a não ser pela experiência dos males que sofrem, quando a prudência os deveria levar a preveni-los e a fazer voluntariamente o que não poderiam deixar de fazer, jônatas, depois de tomar dentre eles alguns reféns, os quais mandou a Jerusalém, visitou toda a província até Damasco. 518. Nesse entretempo, um grande exército reunido por Demétrio veio acampar próximo da cidade de Cedasa,* junto ao território de Tiro e da Galiléia, a fim de obrigar jônatas a deixar a Síria para socorrer a Galiléia, que era de seu governo. Com efeito, ele avançou imediatamente para aquele lado, mas deixou Simão, seu irmão, na Judéia. Este, com as tropas que pôde reunir, sitiou Bete-Zur, que é a praça mais forte da província e o lugar onde, como dissemos, Demétrio conservava uma guar-nição. Ele atacou com tanto vigor, fazendo funcionar tantas máquinas, que os sitiados, temendo ser vencidos e perder a vida, capitularam e se retiraram para Demétrio, depois de entregar a Simão aquela praça, e ele colocou ali a sua guarnição. ____________________ * Ou Quedes. 519. jônatas, que estava na Galiléia, deixou as margens do lago de Genezaré e avançou para Azoto, onde julgava não encontrar os inimigos. Estes, porém, que desde o dia precedente tinham notícia de sua marcha, puseram soldados de emboscada no monte e avançaram contra ele na planície. Logo que os viu marchando, dispôs os seus homens em ordem de batalha, para iniciar o combate. Mas quando os judeus viram surgir os que estavam de emboscada, tiveram tanto medo de ser envolvidos ao mesmo tempo pela vanguarda e pela retaguarda que fugiram todos, exceto Matatias, filho de Absalão, Judas, filho de Capso, generais de Jônatas, e cinqüenta outros dos mais valentes, os quais, levados pelo desespero, atacaram os inimigos com tanta fúria e tão prodigioso valor que os assustaram. Os inimigos fugiram, e tão inesperado êxito fez voltar do susto os que haviam abandonado Jônatas. Ele os perseguiu até o seu acampamento, próximo de Cedasa, e dois mil deles foram mortos. Jônatas, após obter, com o auxílio de Deus, tão gloriosa vitória, voltou a Jerusalém e enviou embaixadores a Roma para renovar a aliança com o povo romano, dando-lhes ainda o encargo de passar, no regresso, pela Lacedemônia e renovar também a aliança com eles e a recordação de sua consangüinidade. Esses embaixadores foram tão bem recebidos em Roma que não somente obtiveram tudo o que desejavam, mas também cartas dirigidas aos reis da Ásia, da Europa e aos governadores de todas as cidades, a fim de poderem voltar com toda segurança. Quanto à Lacedemônia, a carta que lá apresentaram estava assim escrita: "jônatas, sumo sacerdote, o senado e o povo judeu, aos éforos, ao senado e ao povo da Lacedemônia, nossos irmãos, saudação. Há alguns anos, Demoteles entregou a Onias, então sumo sacerdote de nossa nação, uma carta de Ario, vosso rei, da qual vos mandamos uma cópia, pela qual vereis que nela se fazia menção do parentesco que há entre nós. Recebemos com alegria essa carta e a manifestação a Ario e a Demoteles, embora tal parentesco não nos fosse desconhecido, porque os nossos santos livros o dizem. O que nos impediu de vos falar disso foi que julgamos não dever desejar a vantagem de vos anteceder. E, desde o dia em que renovamos a nossa aliança, não deixamos de rogar a Deus, em nossos sacrifícios e nas festas solenes, que vos conserve e vos faça vitoriosos sobre os vossos inimigos. Embora a ambição desmesurada de nossos vizinhos nos tenha obrigado a sustentar grandes guerras, não quisemos depender de nossos aliados. E, após triunfarmos honrosamente em todas elas, enviamos aos romanos dois embaixadores, Numênio, filho de Antímaco, e Antípatro, filho de Jasão, ilustres senadores, e lhes ordenamos que vos entregassem esta carta, a fim de renovarmos a amizade e as boas relações entre nós. Dar-nos-ei um grande prazer fazendo-nos saber em que vos poderemos ser úteis, não havendo serviços que não estejamos prontos a vos prestar". Os lacedemônios receberam muito bem os embaixadores e deram-lhes uma demonstração pública da renovação de sua amizade e aliança. 520. Havia então entre nós três seitas, divergentes nas questões relativas às ações humanas. A primeira era a dos fariseus; a segunda, a dos saduceus; a terceira, a dos essênios. Os fariseus atribuem certas coisas ao destino, porém nem todas, e crêem que as outras dependem de nossa liberdade, de sorte que podemos realizá-las ou não. Os essênios afirmam que tudo geralmente depende do destino e que nada nos acontece que ele não determine. Os saduceus, ao contrário, negam absolutamente o poder do destino, dizendo que ele é uma quimera e que as nossas ações dependem tão absolutamente de nós que somos os únicos autores de todos os bens e males que nos acontecem, conforme seguimos um bom ou um mau conselho. Mas tratei particularmente dessa matéria no segundo livro das Guerras dos (udeus. 521. Os chefes do exército de Demétrio, querendo reparar a perda que haviam sofrido, reuniram grandes forças, maiores que as anteriores, para marchar contra Jônatas. Logo que ele soube disso, veio contra eles ao campo de Hamate, para impedir que entrassem na Judéia. Acampou a cinqüenta estádios deles e enviou exploradores até o seu acampamento. Depois de saber, pelas informações deles e de alguns prisioneiros, que eles os queriam surpreender, tomou providências imediatamente: colocou guardas e sentinelas avançadas e conservou o exército em armas durante toda a noite. Quando os inimigos, que não se julgavam bastante fortes para combatê-lo em campo raso, viram que o seu intento fora descoberto, levantaram acampamento e acenderam uma grande quantidade de fogueiras, para cobrir a sua retirada. Jônatas partiu ao alvorecer, para atacá-los em seu acampamento, e, vendo que estava abandonado, perseguiu-os, mas em vão: eles já haviam passado o rio de Eleutério e estavam salvos. Voltou então à Arábia, devastou o país dos nabateenses, conquistou grandes despojos e levou uma grande quantidade de prisioneiros, os quais vendeu em Damasco. 522. Nesse mesmo tempo, Simão, irmão de jônatas, percorreu toda a Judéia e a Palestina até Asquelom e colocou guarnições em todas as praças-fortes onde julgou conveniente. Depois de assim haver assegurado e fortificado o país, marchou para Jope, tomou-a e lá deixou uma forte guarnição, porque soubera que os seus habitantes queriam entregar a cidade a Demétrio. 523. Os dois irmãos, depois de tantos feitos assinalados, voltaram a Jerusalém. Jônatas reuniu o povo e aconselhou-o a refazer os muros da cidade, a reconstruir os do Templo, que o rodeavam, acrescentando-lhes grandes torres, para torná-los ainda mais fortes, e também a fazer outro, no meio da cidade, a fim de cortar a entrada da guarnição da fortaleza e impedir-lhe assim o fornecimento de viveres. A isso ele acrescentou que era de opinião que se fortificasse e guarnecesse, mais do que já estavam, as praças mais fortes e importantes da província. Todas essas propostas foram aprovadas. Ele encarregou-se de fortificar a cidade, e Simão, seu irmão, de providenciar a fortificação das outras. 524. O rei Demétrio, depois de passar o rio, foi para a Mesopotâmia, para dela se apoderar, e à Babilônia, para lá estabelecer a capital de seu império depois que as outras províncias lhe estivessem também sujeitas, pois os gregos e os macedônios, que as habitavam, enviavam-lhe continuamente embaixadores para garantir que se submeteriam a ele e o serviriam na guerra que fizesse a Arsaces, rei dos partos. Demétrio, iludido com tais esperanças, apressou-se em marchar para aquele país, julgando que se vencesse os partos seria fácil expulsar Trífon da Síria. Os povos dessas províncias receberam-no com alegria, e ele, depois de reunir um grande exército, fez guerra a Ársaces, mas este o derrotou completamente, e Demétrio caiu vivo em suas mãos, como dissemos alhures. CAPÍTULO 10 TRÍFON, VENDO DEMÉTRIO DERROTADO, PENSA EM SE DESFAZER DE ANTÍOCO, PARA REINAR EM SEU LUGAR, E EM ELIMINAR JÔNATAS. ELE ENGANA JÔNATAS, MANDA ESTRANGULAR MIL DE SEUS HOMENS EM PTOLEMAIDA E O CONSERVA PRISIONEIRO. 525. 1 Macabeus 13. Quando Trífon viu que Demétrio estava completamente perdido, esqueceu a fidelidade que devia a Antíoco e só pensou matá-lo, para reinar em seu lugar. Como não via outro obstáculo senão a amizade entre jônatas e Antíoco, resolveu começar por se desfazer deste e depois eliminar também o príncipe judeu. Com essa intenção, foi de Antioquia a Bete-Seã, que os gregos chamam Citópolis, e viu que Jônatas reunira quarenta mil homens escolhidos, para opor resistência a quem o quisesse atacar. Trífon, não vendo outro meio de alcançar o seu objetivo, recorreu à astú-cia. Mandou presentes a jônatas e cumulou-o de gentilezas. Para desfazer qualquer desconfiança e eliminá-lo quando fosse possível, determinou que os oficiais de suas tropas obedecessem a Jônatas como a ele mesmo. Disse-lhes depois que, como tudo estava em paz e era inútil aquele grande número de soldados, ele o aconselhava a dispensá-los e a conservar somente uma pequena parte deles, para acompanhá-lo até Ptolemaida, que ele lhe queria entregar, bem como as outras praças-fortes do país, pois para esse fim viera procurá-lo. Jônatas, pensando que Trífon lhe falava com sinceridade, dispensou todas as suas tropas, exceto três mil homens, dos quais deixou dois mil na Galiléia, e acompanhou Trífon a Ptolemaida com os mil que restavam. Quando chegaram à cidade, os habitantes, segundo ordem que haviam recebido de Trífon, fecharam as portas e estrangularam todos os soldados, exceto Jônatas, que ficou prisioneiro. Trífon enviou ao mesmo tempo uma parte de seu exército à Galiléia, a fim de eliminar também os dois mil soldados que lá haviam ficado. Estes, porém, sabendo o que havia acontecido a Jônatas, pelos boatos que se haviam espalhado, tomaram as armas e retiraram-se sem perda alguma, porque as tropas de Trífon os viram tão decididos a vender caro a própria vida que não ousaram atacá-los e retornaram sem lhes causar nenhum mal. CAPÍTULO 11 OS JUDEUS ESCOLHEM SIMÃO MACABEU PARA SEU GENERAL, NO LUGAR DE JÔNATAS, SEU IRMÃO, PRISIONEIRO DE TRÍFON, O QUAL, APÓS RECEBER CEM TALENTOS E DOIS DE SEUS FILHOS COMO REFÉNS PARA LIBERTÁ-LO, FALTA À PALAVRA E O MANDA MATAR. SIMÃO ERGUE-LHE UM SOBERBO TÚMULO E É CONSTITUÍDO PRÍNCIPE E SUMO SACERDOTE DOS JUDEUS. SEU ADMIRÁVEL PROCEDER. ELE LIBERTA A NAÇÃO DA ESCRAVIDÃO DOS MACEDÔNIOS. TOMA DE ASSALTO A FORTALEZA DE FERUSALÉM, ARRASANDO-A, BEM COMO AO MONTE SOBRE O QUAL ESTAVA CONSTRUÍDA. 526. A notícia do que havia acontecido a Jônatas encheu de dor os habitantes de Jerusalém, tanto pelo afeto que lhe dedicavam quanto pelo temor de que as nações vizinhas, as quais eram contidas apenas pelo medo que tinham dele, vendo-os privados de seu auxílio e de tão sábio e generoso chefe, lhes viessem mover guerra no futuro e os reduzissem aos extremos. Ao que parece, eles não se enganavam, pois esses povos, mal souberam da notícia da morte de Jônatas, que se espalhara, declararam-lhes guerra. Trífon, por sua vez, reuniu um grande exército para também entrar na Judéia. Simão, para dar coragem aos judeus, que via tão assustados, mandou reunir o povo no Templo e falou: "Não ignorais, meus irmãos, a quantos e terríveis momentos meu pai, meus irmãos e eu nos vimos expostos para reconquistar e conservar a nossa liberdade. Assim, tendo na minha família exemplos que me obrigam a desprezar a morte para manter as leis e a religião de meus antepassados, perigo algum me impedirá de preferir a minha honra e o meu dever à minha vida. E agora, que já não vos falta um chefe zeloso de vosso bem e que nada há de difícil que ele não esteja pronto a empreender para consegui-lo, segui-me corajosamente aonde eu vos levar. Como não tenho maiores méritos que meus irmãos, não devo poupar a minha vida, assim como eles não pouparam a sua. Eu não poderia, sem faltar à coragem, deixar de seguir-lhes as pegadas, mas teria a glória de imitá-los, morrendo feliz pela defesa de nossa pátria, de nossas leis e de nossa religião. Espero que se conheça, pelos meus atos, que não sou um indigno irmão daqueles ilustres e generosos chefes, cuja feliz e sábia orientação nos levou a tantas e tão grandes vitórias. Vingar-vos-ei, com o auxílio de Deus, de vossos inimigos, defender-vos-ei, bem como às vossas mulheres e filhos, dos ultrajes que vos quiserem fazer e impedirei que a sua insolência venha a nos profanar o Templo, pois esses idolatras vos desprezam e vos atacam com tanta ousadia apenas porque imaginam que não tendes mais um chefe". O povo, animado por essas palavras, retomou o ânimo e alimentou melhores esperanças. Clamaram todos a uma voz que o escolhiam para ocupar o lugar de judas e de Jônatas e que lhe obedeceriam com prazer. O novo general reuniu imediatamente todos os que ele julgava aptos para a guerra e não tardou em rodear Jerusalém com muralhas e com altas e fortes torres. Ele enviou o seu grande amigo Jônatas, filho de Absalão, a Jope, com muitas tropas e com ordem de expulsar de lá todos os seus habitantes, para que não entregassem a cidade a Trífon, e ficou em Jerusalém. 527. Trífon partiu de Ptolemaida com um grande exército, para entrar na Judéia, e levou consigo Jônatas, seu prisioneiro. Simão, com as forças de que dispunha, foi contra ele, até a aldeia de Adida, situada sobre um monte, abaixo do qual estão os campos da Judéia. Logo que Trífon soube que Simão comandava o exército dos judeus, enviou alguns homens a ele, para enganá-lo também. Propôs-lhe que, se quisesse libertar o irmão, mandasse cem talentos de prata e também dois dos filhos de Jônatas, como reféns e como prova da palavra, que o pai deles lhe daria, de não afastar os judeus da sujeição ao rei. Acrescentou que conservaria Jônatas prisioneiro até que ele pagasse também ao príncipe uma soma que lhe devia. Simão facilmente percebeu que a proposta era um ardil e que, ainda que lhe desse o que pedia e entregasse os filhos de seu irmão, ele não o libertaria. No entanto, temendo que o acusassem de sua morte, caso recusasse pagar, reuniu todo o exército e contou-lhes as exigências de Trífon, dizendo que não duvidava de que ele os queria enganar mais uma vez. Todavia era de opinião que se mandasse o dinheiro e esses dois filhos, antes de ser considerado suspeito de não ter querido salvar a vida de seu irmão. E assim, mandaram o dinheiro e os dois filhos. E Trífon faltou à palavra: não libertou Jônatas e ainda devastou os campos com o seu exército. Dirigiu-se depois para a Iduméia e chegou em Adora, que é uma cidade desse país, com intenção de avançar até Jerusalém. Simão seguiu-o de perto com as suas tropas e acampou diante dele. 528. A guarnição da fortaleza de Jerusalém, nesse meio tempo, rogava com insistência a Trífon que viesse em seu auxílio e enviasse víveres imediatamente. Ele mandou a cavalaria, que deveria chegar naquela mesma noite, mas isso não foi possível por causa da neve que caiu e cobriu as estradas, de modo que os homens e os animais não puderam passar. 529. Trífon foi à Baixa Síria e, atravessando o país de Galaade, mandou matar e enterrar Jônatas. Logo depois, voltou a Antioquia. Simão transportou os despo-jos do irmão da cidade de Basca a Modim, onde o sepultou. O povo sofreu imensamente a sua perda, e Simão mandou construir, tanto para seu pai quanto para sua mãe e seus irmãos, um soberbo túmulo de mármore branco e polido, tão alto que podia ser visto de longe. Ao redor dele, havia arcos em forma de pórtico, e cada uma das suas colunas era feita de um único bloco de pedra. Para indicar as sete pessoas da família, ele colocou sete pirâmides de grande altura e de maravilhosa beleza. Essa obra tão magnífica pode ser vista ainda hoje. 530. Com isso, pode-se imaginar o amor e a ternura que Simão nutria pelos parentes, particularmente por seu irmão Jônatas, que morreu quatro anos depois de ter sido elevado à honra e à dignidade de príncipe de sua nação e sumo sacerdote. O povo escolheu Simão de comum acordo para substituí-lo. Desde o primeiro ano, quando foi constituído nesses dois elevados cargos, ele libertou os judeus da escravidão dos macedônios, aos quais não pagavam mais os tributos, o que aconteceu cento e setenta anos depois que Seleuco, cognominado Nicanor, se apoderou da Síria. Toda a nossa nação apreciou e admirou tanto a virtude de Simão, que não somente nos atos particulares, mas também nos públicos, se dizia: "Feito no ano tal do governo de Simão, príncipe dos judeus, ao qual toda a sua nação tanto deve". Pois eles desfrutaram durante o seu governo toda espécie de prosperidade e obtiveram diversas vitórias sobre os povos vizinhos, que lhes eram contrários. Essa grande personagem saqueou as cidades de Cazara, Jope e de Jamnia, tomou de assalto a fortaleza de Jerusalém, que arrasou até os alicerces, para impedir que os inimigos se pudessem servir dela para fazer ainda algum mal ao povo judeu. Mandou também arrasar o monte sobre o qual estava situada, a fim de que somente o Templo estivesse em lugar elevado. Para realizar tão grande obra, mandou reunir todo o povo e falou-lhe com tanta energia dos males que eles haviam sofrido das guarnições daquelas fortalezas e dos que poderiam ainda sofrer, se algum príncipe estrangeiro a reconstruísse, que todos resolveram iniciar esse tão grande trabalho. Empregaram nessa obra três anos, sem parar, nem de dia nem de noite, aplainaram todo o monte, e nada mais ficou de elevado ao redor do Templo. CAPÍTULO 12 TRÍFON MATA ANTIOCO, FILHO DE ALEXANDRE BALAS, E É RECONHECIDO COMO REI. SEUS VÍCIOS TORNAM-NO TÃO ODIOSO AOS SOLDADOS QUE ELES SE OFERECEM A CLEÓPATRA, VIÚVA DE DEMÉTRIO. ELA DESPOSA E FAZ COROAR REI ANTIOCO SÓTER, IRMÃO DE DEMÉTRIO. TRÍFON É VENCIDO POR ESTE E FOGE PARA ADORA E DE LÁ A APAMÉIA, ONDE ÉPRESO E MORTO. ANTIOCO CONCEBE UMA GRANDE AMIZADE POR SIMÃO, SUMO SACERDOTE. 531. 7 Macabeus 15. Pouco tempo depois que o rei Demétrio Nicanor foi aprisionado pelos partos, Trífon, secretamente, mandou matar Antioco, filho do rei Alexandre Balas, cognominado Deus, do qual empreendia a educação havia quatro anos. Fez em seguida correr a notícia de que ele se matara, sem querer, nos exercícios de costume, e, por meio de seus amigos, pediu aos soldados que o escolhessem e o constituíssem rei, prometendo-lhes muito dinheiro e dizendo que, se Antioco, irmão de Demétrio, viesse a reinar, ele os castigaria severamente, por causa da revolta. Essas esperanças e razões persuadiram-nos, e assim, reconheceram-no como rei. Quando ele se viu elevado a essa suprema dignidade, todavia, não se preocupou mais em dissimular as suas más inclinações, as quais ele procurara tanto esconder enquanto simples cidadão, a fim de conquistar as boas graças de todos. Mostrou que era realmente o que o seu nome significava, isto é, "voluptuoso" e dado a toda sorte de vícios. Essa mudança de proceder não foi pouco vantajosa a seus inimigos, pois os seus soldados sentiram tanto ódio contra ele que o abandonaram e foram se oferecer à rainha Cleópatra, viúva de Demétrio, que se havia retirado a Selêucia com os filhos. Quando a princesa se viu fortalecida com essas tropas, mandou chamar Antioco, cognominado Sóter, isto é, "religioso", irmão de Demétrio, o qual, com medo de Trífon, andava errante de cidade em cidade. Propôs desposá-lo e pôr-lhe a coroa sobre a cabeça. Diz-se que ela foi levada a isso por conselho de amigos e também pelo temor de que os habitantes de Selêucia abrissem as portas a Trífon. Antioco veio imediatamente encontrá-la. O número de suas tropas crescia cada vez mais, e assim ele marchou contra Trífon, combateu-o, venceu-o e o obrigou a abandonar a Síria. Ele fugiu para Adora, que é uma praça da Fenícia, muito fortificada. Antioco lá o sitiou, enquanto mandava convidar Simão, sumo sacerdote, para fazerem uma aliança. Ele aceitou de muito boa vontade e o ajudou com víveres e dinheiro a continuar o cerco. Antíoco ficou tão grato que o considerou durante algum tempo um de seus maiores amigos. Trífon fugiu de Adora para Apaméia, onde foi aprisionado e morto, após reinar três anos. CAPÍTULO 13 INGRATIDÃO DE ANTÍOCO SÓTER PARA COM SIMÃO MACABEU. ELES TRAVAM UMA GUERRA. SIMÃO LEVA VANTAGEM E RENOVA A ALIANÇA COM OS ROMANOS. 532. Antíoco, que era naturalmente muito avarento, esqueceu-se bem depressa do auxílio que recebera de Simão, e enviou Cendebeu com o seu exército para agarrá-lo e devastar a Judéia. O sumo sacerdote ficou tão sentido com tal perfídia, que, embora fosse bastante idoso, mostrou nessa ocasião o vigor de um jovem. Mandou seus filhos com suas melhores tropas contra os inimigos, seguiu-os por outro caminho com o restante e colocou muitos soldados de emboscada em diversos lugares, nos montes. Isso deu ótimos resultados, tanto que ele não teve necessidade de travar uma batalha nessa guerra, na qual também sempre levou vantagem. E assim, passou o resto de sua vida em paz, após renovar a aliança com os romanos. CAPÍTULO 14 SIMÃO MACABEU, PRÍNCIPE DOS JUDEUS E SUMO SACERDOTE, É MORTO À TRAIÇÃO POR PTOLOMEU, SEU GENRO, QUE APRISIONA A VIÚVA E DOIS DE SEUS FILHOS. 533. 1 Macabeus 16. Esse grande homem, após comandar por oito anos os judeus, foi morto à traição num banquete por Ptolomeu, seu genro, que ao mesmo tempo aprisionou a viúva e dois de seus filhos e mandou matar o terceiro, de nome João, cognominado Hircano. Mas este foi avisado a tempo e fugiu para Jerusalém, confiando no afeto que o povo nutria por seu pai, ao qual era devedor de tantos benefícios, e ao ódio que tinham por Ptolomeu. Ao que parece, ele tinha razão, pois Ptolomeu quis entrar por outra porta, mas foi repelido pelo povo, que já havia recebido Hircano. CAPÍTULO 15 HIRCANO, FILHO DE SIMÃO, CERCA PTOLOMEU NO CASTELO DE DAGOM. O AMOR PELA MÃE E PELOS IRMÃOS, QUE PTOLOMEU AMEAÇA MATAR, IMPEDE-O DE TOMAR A PRAÇA. PTOLOMEU MATA-OS QUANDO ELE LEVANTA O CERCO. 1 534. 1 Macabeus 16. Ptolomeu, não havendo conseguido o que desejava, retirou-se para a fortaleza de Dagom, que está acima de Jerico. Hircano, após ser elevado ao cargo de sumo sacerdote, que seu pai deixara vago ao morrer, e depois de oferecer sacrifícios a Deus, perseguiu-o com um grande exército e o sitiou. Todavia, embora sendo mais forte que o seu inimigo em tudo o mais, deixou-se vencer pelo amor à mãe e aos irmãos, pois Ptolomeu levou-os à muralha e os mandou açoitar à vista de todos, com a ameaça de os lançar abaixo se ele não levantasse o cerco. Hircano ficou imensamente aflito, e o desejo de poupar sangue e tormentos a pessoas tão queridas enfraqueceu sua coragem. Sua mãe, ao contrário, fazia-lhe sinais com a mão para que continuasse o cerco com maior coragem e exortava-o a não se deixar vencer pela fraqueza, mas seguir o movimento de sua justa cólera, a fim de vingá-los daquele detestável inimigo e fazê-lo sofrer o merecido castigo pela sua horrível crueldade. Quanto a ela, morreria com prazer em meio a tormentos, contanto que um homem tão mau recebesse um castigo proporcional aos seus crimes. Essas palavras animaram Hircano a novos esforços para tomar o castelo. Mas, quando via que se descarregavam novos golpes sobre sua mãe, o ardor arrefecia, e a cólera cedia ao seu extremo afeto por ela. Assim, o cerco prolongou-se, e chegou o sétimo ano, que é um ano de descanso para os judeus, o qual veio a livrar Ptolomeu da vingança de Hircano. O traidor, livre do medo, matou a mãe e os dois irmãos de Hircano e fugiu para junto de Zemom, cognominado Cotilã, que havia usurpado o governo na cidade de Filadélfia. CAPÍTULO 16 O REI ANTÍOCO SÓTER SITIA HIRCANO NA FORTALEZA DE JERUSALÉM E EM SEGUIDA LEVANTA O CERCO, DEPOIS DE UM TRATADO. HIRCANO ACOMPANHA-O NUMA GUERRA CONTRA OS PARTOS, ONDE ANTÍOCO É MORTO, E DEMÉTRIO, SEU FILHO, QUE ÁRSACES, REI DOS PARTOS, HAVIA POSTO EM LIBERDADE, APODERA-SE DO REINO DA SÍRIA. 535. Antíoco Sóter, que conservava ainda ressentimento pelas vantagens que Simão, pai de Hircano, obtivera sobre ele, atacou a Judéia no quarto ano de seu reinado, que era o primeiro do principado de Hircano e a centésima septuagési-ma segunda Olimpíada. Após devastar os campos e obrigar Hircano a se retirar para Jerusalém, ele a sitiou, dividindo o exército em sete corpos, a fim de cercar toda a praça. Ficou algum tempo sem poder avançar, por causa das muralhas e do valor dos sitiados, e pela falta de água, que uma grande chuva remediou. Mandou depois construir, do lado do norte, que era de acesso mais fácil que o resto, cem torres de três andares, sobre as quais colocou muitos soldados a martelar constantemente as muralhas. A isso acrescentou uma dupla circunvalação, muito grande e larga, para tirar aos judeus toda espécie de comunicação de dentro para fora. Os sitiados, por seu lado, faziam muitas arremetidas, com grandes perdas para os que os cercavam, sempre que os encontravam desprevenidos. E, quando se viam em perigo, fugiam apressadamente para a cidade. Hircano, vendo que uma grande quantidade de pessoas ociosas ocupava a praça e consumia inutilmente boa parte dos víveres, obrigou-as a sair, conservando apenas os que, pela sua força e vigor, eram aptos para a guerra. Mas Antíoco os impediu de alcançar os campos, e assim eles ficaram errantes dentro do recinto dos muros da cidade, onde a fome assolava miseravelmente. A festa dos Tabernáculos chegou, e os sitiados, compadecidos da sorte de seus companheiros, fizeram-nos voltar para dentro da cidade. O sumo sacerdote Hircano rogou ao rei uma trégua de sete dias, para dar-lhes ocasião de celebrar aquela data, que era uma de suas grandes festas. O príncipe não somente consentiu, mas, levado por um sentimento de piedade, mandou-lhe liberalmente e com magnificência touros para sacrificar, os quais tinham os chifres dourados, e vasos de ouro e de prata cheios de toda espécie de perfumes preciosos. Isso foi recebido às portas e levado ao Templo. O rei mandou também viveres para os soldados, mostrando que não se parecia com Antioco Epifânio, o qual, após tomar cidade, mandara imolar porcos sobre o altar, poluindo o Templo com o sangue deles e violando as leis dos judeus, que por tal desprezo à sua religião conceberam um ódio irreconciliável contra ele. Esse outro Antioco, porém, foi cognominado Religioso por deliberação unânime, devido à sua extrema piedade. Hircano ficou tão comovido pela sua virtude e humanidade que enviou embaixadores a ele para pedir-lhe que permitisse aos judeus viver segundo as leis de seu país. O sábio príncipe rejeitou o conselho daqueles que lhe insinuavam o extermínio de nossa nação, cujos costumes e maneira de viver eram inteiramente diferentes dos de outros povos. Ele julgou, ao contrário, que a devia tratar com toda a bondade. Respondeu então aos embaixadores que concederia a paz, contanto que lhe entregassem as armas, cedessem os tributos de Jope e das outras cidades que estavam fora da Judéia e recebessem uma guarnição. Os judeus aceitaram as condições, exceto a guarnição, porque não queriam misturar-se com nações estrangeiras. E, para se isentarem disso, entregaram reféns e quinhentos talentos de prata, dos quais trezentos foram pagos em moedas, e o irmão de Hircano foi um dos reféns. Abateram-se em seguida as ameias das muralhas da cidade, e o cerco terminou. 536.Hircano mandou abrir o sepulcro de Davi, que fora o mais rico de todos os reis, e de lá se retiraram três mil talentos. O sumo sacerdote foi o primeiro de todos os judeus a manter soldados estrangeiros. Fez depois uma aliança com Antioco, recebeu-o na cidade com todo o seu exército e marchou com ele contra os partos. O historiador Nicolau de Damasco presta testemunho do que acabo de narrar, com estas palavras: "O rei Antioco, depois de ter feito erguer um arco de triunfo à beira do rei Lico, por causa da vitória que obtivera sobre Indato, general do exército dos partos, ficou dois dias, a rogo de Hircano, judeu, por causa de uma festa dessa nação, durante a qual as suas leis não lhes permitem pôr-se em campo". Nisso esse historiador diz a verdade, pois a festa de Pentecostes estava para chegar, depois do sábado, e então não nos é permitido iniciar qualquer caminhada. Antioco deu combate a Ársaces, rei dos partos, e foi vencido, perdendo a batalha e a vida. Demétrio, seu irmão, que Ársaces havia posto em liberdade assim que Antioco entrou em suas terras, apoderou-se do reino da Síria, como já dissemos em outro lugar. CAPÍTULO 17 HIRCANO, DEPOIS DA MORTE DO REIANTÍOCO, RETOMA VÁRIAS PRAÇAS NA SÍRIA E RENOVA A ALIANÇA COM OS ROMANOS. O REI DEMÉTRIO É VENCIDO POR ALEXANDRE ZEBIM, QUE ERA DA FAMÍLIA DO REI SELEUCO. PRESO EM TIRO, MORRE MISERAVELMENTE. ANTÍOCO DE CÍZICO, FILHO DE ANTÍOCO SÓTER,FAZ GUERRA A SEU IRMÃO ANTÍOCO GRIPO. HIRCANO DESFRUTA PAZ NA JUDÉIA. 537. Logo que Hircano soube da morte do rei Antíoco, marchou com o seu exército para as cidades da Síria, esperando encontrá-las desarmadas e sem soldados. Apoderou-se de Medeba, depois de um cerco de seis meses, tomou Samega, as aldeias vizinhas, Siquém e Gerizim. Subjugou também os chuteenses que moravam no templo construído à imitação do de Jerusalém com a permissão que Alexandre, o Grande, dera a Sambalate, governador de Samaria, em favor de Manasses, seu genro, irmão de Jado, sumo sacerdote, como dissemos há pouco. A destruição desse templo deu-se duzentos anos após ele ter sido edificado. 538. Hircano tomou ainda aos idumeus as cidades de Adora e Maressa e, depois de subjugar toda essa grande província, permitiu-lhes lá ficar, contanto que se fizessem circuncidar e adotassem a religião e as leis dos judeus. O temor de serem expulsos de seu país levou-os a aceitar essas condições, e desde então eles foram para sempre considerados judeus. 539. Hircano enviou em seguida embaixadores a Roma para renovar a aliança, e o senado, depois de ler as suas cartas, mostrou-se favorável. A ata foi redigida desta maneira: "No dia doze de fevereiro, o pretor Fânio, filho de Marco, fez reunir o senado no campo, na presença de Lúcio Maneio, filho de Lúcio Mentina, e de Caio Semprônio, filho de Caio Falerma, para deliberar a respeito do que Simão, filho de Ofiteu, Apolônio, filho de Alexandre, e Diodoro, filho de Jasão, embaixadores dos judeus, pessoas de virtude e de mérito, vinham pedir em nome de sua nação, isto é, a renovação da aliança com o povo romano; que, em conseqüência desse tratado, lhes sejam entregues as cidades de Jope, Gazara, as fontes e as outras cidades usurpadas pelo rei Antíoco com desprezo à determinação do senado; que se proíbam aos soldados dos reis passar às terras dos judeus e às de seus súditos; que tudo o que foi tentado na última guerra pelo mesmo Antíoco seja declarado nulo; e que o senado lhe envie embaixadores para obrigá-lo a entregar o que ele usurpou e a ressarcir os judeus dos prejuízos que causou ao seu país. Esses embaixadores também rogam que se lhes dêem cartas de recomendação endereçadas aos reis e aos povos livres, a fim de poderem voltar com toda segurança. Esse assunto foi posto à deliberação do senado, e este determinou que se renovasse o tratado de amizade e de aliança com esses embaixadores, homens de bem, enviados por um povo tão amigo dos romanos e tão fiel às suas promessas". Quanto ao que se referia às cartas, o senado respondeu que logo que tivesse resolvido alguns negócios urgentes procuraria, no futuro, fazer com que se impedisse qualquer mal aos judeus. Ordenou-se ao pretor Fânio que lhes entregasse determinada soma do dinheiro público, a fim de que pudessem mais comodamente regressar ao seu país, e cartas de recomendação para os lugares por onde deveriam passar, bem como o decreto do senado, para servir-lhes de garantia. 540. No entanto Demétrio desejava ardentemente fazer guerra a Hircano, mas não o pôde porque a sua maldade o tornava tão odioso aos sírios e aos seus próprios soldados que estes, não podendo mais tolerá-lo, mandaram pedir a Ptolomeu, cognominado Físcon, rei do Egito, que lhes enviasse alguém da família de Seleuco, para que o fizessem rei. Ele mandou-lhes Alexandre, cognominado Zebim, com um exército, e travaram batalha. Demétrio foi vencido e quis fugir para Ptolemaida, onde estava a rainha Cleópatra, sua mulher, mas ela fechou-lhe as portas. Ele foi para Tiro, onde caiu prisioneiro e morreu miseravelmente, depois de haver sofrido muito. 541. Alexandre Zebim, ao se tornar senhor do reino da Síria, fez aliança com o sumo sacerdote Hircano. Mas algum tempo depois foi vencido e morto numa batalha por Antíoco, cognominado Gripo, filho de Demétrio. Este, vendo-se de posse do reino da Síria, desejou muito fazer guerra aos judeus. Não ousou, porém, empreendê-la, por causa da notícia que recebeu de que seu irmão por parte de mãe, de nome Antíoco, como ele, cognominado Cizicênio, reunia em Cízico, onde fora educado, grandes forças para atacá-lo. Esse outro Antíoco era filho de Antíoco Sóter, o Religioso, o qual fora morto pelos partos. Cleópatra, como vimos, desposara os dois irmãos. Ele entrou na Síria, e se travaram vários combates. No entanto Hircano, que logo depois da morte de Antíoco Sóter sacudira o jugo dos macedônios e não lhes dava mais nenhum auxílio, nem como súdito nem como amigo, viu-se em franco progresso durante o reinado de Alexandre Zebim e ainda mais durante o dos dois irmãos, porque, vendo que ambos se enfraqueciam pelas contínuas guerras e que Antíoco não recebia auxílio do Egito, não lhes dava importância e usufruía pacificamente todos os tributos da Judéia, economizando assim muito dinheiro. CAPÍTULO 18 HIRCANO TOMA SAMARIA E A DESTRÓI INTEIRAMENTE. COMO ESSE SUMO SACERDOTE ERA FAVORECIDO POR DEUS. ELE DEIXA A SEITA DOS FARISEUS E ABRAÇA A DOS SADUCEUS. SUA MORTE. 542. Quando Hircano se viu tão poderoso, resolveu sitiar Samaria, então chamada Sebaste. Diremos a seu tempo de que modo ela foi depois reconstruída por Herodes. Nada se poderia acrescentar ao vigor com que ele apertava o cerco, tanto estava irritado contra os samaritanos por causa dos maus-tratos que haviam infligido aos mariceenses, os quais, embora súditos do rei da Síria, moravam na Judéia e eram aliados dos judeus. Depois de rodear a cidade como uma dupla circunvalação, cuja extensão era de oitenta estádios, entregou a direção dos trabalhos a Aristóbulo e a Antígono, seus filhos. Eles de tal modo assediaram a praça que os samaritanos ficaram reduzidos a uma grande carestia, de forma que, para sustentar a vida, tinham de recorrer a coisas que os homens não estão acostumados a comer. Em tal aperto, imploraram o socorro de Antíoco Cizicênio, e ele veio imediatamente, porém as tropas de Aristóbulo o venceram. Ele e o irmão perseguiram-no até Citópolis. Voltaram depois ao assédio e de tal modo oprimiram os samaritanos que eles se viram obrigados a pedir uma segunda vez o auxílio de Antíoco. Antíoco obteve de Ptolomeu, cognominado Latur, mais ou menos seis mil soldados e, contra a opinião e ordem de sua mãe, que o queria dissuadir desse intento, foi com esses egípcios devastar a região sujeita a Hircano sem, porém, ousar combater, pois se sentia muito fraco, mas se iludia com a esperança de que Hircano, para impedir o saque, abandonaria o assédio. No entanto, depois de perder vários dos seus, devido às emboscadas que os judeus lhe armaram, retirou-se para Trípoli e deixou o encargo da guerra a Calimandro e a Epícrates. O primeiro travou temerari-amente um combate e foi derrotado e morto. Epícrates deixou-se corromper pelo dinheiro e entregou Citópolis e outras praças aos judeus, sem prestar auxílio algum aos samaritanos. Assim, Hircano, após um ano de sítio, tomou a cidade e, não se contentando em se tornar senhor dela, destruiu-a completamente, fazendo passar por ela várias torrentes, de modo que ela perdeu todo e qualquer aspecto de cidade. Dizem-se coisas incríveis desse sumo sacerdote. Afirma-se que o próprio Deus lhe falava e que, estando sozinho no Templo, onde oferecia incenso, no mesmo dia em que os filhos se empenhavam numa batalha contra Antíoco Cizicênio, ele ouviu uma voz dizer-lhe que seria vitorioso. Saiu imediatamente para dar essa grande notícia ao povo, e os fatos provaram que aquela revelação era verdadeira. 543. Todavia, não era somente em Jerusalém, na Judéia, que os judeus estavam em franco progresso. Eles também eram poderosos em Alexandria, no Egito, e na ilha de Chipre. A rainha Cleopatra, estando incompatibilizada com Ptoiomeu Latur, deu o comando de seu exército a Chelcias e a Ananias, filho de Onias que, como vimos, construiu no território de Heliópolis um templo semelhante ao de Jerusalém. A princesa nada fazia sem o conselho deles, como refere Estrabão da Capadócia, com estas palavras: "Vários daqueles que tinham vindo conosco a Chipre e dos que para lá foram enviados depois pela rainha Cleopatra abandonaram o seu partido para seguir o de Ptoiomeu. Somente os judeus, que conservam o afeto a Onias, mantiveram-se fiéis à princesa, por causa da confiança que ela depositava em Chelcias e em Ananias, seus compatriotas". 544. A felicidade de Hircano despertou a inveja dos judeus, particularmente entre os que pertenciam à seita dos fariseus, de que falamos há pouco, os quais desfrutam tal prestígio perante o povo, que este acolhe os seus sentimentos, ainda que contrários aos dos reis e dos sumo sacerdotes. Hircano, que fora um discípulo muito amado por eles, deu-lhes um grande banquete. Quando viu que todos estavam bem alegres, disse-lhes que, conhecendo os sentimentos dele, sabiam que não tinha maior desejo que não fosse trilhar sempre o caminho da justiça e nada fazer que fosse desagradável a Deus, e por isso estavam obrigados a avisá-lo quando julgassem que ele falhava em alguma coisa, a fim de corrigi-lo. Os convidados, por esse motivo, elogiaram-no muito, e ele com isso mostrou-se bastante satisfeito. Porém um deles, de nome Eleazar, homem muito mau, tomou a palavra e disse: "Se desejais, como dizeis, que vos falemos com franqueza e segundo a verdade, dai-nos uma prova de vossa virtude, renunciando o sumo sacerdócio e contentando-vos em ser apenas príncipe do povo". Hircano perguntou-lhe o que o levava a fazer tal proposta, e ele respondeu: "É porque soubemos de nossos antepassados que a vossa mãe foi escrava durante o reinado do rei Antíoco Epifânio". Como esse boato era falso, Hircano ficou muito ofendido com tais palavras, e os outros fariseus mostraram-se também tão ultrajados quanto ele. Então Jônatas, o mais íntimo dos amigos de Hircano, que era da seita dos saduceus, inteiramente contrária à dos fariseus, disse-lhe saber que fora com o consentimento deles que Eleazar lhe fizera tão grande ultraje e que era fácil descobri-lo: perguntando-lhes como ele devia ser castigado. Hircano perguntou em seguida qual era a opinião deles, e, como não são muito severos no castigo dos crimes, responderam que ele merecia apenas a prisão e o azorrague, pois achavam que só a maledicência torna um homem réu de morte. Essa resposta deu a entender a Hircano que eles mesmos haviam induzido Eleazar àquela grande injúria. Ele ficou muito irritado, e Jônatas aumentou-lhe a irritação, de modo que ele não somente renunciou à seita dos fariseus, para abraçar a dos saduceus, como aboliu todos os seus estatutos e mandou castigar os que continuavam a observá-los. Isso tornou ele e os filhos odiosos a todo o povo, como veremos a seu tempo. Contentar-me-ei agora em dizer que os fariseus, que receberam essas constituições pela tradição de seus antepassados, as ensinaram ao povo. Os saduceus, porém, as rejeitavam, porque elas não estão compreendidas entre as leis dadas por Moisés, que estes afirmam serem as únicas que são obrigados a observar. Isso fez surgir entre eles uma grande divergência, que deu origem a diversos partidos. As pessoas de classe mais elevada abraçaram o dos saduceus, e o povo alinhou-se com os fariseus. Mas já falamos amplamente, no segundo livro da Guerra dos Judeus, sobre essas duas seitas e sobre uma terceira, que é a dos essênios. 545. Hircano, depois de pacificar todas as divergências e conservar o poder e o principado entre os judeus durante trinta e um anos, bem como o sumo sacerdócio, terminou honrosamente a sua vida. Ele deixou cinco filhos. Deus julgou-o digno de desfrutar três maravilhosas honras, a saber: o principado de sua nação, o sumo sacerdócio e o dom da profecia. Pois Deus mesmo se dignava falar-lhe e dava-lhe tal conhecimento das coisas futuras que ele predisse que seus filhos mais velhos não usufruiriam por muito tempo a autoridade que lhes deixava. Isso nos obriga a relatar o seu fim, para melhor conhecermos a graça que Deus lhe havia concedido de penetrar as coisas futuras. CAPÍTULO 19 ARISTÓBULO, FILHO MAIS VELHO DE HIRCANO, PRÍNCIPE DOS JUDEUS, FAZ-SE COROAR REI. ASSOCIA O SEU IRMÃO ANTTGONO À COROA, PÕE OS OUTROS NA PRISÃO E TAMBÉM A SUA MÃE, A QUAL FAZ MORRER DE FOME. DESCONFIA DE ANTTGONO, MANDA MATÁ-LO E MORRE DE TRISTEZA. 546. Aristóbulo, que era o mais velho dos filhos de Hircano, cognominado Filelés, isto é, "amigo dos gregos", mudou em reino, após a morte de seu pai, o principado dos judeus e foi assim o primeiro que se fez coroar rei. Isso aconteceu quatrocentos e oitenta e um anos depois da volta dos judeus libertados do cativeiro da Babilônia ao seu país. Como estimava muito Antígono, o segundo dos irmãos, chamou-o à coroa, associando-o no governo, e mandou colocar na prisão os outros três. Mandou também lá encerrar a própria mãe, porque ela também queria reinar e porque Hircano, ao morrer, colocara o governo nas mãos dela. Sua horrível crueldade chegou a tal excesso que ele a deixou morrer de fome na prisão. A esse crime acrescentou o de mandar matar o seu irmão Antígono, que ele demonstrara amar tanto. Calúnias foram a causa disso, embora de início ele as tenha rejeitado, em parte pelo afeto que lhe nutria e parte por estar persuadido de que haviam sido maliciosamente inventadas. Esse crime tão deplorável aconteceu assim: Estava ele enfermo, e Antígono voltou da guerra com grande aparato, quando se celebrava a festa dos Tabernáculos. Nessa ocasião, Antígono subiu ao Templo acompanhado de alguns homens armados, sem outra intenção além de fazer orações a Deus pela saúde do rei seu irmão. Maus Espíritos, porém, serviram-se dessa oportunidade, dos felizes resultados de Antígono na guerra e de ter ele se apresentado no Templo com tanto aparato, para colocar divisão entre os irmãos. Disseram maliciosamente a Aristóbulo que Antígono, tendo se apresentado naquela circunstância com tal aparato, durante uma festa tão solene, bem mostrava aspirar ao trono e que voltaria bem depressa com um grande número de soldados para matá-lo, porque estava persuadido de que, podendo tornar-se senhor de todo o reino, seria tolice contentar-se apenas com uma parte. Aristóbulo, que naquele instante estava numa torre (que depois foi chamada Antônia), não quis acreditar nessas palavras. No entanto, para garantir a própria vida sem condenar o irmão, mandou esconder alguns guardas num lugar escuro e subterrâneo, com ordem de não fazerem mal a Antígono se ele viesse desarmado e de matá-lo se viesse armado. Mandou em seguida dizer-lhe para que viesse falar-lhe sem armas. Porém, a rainha e os outros inimigos de Antígono apanharam esse emissário e obrigaram-no a dizer que o rei, tendo sabido que ele tinha armas muito belas, pedia-lhe que fosse como estava, para lhe dar o prazer de mostrá-las. O príncipe, que de nada desconfiava e se fiava no afeto do rei seu irmão, veio armado como estava. E, quando chegou à torre de Estratão, onde a passagem era escura, os guardas do rei o mataram. Essa morte tão trágica mostra de que é capaz a inveja e o que pode a calúnia: elas são tão fortes que abafam os sentimentos mais ternos de amizade natural. Não é, pois, de admirar que um certo Judas, essênio de nascimento, cujas predi-ções jamais deixavam de ser verdadeiras, tendo visto Antígono subir ao Templo, disse aos discípulos e amigos que costumavam segui-lo para verificarem os efeitos daquela ciência que o fazia penetrar o futuro e que ele quisera estar morto, porque a vida de Antígono faria conhecer a superfluidade de suas predições, pois afirmara que ele morreria naquele mesmo dia, na torre de Estratão, o que era impossível, porque ela distava de Jerusalém uns seiscentos estádios, e a maior parte do dia já se havia passado. Quando ele assim falava, vieram dizer-lhe que Antígono fora morto num lugar subterrâneo com esse mesmo nome, Estratão, que tem uma torre à beira mar (chamada depois Cesareia). Essa semelhança de nomes havia sido a causa de sua confusão e inquietação. 547. Aristóbulo não tardou a se arrepender de haver tirado a vida a seu irmão, o que aumentava ainda mais a sua enfermidade. Recriminava-se continuamente por ter cometido tão horrível crime, e seu sofrimento foi tanto que ele vomitou grande quantidade de sangue. Quando um de seus servidores levava esse sangue, aconteceu que ele o deixou cair, creio eu por permissão divina, e parte dele derramou-se no mesmo lugar onde ainda se viam vestígios do sangue de Antígono, irmão do rei. Os que o viram, julgando que ele o fazia de propósito, soltaram um grande grito, que foi ouvido pelo rei. Ele perguntou o motivo, mas ninguém ousava dizer-lhe. O rei, porém, insistia cada vez mais, porque os homens naturalmente ficam suspeitosos quando se lhes procuram ocultar alguma coisa e passam a imaginá-la muito pior do que é na realidade. Assim, Aristóbulo, por meio de ameaças, obrigou-os a dizer a verdade, a qual fez sobre o seu Espírito tão forte impressão que ele disse, após derramar muitas lágrimas, soltando um profundo suspiro: "Bem parece que não se pode ocultar aos olhos de Deus uma ação tão detestável, pois Ele descarregou depressa sobre mim a sua justa vingança. Até quando este meu miserável corpo reterá a minha alma criminosa? Não é preferível morrer de uma vez que derramar o meu sangue gota a gota, como um sacrifício de expiação à memória daqueles aos quais fiz tão cruelmente perder a vida?" Dizendo essas palavras, ele morreu, após reinar somente um ano. Seu país foi-lhe devedor de muitos benefícios, porque ele declarou guerra aos idumeus, conquistou grande parte do território deles, que anexou à Judéia, e obrigou os seus habitantes a receber a circuncisão e a viver segundo as nossas leis. Era de natureza doce e muito modesto, como refere Estrabão, com estas palavras, ante a relação de Timagenes: "Esse príncipe era muito afável, e os judeus não lhe são devedores de pouco, porque ele levou bem longe os limites de seu país, que aumentou com uma parte da Ituréia e uniu esse povo a eles pelo laço da circuncisão". CAPÍTULO 20 SALOMÉ, ANTES CHAMADA ALEXANDRA, VIÚVA DO REI ARISTÓBULO, TIRA JANEU, COGNOMINADO ALEXANDRE E IRMÃO DESSE PRÍNCIPE, DA PRISÃO E O CONSTITUI REI. ELE MANDA MATAR UM DE SEUS IRMÃOS E CERCA PTOLEMAIDA. O REI PTOLOMEU LATUR, QUE HAVIA SIDO EXPULSO DO EGITO PELA RAINHA CLEÓPATRA, SUA MÃE, VEM DE CHIPRE PARA SOCORRER PTOLEMAIDA, QUE SE RECUSA A RECEBÊ-LO. ALEXANDRE LEVANTA O CERCO E TRATA PUBLICAMENTE COM PTOLOMEU E SECRETAMENTE COM A RAINHA CLEÓPATRA. 548. Depois da morte do rei Aristóbulo, a rainha Salomé, sua esposa, que os gregos chamam Alexandra, pôs em liberdade os irmãos desse príncipe, que ele mantinha na prisão, como vimos, e fez rei Janeu, antes chamado Alexandre, que era o mais velho e o mais moderado de todos. Ele havia sido tão infeliz que Hircano, seu pai, sentiu aversão por ele já logo após o nascimento. Esse sentimento era tão forte que até morrer Hircano jamais consentiu que ele comparecesse à sua presença. Penso dever dizer a causa disso. Hircano, que amava muito Aristóbulo e Antígono, os dois mais velhos de seus filhos, perguntou a Deus, que lhe havia aparecido em sonhos, qual deles deveria sucedê-lo no trono, e Deus revelou-lhe, mostrando Alexandre, que este deveria reinar. O desprazer que ele então concebeu levou-o a mandar educá-lo na Galiléia. Mas o que Deus havia predito não deixou de acontecer, pois ele foi elevado ao trono depois da morte de Aristóbulo. Mandou em seguida matar um de seus irmãos, que quis fazer-se rei, e tratou muito bem ao outro, que se contentou em levar vida privada. 549. Depois de colocar em ordem os negócios do Estado, Alexandre marchou com um exército contra os de Ptolemaida e, depois de vencê-los num grande combate, obrigou-os a se encerrar na sua cidade, onde os sitiou. De todas as cidades marítimas, Gaza era a única que ele ainda não havia tomado, e para isso era necessário subjugar Zoilo, que se apoderara de Adora e da torre de Estratão. Os habitantes de Ptolemaida não podiam esperar auxílio do rei Antíoco nem de Antíoco Cízico, seu irmão, pois eles tinham empenhadas todas as suas forças em outra guerra. Zoilo, porém, que esperava aproveitar-se da divisão entre esses príncipes para ocupar Ptolemaida, para lá enviou algum auxílio enquanto os dois reis tão pouco se importavam em ajudá-la, pois estavam tão irritados um contra o outro que não se incomodavam com mais nada, semelhante aos atletas que, embora cansados de combater, têm vergonha de se confessar vencidos e não cedem ao competidor, mas depois de recobrarem um pouco de alento recomeçam o combate. Assim, o único recurso que restava aos sitiados era pedir socorro ao Egito, principalmente a Ptolomeu Latur, que havia sido expulso do reino pela rainha Cleopatra, sua mãe, e se retirado para a ilha de Chipre. Mandaram então pedir-lhe que os livrasse do perigo em que se encontravam, dando-lhe a entender que logo que viesse para a Síria, os de Gaza, Zoilo, os sidônios e vários outros passariam imediatamente para o seu lado. O príncipe, com essa esperança, cuidou em equipar imediatamente uma grande frota. Mas nesse ínterim, Demeneto, que desfrutava grande prestígio em Ptolemaida, persuadiu os habitantes a mudar de opinião, mostrando-lhes que era muito mais vantajoso permanecer na incerteza do êxito na guerra em que estavam empenhados contra os judeus que cair na servidão, a qual lhes seria inevitável se, chamando o rei Ptolomeu, o recebessem por senhor. E assim, não teriam somente de sustentar aquela guerra, mas também uma outra, maior ainda e mais perigosa, com o Egito, porque a rainha Cleopatra, mão de Ptolomeu, que tinha a intenção de expulsá-lo da ilha de Chipre, vendo que ele procurava fortalecer-se à custa das províncias vizinhas, viria contra eles com um poderoso exército. E se então Ptolomeu, enganado em suas esperanças, os abandonasse a fim de fugir para a ilha de Chipre, eles ficariam expostos a um perigo maior do que poderiam imaginar. 550. Ptolomeu soube a caminho que os de Ptolemaida haviam mudado de idéia, mas continuou a viagem. Desembarcou em Sicamim com o seu exército, que era de trinta mil homens, tanto de infantaria quanto de cavalaria, e avançou para Ptolemaida. Viu-se, porém, em graves dificuldades quando os embaixadores não puderam falar aos habitantes da cidade, que se recusaram a recebê-los e nem quiseram ouvir as suas propostas. Então Zoilo e os de Gaza foram ter com ele para pedir-lhe socorro contra os judeus e contra o seu rei, que lhes devastava o país. Assim, Alexandre foi obrigado a levantar o cerco de Ptolemaida. Retirou o exército e, querendo agir com astúcia, enviou secretamente emissários à rainha Cleopatra para fazer aliança com ela contra Ptolomeu, enquanto tratava publicamente com ele e prometia dar-lhe quatrocentos talentos de prata se este lhe entregasse o tirano Zoilo e cedesse aos judeus as praças e as terras que ele possuía. Ptolomeu, de boa mente, fez aliança com Alexandre e mandou prender Zoilo. Mas quando soube que o príncipe negociava secretamente com a rainha sua mãe, rompeu com ele e sitiou Ptolemaida, que, como vimos, se recusara a recebê-lo. Deixando alguns dos chefes com uma parte das forças, para continuar o cerco, foi com o resto devastar a Judéia. Alexandre, por sua vez, para resistir-lhe, reuniu um exército de cinqüenta mil homens ou, segundo outros, de oitenta mil. Ptolomeu, tendo num sábado atacado de improviso a cidade de Azoto, na Galiléia, tomou-a de assalto e levou dez mil escravos e grande quantidade de despojos. CAPÍTULO 21 GRANDE VITÓRIA OBTIDA POR PTOLOMEU LATUR SOBRE ALEXANDRE, REI DOS JUDEUS, E SUA HORRÍVEL DESUMANIDADE. CLEOPATRA, MÃO DE PTOLOMEU, VEM EM AUXÍLIO DOS JUDEUS, E LATUR TENTA INUTILMENTE TORNAR-SE SENHOR DO EGITO. ALEXANDRE TOMA GAZA E PRATICA GRANDES ATOS DE CRUELDADE. DIVERSAS GUERRAS REFERENTES AO REINO DA SÍRIA. ESTRANHO ÓDIO DA MAIORIA DOS JUDEUS CONTRA ALEXANDRE, SEU REI, QUE CHAMAM DEMÉTRIO EUCERO EM SEU AUXÍLIO. 551. Depois que Ptolomeu Latur tomou Azoto de assalto, foi a Séforis, que fica próxima, e atacou-a, mas foi repelido, com grandes perdas. Em vez de continuar esse assédio, ele marchou contra Alexandre, rei dos judeus. Encontrou-o em Azofe, muito perto do Jordão, e acampou em frente dele. A vanguarda de Alexandre era composta de oito mil homens, soldados veteranos, todos armados com escudos de bronze. Os da vanguarda de Ptolomeu também o eram, mas o resto de suas tropas não estava bem armado, o que os fazia recear o combate. Um certo Fílonstevão, muito experimentado na guerra, tranqüilizou-os e fê-los passar o rio que separava os dois acampamentos, sem que Alexandre se opusesse a isso, porque ele julgava vencer mais facilmente quando os inimigos, tendo o rio por trás, não pudessem mais fugir. O combate foi deveras sangrento, e era difícil julgar para que lado pendia a vitória. Por fim, as tropas de Alexandre começaram a prevalecer, enquanto as de Ptolomeu estavam se esfacelando. Mas Fílonstevão as susteve com um corpo de tropas que ainda não havia combatido e as reanimou. Os judeus, espantados com tal mudança e sem receber nenhum reforço, fugiram, e todos os outros seguiram-lhes o exemplo. Os inimigos perseguiram-nos tão vivamente e fizeram tal morticínio que só cessaram a matança quando não agüentaram mais o cansaço e a ponta de suas espadas começava a se entortar. O número de mortos foi de trinta mil ou, segundo uma relação de Timagenes, cinqüenta mil. O resto do exército foi aprisionado ou salvou-se na fuga. 552. Depois de tão assinalada vitória e de tão longa perseguição, Ptolomeu retirou-se, à tarde, para algumas aldeias da Judéia e, encontrando-as cheias de mulheres e de crianças, ordenou aos seus soldados que as estrangulassem, fizessem-nas em pedaços e as lançassem numa caldeira de água fervente, a fim de que os judeus que haviam escapado da batalha, ao chegar àquele lugar, pensassem que os inimigos comiam carne humana e tivessem ainda maior medo deles. Estrabão não é o único que faz menção dessa horrível desumanidade, pois Nicolau a refere também. Ptolomeu apoderou-se depois de Ptolemaida, à força, como já dissemos em outro lugar. 553. Quando a rainha Cleópatra viu que o seu filho crescia daquele modo em poder e devastava, sem resistência, toda a Judéia, submetendo Gaza à sua obediência e estando já quase às portas do Egito, e que ele nada mais pretendia além de se apoderar do país, julgou não dever esperar mais para enfrentá-lo. Assim, sem perder tempo, reuniu grandes forças de terra e mar, cujo comando confiou a Chelcias e a Ananias, judeus de nascimento. Colocou em segurança, na ilha de Choos, a maior parte de suas riquezas, seus netos e seu testamento, mandou Alexandre, seu outro filho, para a Fenícia com uma grande esquadra, porque aquela província estava para se revoltar, e veio em pessoa a Ptolemaida. Os seus habitantes, porém, fecharam-lhe as portas, e ela sitiou-os. Quando Ptolomeu viu que ela havia deixado o Egito, para lá partiu, na esperança de que facilmente dele se poderia apoderar, mas viu-se enganado em seus intentos. Por aquele mesmo tempo, Chelcias, um dos generais do exército de Cleópatra, que perseguia Ptolomeu, morreu na Baixa Síria. 554. Cleópatra, ao saber que as intenções do filho a respeito do Egito haviam sido frustradas, enviou para lá uma parte de suas forças, que o rechaçaram totalmente. Assim, ele foi obrigado a voltar e passou o inverno em Gaza. Então Cleópatra tomou Ptolemaida, onde Alexandre, rei dos judeus, veio encontrar-se com ela, trazendo-lhe muitos presentes. Ela o recebeu com prazer e como um príncipe que, tendo sido tão maltratado por Ptolomeu, somente a ela podia recorrer. Alguns servidores propuseram que ela se apoderasse do país, para não permitir que um número tão grande de judeus, homens de bem, estivesse sujeito a um único homem. Mas Ananias aconselhou o contrário, dizendo que ela não podia com justiça despojar um príncipe que fizera aliança com ela e era parente próximo dele. Também não podia evitar dizer-lhe que, se ela fizesse aquela injustiça, nenhum judeu deixaria de se tornar inimigo dela. Essas razões persuadiram-na, e assim, ela não somente evitou causar desprazer a Alexandre como renovou a aliança com ele em Citópolis, que é uma cidade da Baixa Síria. 555. Logo que o príncipe se viu livre dos receios quanto a Ptolomeu, entrou na Baixa Síria, tomou a cidade de Gadara depois de um cerco de dez meses e Hamate logo em seguida, que é a mais resistente de todas as fortalezas situadas sobre o Jordão e na qual Teodoro, filho de Zenão, havia posto tudo o que tinha de mais precioso. Teodoro, para vingar-se, atacou os judeus quando menos esperavam, matou cerca de dez mil e tomou toda a bagagem de Alexandre. Esse príncipe, sem se abater com tal perda, não deixou de sitiar e de tomar Rafa, que está à beira-mar, e Antedom, que Herodes depois chamou Agripíada. Vendo que Ptolomeu abandonara Gaza para voltar a Chipre e que a rainha Cleópatra, sua mãe, retomara também o caminho para o Egito, o seu ressentimento pelo fato de os moradores de Gaza haverem chamado Ptolomeu em seu auxílio, contra ele, levou-o a devastar-lhes o país e a sitiá-los. Apolodoto, que os comandava, atacou o acampamento dos judeus com dois mil soldados estrangeiros e mil servidores que pôde reunir. Durante a noite, ele obteve vantagem, porque os judeus estavam certos de que Ptolomeu viera em socorro dos sitiados, mas quando raiou o dia eles viram que se haviam enganado, retomaram ânimo e atacaram Apolodoto com tanta coragem que mataram ali mesmo mil de seus soldados. Os sitiados, porém, não perderam a coragem, embora fossem ainda acossados pela fome. Preferiam sofrer até o fim a se entregar. Aretas, rei dos árabes, que lhes prometia auxílio, fortalecia-os em seu intento. Mas Apolodoto foi morto à traição antes que esse rei tivesse chegado, e a cidade foi tomada. Foi Lisímaco, seu próprio irmão, quem cometeu esse crime, por inveja do prestígio que os próprios e grandes méritos haviam granjeado a Apolodoto. Lisímaco então reuniu um grupo de soldados e entregou a praça a Alexandre. Quando esse príncipe lá entrou, parecia ter Espírito de paz, mas depois enviou tropas às quais permitiu castigar o povo com toda espécie de crueldade. Eles não pouparam um sequer de todos os que puderam matar, porém isso custou também a vida a vários judeus, pois uma parte dos habitantes morreu com armas na mão, defendendo-se valentemente, outros incendiaram as próprias casas, para impedir que fossem presa do inimigo, e outros mataram as próprias mulheres e filhos, para evitar-lhes uma vergonhosa escravidão. Sabendo que o senado estava reunido quando essas tropas sanguinárias entravam na cidade, eles fugiram para o templo de Apoio, a fim de ali buscar asilo seguro, mas não o encontraram. Alexandre mandou matá-los e, depois de destruir a cidade, que conservava sitiada durante um ano, voltou a Jerusalém. 556. Por esse mesmo tempo, o rei Antioco Gripo foi morto à traição por Heracleu, na idade de quarenta e cinco anos, após reinar vinte e nove. Seleuco, seu filho, sucedeu-o e fez guerra a Antioco Cizicenio, seu tio, aprisionou-o numa batalha e mandou matá-lo. Pouco tempo depois, Antioco, filho de Cizicenio, e Antonino, cognominado Eusébio, vieram a Arade, onde foram coroados reis. Eles fizeram guerra a Seleuco, venceram-no numa batalha e o expulsaram da Síria. Ele fugiu para a Cilícia, onde foi recebido pelos mopseatas, mas, em vez de reconhecer a obrigação que lhes devia, quis ainda exigir deles tributo. Então eles, não o podendo suportar, puseram fogo ao seu palácio, onde morreu queimado com os seus amigos. 557. Enquanto esse Antioco reinava na Síria, um outro Antioco, irmão de Seleuco, fez-lhe guerra. Mas foi derrotado com todo o seu exército. Filipe, seu irmão, fez-se coroar rei e reinou numa parte da Síria. No entanto, Ptolomeu Latur mandou chamar Demétrio Eucero, seu quarto irmão, em Gnida, o constituiu rei em Damasco. Antioco resistiu valentemente a esses dois irmãos, mas não viveu por muito tempo. Tendo partido para Laodicéia em auxílio da rainha dos galadenianos, que faziam guerra aos partos, foi morto numa batalha, lutando corajosamente. Filipe e Demétrio, que eram irmãos, com a morte dele ficaram de posse pacífica do reino da Síria, como já dissemos em outro lugar. 558. Ao mesmo tempo, Alexandre, rei dos judeus, viu turbar-se o seu reino, pelo ódio que o povo tinha contra ele. No dia da festa dos Tabernáculos, quando se levam ramos de palmas e de limoeiros, ele preparava-se para oferecer sacrifício. O povo não se contentou de lhe lançar limões à cabeça, mas o ofendeu com palavras, dizendo que, tendo sido escravo, ele não merecia honra alguma e era indigno de oferecer sacrifícios a Deus. Ele ficou de tal modo enfurecido que mandou matar uns seis mil deles e em seguida reprimiu o esforço da multidão irritada com uma cerca de madeira que mandou fazer ao redor do Templo e do altar, e que se estendia até o lugar onde somente os sacerdotes têm direito de entrar. Ele assalariou soldados pisídios e cilícios porque, sendo inimigo dos sírios, não se servia deles. Venceu depois os árabes, impôs tributos aos moabitas e aos galaditas e destruiu Hamate sem que Teodoro se atrevesse a dar-lhe combate. Fez também guerra a Obede, rei dos árabes, mas, tendo caído numa emboscada perto de Gadara, na Galiléia, impelido por um grande número de camelos a um estreito muito apertado e difícil de transpor, chegou a salvo com muita dificuldade em Jerusalém. Esse mau resultado foi seguido de uma guerra que seus súditos lhe moveram durante seis anos. Ele matou mais ou menos uns cinqüenta mil deles e, embora tudo fizesse para estar bem com eles, o ódio que lhe tinham era tão violento que, quanto mais queria acalmá-lo, tanto mais ele aumentava. Assim, perguntando-lhes um dia o que queriam que fizesse para contentá-los, todos exclamaram que ele devia se matar. Mandaram então imediatamente chamar Demétrio Eucero, para pedir-lhe auxílio. CAPÍTULO 22 DEMÉTRIO EUCERO, REI DA SÍRIA, VEM EM AUXÍLIO DOS JUDEUS CONTRA ALEXANDRE, SEU REI. DERROTA-O NUMA BATALHA E RETIRA-SE. OS JUDEUS CONTINUAM SOZINHOS A FAZER-LHE GUERRA. ELE OS VENCE EM DIVERSOS COMBATES E USA DE ESPANTOSA CRUELDADE CONTRA ELES. DEMÉTRIO SITIA FILIPE, SEU IRMÃO, EM BEROÉ. MITRÍDATES SINACÉS, REI DOS PARTOS, MANDA CONTRA ELE UM EXÉRCITO QUE O FAZ PRISIONEIRO E O ENVIA A ESSE REI. MORRE LOGO DEPOIS. 559. Demétrio Eucero, fortalecido por aqueles que o convocavam, veio em seu auxílio com um exército de três mil cavaleiros e quarenta mil soldados de infantaria. Alexandre marchou contra ele com seis mil e duzentos soldados estrangeiros contratados e vinte mil judeus que se lhe conservaram fiéis. Os dois príncipes fizeram todos os esforços. Demétrio, para ganhar esses estrangeiros, que eram gregos, e Alexandre, para ganhar ao seu partido os judeus que haviam passado para Demétrio. Mas nem um nem outro conseguiu o seu intento. E assim, foi necessário travar-se uma batalha. Demétrio venceu, e os estrangeiros que estavam do lado de Alexandre mostraram seu valor e fidelidade, pois foram todos mortos, sem exceção de um. Demétrio, por sua vez, perdeu também muitos soldados. Alexandre fugiu para os montes e então, por uma estranha mudança, a compaixão pela sua infelicidade fez com que seis mil judeus fossem procurá-lo. Isso causou tanto temor a Demétrio que ele se retirou. Os outros judeus continuaram sozinhos a guerra a Alexandre, mas foram vencidos, e muitos pereceram em diversos combates. Ele obrigou os chefes a se retirarem a Betom, tomou a cidade e os mandou prisioneiros a Jerusalém, onde, para vingar-se das ofensas que havia recebido, usou contra eles de horrível crueldade: enquanto se entregava a um banquete com suas concubinas num lugar bastante elevado, de onde podia ver tudo, mesmo ao longe, fez crucificar cerca de oitocentos na sua presença e estrangular diante deles, enquanto ainda viviam, suas mulheres e filhos. É verdade que eles o haviam ofendido e, não se contentando em lhe fazer guerra eles mesmos, tinham ainda chamado estrangeiros em seu auxílio, levando-o muitas vezes a correr o risco de perder a vida e o reino e reduzindo-o a grande miséria, tanto que ele foi obrigado a entregar ao rei dos árabes as praças que havia conquistado no país dos moabitas e dos galatidas, a fim de impedir que se unissem aos seus súditos revoltados, isso sem falar dos muitos ultrajes que lhe fizeram. Tudo isso, porém, não impede o horror a tão espantosa desumani-dade, que o fez merecer, com razão, o nome de Trácida, para indicar a sua extrema barbaridade. Oito mil soldados dos que haviam tomado armas contra ele retiraram-se na noite seguinte a essa ação mais que desumana e não apareceram mais durante o seu reinado, que depois foi bastante pacífico. 560. Demétrio, saindo da Judéia, foi com dois mil cavaleiros e dez mil soldados de infantaria sitiar Filipe, seu irmão, em Beroé. Estratão, que a governava e que ajudava Filipe, chamou Zizo, general dos árabes, em seu socorro, e Mitrídates Sinacés, rei dos partos. Eles mandaram-lhe grandes forças, que sitiaram Demétrio em seu acampamento e obrigaram os seus soldados a se entregar, tanto pela multidão de dardos e flechas com que os cobriram quanto pela falta de água que provocaram. Mandaram-nos prisioneiros a Mitrídates e voltaram carregados de despojos, permitindo aos de Antioquia, que estavam entre os prisioneiros, retirar-se sem pagar resgate. Mitrídates tratou Demétrio com grande honra até o fim de sua vida, que não foi longa, pois ele caiu doente e morreu. Quanto a Filipe, logo depois da prisão de Demétrio, foi para Antioquia e reinou na Síria. CAPÍTULO 23 DIVERSAS GUERRAS DOS REIS DA SÍRIA. ALEXANDRE, REI DOS JUDEUS, TOMA VÁRIAS PRAÇAS. SUA MORTE E CONSELHO QUE DÁ À RAINHA ALEXANDRA, SUA MULHER, PARA CONQUISTAR OS FARISEUS E SER AMADA PELO POVO. 561. Antioco, cognominado Dionísio, irmão de Filipe, apoderou-se de Damasco, fez-se declarar rei e para isso serviu-se da ausência do irmão, que tinha ido fazer guerra aos árabes. Logo que Filipe o soube, voltou apressadamente e entrou em Damasco por meio de Mileze, comandante da fortaleza. Mas, para fazer crer que era o terror do seu nome, e não apenas a habilidade, que o fizera reconquistar aquela praça, mostrou-se muito ingrato. Mileze, para vingar-se, aproveitou a sua ida ao hipódromo, para assistir a uma corrida de cavalos, e fechou-lhe a porta da cidade, conservando-a para Antioco. Logo que este soube disso, voltou imediatamente da Arábia e entrou na Judéia com oito mil soldados de infantaria e oitocentos cavaleiros. O rei Alexandre, surpreendido com essa repentina incursão, mandou fazer uma grande trincheira, desde Caparsabé, que se chama agora Antípatra, até o mar de Jope, que era o único lugar por onde se podia entrar. A isso ele acrescentou um muro com defesas de madeira distantes uma da outra cerca de cento e cinqüenta estádios. Antioco queimou-as todas e passou com o seu exército à Arábia. Os árabes permitiram-no a princípio, mas depois apareceram com dez mil cavaleiros. Antioco atacou-os com muita valentia. Mas foi morto quando, já quase certo da vitória, correu para defender uma das alas de seu exército, que estava para ser desbaratada. Essa desgraça abateu a coragem de seus soldados, que fugiram todos para a aldeia de Cana, onde a maior parte morreu de fome. 562. Aretas reinou depois na Baixa Síria, para onde fora chamado pelos habitantes de Damasco, por causa do ódio que eles votavam a Ptolomeu, filho de Meneu. Ele entrou com soldados na Judéia, venceu o rei Alexandre perto de Adida e retornou, depois de conversar com ele. 563. Alexandre tomou a cidade de Diam e sitiou Essa, onde Zenão havia posto o que possuía de mais precioso, começando por fazê-la rodear de uma tríplice muralha. Depois tomou-a de assalto. Apoderou-se também de Gaulam, de Selêucia, do vale que tinha o nome de Antíoco e da fortaleza de Gamala. E, por ser Demétrio, que antes governava aqueles lugares, acusado de muitos crimes, despojou-o do principado. Depois de empregar cerca de três anos em todas essas expedições militares, voltou com o seu exército a Jerusalém, onde tantos felizes resultados o fizeram ser recebido com demonstrações de grande alegria. 564. Os judeus possuíam então várias cidades na Síria, na Iduméia e na Fenícia, isto é: ao longo do mar, a torre de Estratão, Apolônia, Jope, Jamnia, Hazor, Gaza, Atedom, Rafia e Rinosura; no meio da Iduméia, Adora, Maressa, Samaria, os montes do Carmelo e do Itaburim, Citópolis, Gadara, Gaulanítide, Selêucia e Gabara; no país dos moabitas, Essebom, Medeba, Lemba, Orom, Telitom e Zara; na Cilícia, Aulom e Pela, a qual eles destruíram, porque os habitantes não se decidiram por observar as nossas leis. Nossa nação possuía ainda na Síria outras cidades assaz importantes, que haviam sido destruídas. 565. Alexandre deixou-se dominar por sua intemperança, bebeu vinho em excesso e por esse motivo foi acometido de uma febre que durou três anos. Como isso, porém, não o impedia de se dedicar aos interesses da guerra, suas forças ficaram esgotadas de tal modo que ele veio a morrer na fronteira dos gerasianos, quando sitiava a fortaleza de Ragaba, situada além do Jordão. Estando ele nos seus últimos momentos, quando não havia mais esperança de cura, a rainha Alexandra, sua mulher, aflita pela dor e pela tristeza em que se encontrava, por ficar sozinha com os filhos, disse-lhe, banhada em lágrimas: "Nas mãos de quem me deixais, a mim e aos nossos filhos, nesta tão grande necessidade de auxílio em que nos achamos, como sabeis, pela aversão que o povo sente por vós?" Ele respondeu: "Se quiserdes seguir o meu conselho, podereis conservar o reino e também os nossos filhos. Ocultai a minha morte aos meus soldados até que esta praça tenha sido tomada. Depois que voltardes vitoriosa a Jerusalém, procurai conquistar o afeto dos fariseus, dando-lhes alguma autoridade, a fim de que essa honra os induza a louvar publicamente, perante o povo, a vossa magnanimidade. Eles desfrutam tanto poder sobre o Espírito do povo que o fazem amar ou odiar quem eles querem, sem que se considere se eles agem por interesse ou — quando falam mal de alguém — por inveja ou por ódio, como eu mesmo pude experimentar, pois a aversão do povo contra mim foi motivada pela minha inimizade com eles. Mandai, pois, chamar os chefes dessa seita logo que tiverdes chegado, mostrai-lhes o meu corpo morto e dizei, como se o desejásseis do fundo do coração, que me entregais nas mãos deles para que façam o que quiserem: ou recusar-me a honra da sepultura, para vingarem-se dos males que lhes causei, ou acrescentar maiores ultrajes, para se satisfazerem plenamente. Dai-lhes em seguida a vossa palavra de que nada fareis no governo do reino senão por seu conselho. Digo-vos que, se assim fizerdes, eles ficarão tão satisfeitos com essa deferencia, que, em vez de desonrar a minha memória, me farão magníficos funerais, como eu não ousaria esperar nem mesmo de vós, e reinareis com inteira autoridade". Dizendo essas palavras, morreu, na idade de quarenta e nove anos, dos quais reinou vinte e sete. CAPÍTULO 24 O REI ALEXANDRE DEIXA DOIS FILHOS: HIRCANO, QUE FOI SUMO SACERDOTE, E ARISTÓBULO. A RAINHA ALEXANDRA, SUA MÃE, CONQUISTA O POVO POR MEIO DOS FARISEUS, DANDO-LHES GRANDE AUTORIDADE. FAZ MORRER, A CONSELHO DELES, OS MAIS FIÉIS SERVIDORES DO REI SEU MARIDO E DÁ AOS OUTROS, PARA ACALMÁ-LOS, A GUARDA DAS PRAÇAS MAIS FORTES. INCURSÃO DE TIGRANO, REI DA ARMÊNIA, NA SÍRIA. ARISTÓBULO QUER FAZER-SE REI. MORTE DA RAINHA ALEXANDRA. 566. A rainha Alexandra, depois de se apoderar da fortaleza de Ragaba e de voltar a Jerusalém, falou aos fariseus como lhe dissera o rei seu marido, declaran-do-lhes que nada queria fazer sem a opinião deles, com relação ao seu corpo e ao governo do reino. Assim, eles mudaram em afeto por ela o ódio que concebiam por ambos e falaram ao povo dos grandes feitos do soberano, dizendo que haviam perdido um ótimo rei. Instigaram em seu Espírito tal tristeza pela sua morte que lhe fizeram funerais como a nenhum outro soberano. 567. Esse príncipe deixou dois filhos, Hircano e Aristóbulo, e determinou em seu testamento que a rainha sua esposa seria a regente. Hircano, o mais velho, era pouco capaz de governar e só cuidava em viver na ociosidade. Aristóbulo, ao contrário, tinha muita inteligência, era ousado e empreendedor. A rainha, que havia conquistado o coração do povo, pois sempre demonstrara tristeza pelas faltas do rei seu marido, criou Hircano para sumo sacerdote, não tanto por ele ser o mais velho quanto por sua incapacidade. Ela deixava os fariseus disporem de tudo e até ordenava ao povo que lhes obedecesse, porque, se Hircano, seu sogro, abolira algo de suas tradições, ela queria que fossem restauradas. Assim, tinha ela de rainha apenas o nome, e os fariseus desfrutavam todo o poder que lhes dava a realeza: faziam voltar os exilados, libertavam prisioneiros e em nada se diferenciavam dos soberanos. Havia somente algumas coisas de que a princesa dispunha. Mantinha ela um grande número de tropas estrangeiras e parecia muito poderosa, para causar temor aos príncipes vizinhos. Obrigou-os até mesmo a lhe mandarem reféns. Assim, reinava pacificamente, mas os fariseus perturbavam a tranqüilidade, insistindo em que ela mandasse matar os que haviam aconselhado o rei seu marido a crucificar aqueles oitocentos homens de que falamos há pouco. Começaram por Diógenes e continuaram pelos outros, fazendo-os morrer, até que alguns dentre os mais ilustres vieram procurar a rainha em seu palácio, tendo à frente Aristóbulo, que demonstrava, pela sua atitude, não aprovar o que estava acontecendo e que se tivesse oportunidade diria à rainha sua mãe que ela não devia abusar assim do poder. Apresentaram-se à princesa falando dos assinalados benefícios que haviam prestado ao falecido rei seu marido e dos favores com que ele os honrara, como recompensa pelo seu valor e por sua fidelidade. Pediam-lhe que não permitisse, depois de correrem tantos riscos na guerra, que os seus inimigos os fizessem morrer em plena paz, como vítimas, sem receber por isso o devido castigo. Acrescentaram que, se aqueles injustos perseguidores se contentassem com o sangue que já haviam derramado, o respeito deles pela autoridade real, sob cujo nome se acobertavam, os faria suportar com paciência o que haviam sofrido até então. Mas se eles quisessem continuar a exercer tão horrível crueldade, suplicavam então, se ela julgasse bem, que eles pudessem procurar segurança fora de seus estados, porque não o queriam fazer sem licença dela. Ou, se ela lhes recusasse tão justo pedido, eles preferiam que ela os massacrasse ali no palácio, pois nada poderia ser mais vergonhoso que permitir serem eles tratados daquele modo por inimigos jurados do rei seu marido, dando a Aretas, rei dos árabes, e aos outros príncipes o prazer de verem como ela se privava de tantos homens valorosos, cujo nome somente fazia tremer. Por fim, eles concluíram, se ela lhes recusasse essa graça e resolvesse abandoná-los à paixão dos fariseus, que ao menos os espalhasse pelas fortalezas, para lá terminarem miseravelmente a vida, pois a sorte perseguia cruelmente os servidores de Alexandre. Depois dessas palavras e de outras semelhantes, eles invocaram os manes do rei seu senhor, como para induzi-los a ter compaixão daqueles que já haviam sido mortos e dos que corriam ainda o mesmo risco. Os presentes ficaram todos comovidos e não puderam reter as lágrimas. Aristóbulo manifestou mais que todos os outros os seus sentimentos, pelas censuras que fez à rainha sua mãe. Mas disse também que eles deviam recriminar a si mesmos pela sua infelicidade, pois eles próprios a causaram ao escolher uma mulher tão ambiciosa para entregar o reino, como se o falecido rei não tivesse deixado filhos varões para substituí-lo. 568. A princesa ficou bastante embaraçada nessa circunstância e julgou que nada melhor poderia fazer além de confiar aos descontentes a guarda das fortalezas e das praças-fortes, exceto Hircânia, Alexandriom e Macherom, onde havia colocado tudo o que possuía de mais precioso. Pouco tempo depois, ela mandou Aristóbulo, seu sobrinho, com um exército a Damasco contra Ptolomeu Meneu, que oprimia esses vizinhos, mas ele voltou sem nada ter feito de memorável. Por esse mesmo tempo, soube-se que Tigrano, rei da Armênia, entrara na Síria com um exército de quinhentos mil homens e vinha rapidamente para a Judéia. Tão grande e tão imprevisto perigo assustou a rainha Alexandra e todo o reino. Ela então mandou a esse príncipe ricos presentes, por meio de embaixadores, que o encontraram ocupado no cerco de Ptolemaida. A rainha Selene, outrora chamada Cleopatra, que então reinava na Síria, exortou todos os seus súditos a se defenderem generosamente contra o usurpador. Os embaixadores de Alexandre tudo fizeram para induzir Tigrano a sentimentos favoráveis para com a sua rainha e a sua nação. Ele os recebeu muito bem e despediu-os com muitas esperanças. Tendo tomado Ptolemaida, soube que Lúculo, que perseguira o rei Mitrídates sem poder alcançá-lo, porque este já se havia posto a salvo na Libéria, entrara na Armênia e saqueava e devastava todo o país. Tal notícia o fez regressar. 569. A rainha Alexandra ficou então gravemente enferma, e Aristóbulo julgou ter encontrado o momento mais propício para os seus desígnios. Saiu à noite, acompanhado de um único servo, para ir às praças-fortes, que eram guardadas, como acabamos de dizer, pelos servidores de maior confiança do falecido rei seu pai. Estando havia muito tempo insatisfeito com o proceder de sua mãe e temendo mais do que nunca que a sua família viesse a cair sob o domínio poderoso dos fariseus, caso ela morresse, via, por outro lado, que seu irmão Hircano era inteiramente incapaz de governar. Ele confiou o seu segredo somente à esposa, que deixou em Jerusalém com os filhos. Foi primeiro a Ágaba, onde Galesto, que era um de seus fiéis servidores e do falecido rei, o recebeu com grande alegria. No dia seguinte, a rainha percebeu que Aristóbulo estava ausente, mas não suspeitou de que ele se havia afastado para organizar uma rebelião. Quando soube, porém, que ele se apoderara de uma fortaleza e depois de mais outra, compreendeu que assim, uma após outra, todas ficariam em seu poder. Ela e os seus caíram em grande consternação, pois concluíram que já bem pouco faltava para que Aristóbulo usurpasse o poder. Eles temiam que ele se vingasse terrivelmente pela maneira como haviam tratado os seus mais afeiçoados servidores. Em tão grande aflição, não tiveram outra deliberação a tomar senão prender na fortaleza próxima do Templo a mulher e os filhos de Aristóbulo. Enquanto isso os judeus acorriam de todas as partes para junto desse príncipe, e em quinze dias ele conseguiu apoderar-se de vinte e duas praças. Tomou então as insígnias da realeza e da dignidade real e não perdeu tempo em reunir tropas. Recrutou-as no monte Líbano e na Traconítida e com os príncipes vizinhos, que o ajudaram de boa vontade, na esperança de que ele reconhecesse o benefício que lhe prestavam, ajudando-o a subir ao trono quando até então ele não ousara fazê-lo, por mais desejo que tivesse de ocupá-lo. Hircano, acompanhado pelo judeus mais ilustres, foi procurar a rainha para que ela se dignasse dizer-lhes o que julgava conveniente fazer em tal contingência, pois Aristóbulo já era senhor de quase todo o território, pela rendição de tantas praças, e, ainda que ela se encontrasse tão enferma, era dever dele nada empreender, estando ela ainda viva, sem consultá-la, visto que o perigo estava muito próximo. Ela respondeu que deixava a eles a escolha e que fizessem o que pensassem ser mais vantajoso para o reino, pois eles tinham soldados, homens competentes e grande soma de dinheiro no tesouro público. Quanto a ela, não estava mais em condições de cuidar de assuntos do governo, porque se sentia inteiramente esgotada e no fim da vida. E, dizendo essas palavras, morreu, após reinar nove anos e viver setenta e três. Essa rainha nada tinha da fraqueza de seu sexo, pois mostrou, pelas suas ações, que era capaz de governar e de envergonhar os príncipes que se mostram indignos da posição que ocupam no mundo. Cuidou unicamente da utilidade do reino, sem se afastar de uma ocupação tão importante por causa de vãos pensamentos ou preocupações com o futuro. Ela afirmava que a moderação no governo é preferível a tudo, e que jamais se deve fazer algo que não seja justo e honesto. Mas todas essas boas qualidades não impediram que os seus descendentes perdessem, depois de sua morte, o poder que a sua ambição lhes havia conquistado por meio de inúmeras dificuldades e perigos, tão grande a falta que ela cometeu: seguir o pernicioso conselho dos inimigos de sua família, privando o Estado da cooperação daqueles que muito poderiam ter feito. Assim, a sua morte foi seguida de perturbações e de infelicidade, mas todo o seu reinado passou-se em paz. Livro Décimo Quarto CAPÍTULO 1 APÓS A MORTE DA RAINHA ALEXANDRA, HIRCANO E ARISTOBULO, SEUS FILHOS, TRAVAM UMA BATALHA. ARISTOBULO VENCE, E ELES FAZEM UM TRATADO: A COROA FICA COM ARISTÓBULO E HIRCANO CONTENTA-SE COM A VIDA PRIVADA. 570. Mostramos no livro precedente qual foi a vida e a morte da rainha Alexandra. Falemos agora do que aconteceu em seguida, pois devemos cuidar em nada omitir, por negligência ou por esquecimento. Embora aqueles que fazem a narração de fatos históricos e procuram esclarecer as coisas que o tempo obscureceu não se devam descuidar da elegância do estilo e dos ornamentos que a podem tornar agradável, o seu cuidado principal deve ser relatar exatamente a verdade, a fim de comunicá-la aos leitores e aos que prestarão fé às suas palavras. Depois que Hircano foi feito sumo sacerdote, no terceiro ano da Olimpíada cento e setenta e sete, quando eram cônsules Quinto Hortêncio e Quinto Metelo, também chamado Metelo de Creta, Aristobulo declarou-lhe guerra, e a batalha travou-se perto de Jerico. Uma grande parte das tropas de Hircano passou para o lado de Aristobulo. Hircano fugiu para a fortaleza de Jerusalém onde a mulher e os filhos de Aristobulo estavam prisioneiros por ordem da rainha Alexandra. O resto de seus soldados retirou-se ao recinto do Templo, mas logo se entregaram. Começaram depois a falar de paz entre os dois irmãos, e ela foi concluída, sob a condição de que Aristobulo reinaria e Hircano, de posse de seus bens, contentar-se-ia com a vida privada. Esse tratado foi feito no próprio Templo. Ambos o confirmaram com juramento, apertaram-se as mãos e se abraçaram na presença do povo. Depois retiraram-se, Aristobulo para o palácio real e Hircano para a casa onde Aristobulo antes residia. CAPÍTULO 2 ANTÍPATRO, IDUMEU, PERSUADE HIRCANO A FUGIR E SE REFUGIAR JUNTO DE ARETAS, REI DOS ÁRABES, QUE PROMETE RESTAURÁ-LO NO TRONO DA JUDÉIA. 571. Um idumeu, de nome Antípatro, muito rico, empreendedor e hábil, era amicíssimo de Hircano e inimigo de Aristobulo. Nicoiau de Damasco fá-lo descender de uma das principais famílias dos judeus que vieram da Babilônia para a Judéia, mas ele o diz em favor de Herodes, seu filho, que a fortuna elevou depois ao trono de nossos reis, como veremos a seu tempo. Antes não o chamavam Antípatro, mas Antipas, como o seu pai, que, tendo sido feito pelo rei Alexandre e pela rainha sua esposa governador de toda a Iduméia, contraiu amizade com os árabes, os gazeenses e os ascalonitas, conquistando o afeto deles por meio de grandes presentes. O poder de Aristobulo tornou-se suspeito a Antípatro, que já o temia, por causa da inimizade que havia entre eles, e assim, secretamente, fez-lhe todo o mal que pôde ante os judeus mais ilustres, dizendo não haver motivos para se permitir que ele usurpasse o trono que pertencia por direito a Hircano, que era o irmão mais velho. Não se contentava em dizer a mesma coisa a Hircano, mas acrescentava que a vida deste não estaria segura se não se retirasse imediatamente, porque os amigos de Aristobulo não perderiam a oportunidade de matá-lo, para consolidar aquela injusta autoridade. Como Hircano era naturalmente bom e não dava facilmente crédito a suspeitas, essas palavras não o persuadiram. A sua afabilidade e o seu amor pela paz e pela tranqüilidade faziam-no julgar aquilo uma simples suposição. Aristobulo, ao contrário, era muito inteligente, corajoso, hábil, empreendedor e capaz de realizar grandes feitos. Antípatro não se zangou por ver que Hircano não o escutava. Continuou a falar-lhe, insistindo em dizer-lhe que Aristobulo tinha intenção de lhe tirar a vida. Com muita dificuldade, levou-o a decidir-se por fugir para junto do rei Aretas, soberano dos árabes. Fez-lhe ver que essa retirada seria facílima, porque a Arábia está perto da Judéia, e prometeu-lhe ajudá-lo o mais possível. Foi depois falar com Aretas, da parte de Hircano, para obter a sua palavra de que não o entregaria ao inimigo. Após obter tal promessa, com juramento, voltou a Jerusalém para falar com Hircano. E, certa noite, alguns dias depois, levou-o em marcha forçada até a cidade de Petra, onde o rei dos árabes tinha a sua corte. Como Antípatro desfrutava grande estima junto dele, rogou-lhe com tanta insistência que restaurasse Hircano no reino da Judéia e deu-lhe tantos presentes que por fim o persuadiu. Hircano, por sua vez, prometeu-lhe em paga, se fosse restaurado no trono da Judéia, entregar-lhe o país e as doze cidades que o rei Alexandre, seu pai, havia tomado dos árabes, isto é, Medeba, Nabalo, Lívias, Tarabaza, Agala, Atom, Zoara, Oroné, Maressa, Rida, Lussa e Oriba. CAPÍTULO 3 ARISTÓBULO É OBRIGADO A SE RETIRAR PARA A FORTALEZA DE JERUSALÉM. O REI ARETAS AÍ VEM CERCÁ-LO. IMPIEDADE DE ALGUNS JUDEUS, QUE APEDREJAM ONIAS, UM HOMEM JUSTO, E CASTIGO QUE RECEBEM POR ESSE CRIME. 572. O rei Aretas, levado pelas promessas de Hircano, atacou Aristóbulo com um exército de cinqüenta mil homens, deu-lhe combate e o venceu. Vários judeus passaram imediatamente para o lado de Hircano. Aristóbulo, vendo-se abandonado desse modo, fugiu para o Templo, em Jerusalém. Aretas foi sitiá-lo com todo o seu exército, fortalecido ainda pelo povo, que havia abraçado o partido de Hircano. Somente os sacerdotes ficaram fiéis a Aristóbulo. A festa dos Pães Asmos, a que chamamos Páscoa, estava próxima, e os mais ilustres dos judeus deixaram o país a fim de fugir para o Egito. Onias era um homem justo e querido de Deus, o qual havia obtido chuva durante uma grande carestia. Vendo aquela guerra civil, ele foi se esconder. Mas foi achado, e levaram-no ao campo. Os judeus rogaram-lhe que, tendo ele outrora debelado a carestia com as suas orações, fizesse agora imprecações contra Aristóbulo e os de seu partido. Por muito tempo ele resistiu, mas por fim o povo o obrigou a orar. Ele dirigiu-se a Deus e assim falou, na presença de todos: "Grande Deus, que sois o soberano Monarca do universo, sendo que todos os que estão aqui são o vosso povo, e os que estão sitiados, os vossos sacerdotes, rogo-vos que não escuteis as orações nem de uns nem de outros". Mal havia ele pronunciado tais palavras, alguns judeus celerados e maus cobriram-no de pedradas. Deus, porém, não adiou muito a sua vingança por esse crime. O dia da Páscoa chegou. Nesse dia, costumamos oferecer um grande número de sacrifícios. Aristóbulo e os sacerdotes que estavam com ele não tinham vítimas e rogaram então aos judeus que estavam com os sitiantes que as fornecessem, pois estavam dispostos a pagar quanto eles exigissem. Eles pediram mil dracmas por cada animal e as exigiram adiantadas. Aristobuio e os sacerdotes aceitaram e desceram com uma corda pela muralha a importância exigida. Mas esses perversos, depois de receber o dinheiro, não entregaram as vítimas e, não se contentando em faltar à palavra aos homens, tentaram pela sua impiedade arrebatar ao próprio Deus as honras que lhe são devidas. Os sacerdotes, vendo-se assim enganados, rogaram a Deus que castigasse todos aqueles pérfido judeus, e a sua oração foi ouvida naquele mesmo instante. Ele enviou por toda aquela região um vento impetuoso que destruiu todos os frutos da terra, de modo que uma medida de trigo veio a custar onze dracmas. CAPÍTULO 4 ESCAURO, MANDADO POR POMPEU, É CONQUISTADO POR ARISTOBUIO. O REIARETAS É OBRIGADO A LEVANTAR O CERCO DE JERUSALÉM. ARISTOBUIO GANHA UMA BATALHA CONTRA ARETAS E HIRCANO. 573. Nesse mesmo tempo, Pompeu, estando empenhado na guerra da Armênia contra Tigrano, mandou Escauro para a Síria. Quando este chegou a Damasco, que pouco antes havia sido capturada por Metelo e por Lólio, resolveu entrar na judéia. Estando a caminho, encontrou-se com embaixadores que vinham a ele tanto da parte de Aristobuio quanto da de Hircano, cada qual buscando a sua aliança e pedindo socorro, oferecendo-lhe ao mesmo tempo quatrocentos talentos. Escauro preferiu Aristobuio, porque este, além de rico e liberal, era moderado em suas aspirações, ao passo que não lhe parecia que Hircano, sendo pobre e avaro, pudesse cumprir o que prometia, embora o que este desejasse fosse mais fácil que o que Aristobuio pedia. Isso porque é incomparavelmente mais difícil tomar uma praça-forte bem defendida que expulsar os que a sitiavam, que eram fugitivos e nabateenses, pouco interessados na guerra. Essas razões fizeram Escauro decidir-se por aceitar a soma que Aristobuio lhe oferecia e obrigá-los a levantar cerco. Para cumprir a sua promessa precisou somente pedir a Aretas que se retirasse, dizendo-lhe que, se não o fizesse, o declararia inimigo do povo romano. Escauro depois voltou a Damasco. Aristobuio reuniu um grande exército, deu combate a Hircano e a Aretas, num lugar chamado Papirom, e venceu-os, matando sete mil homens, dentre os quais Cefalé, irmão de Antípatro. CAPÍTULO 5 POMPEU VEM À BAIXA SÍRIA. ARISTOBULO MANDA-LHE UM RICO PRESENTE. ANTÍPATRO VEM PROCURÁ-LO DA PARTE DE HIRCANO. POMPEU ESCUTA OS DOIS IRMÃOS E DEIXA A QUESTÃO DELES PARA RESOLVER DEPOIS QUE SUBJUGAR OS NABATEENSES. ARISTOBULO, SEM ESPERÁ-LO, RETIRA-SE PARA A JUDÉIA. 57A. Pouco tempo depois, Pompeu veio a Damasco e visitou a Baixa Síria, onde os embaixadores de toda a Síria, do Egito e da Judéia vieram encontrá-lo. Aristobulo mandou-lhe uma vinha de ouro no valor de quinhentos talentos. Estrabão de Capadócia faz menção desse magnífico presente nestes termos: "Vieram embaixadores do Egito que apresentaram a Pompeu uma coroa pesando quatro mil peças de ouro. Outros trouxeram-lhe da Judéia uma vinha ou jardim de ouro, a que chamavam Térpolis, isto é, 'delicioso'. Vi esse rico presente em Roma, no Templo de Júpiter Capitolino, a quem ele foi consagrado, com esta inscrição: ALEXANDRE, REI DOS JUDEUS, e o avaliavam em quinhentos talentos. Diz-se que fora mandado por Aristobulo, príncipe dos judeus". Antípatro veio procurar Pompeu logo depois, da parte de Hircano, e Nicodemos, enviado por Aristobulo, tornou Gabinio e Escauro seus inimigos, acusando a um de ter se apoderado de trezentos talentos e a outro de quatrocentos. Pompeu ordenou que Hircano e Aristobulo viessem procurá-lo, a fim de se resolver a questão. Quando chegou a primavera, suas tropas deixaram os quartéis de inverno, puseram-se em campo e devastaram de passagem a fortaleza de Apaméia, que Antíoco Cizicênio construíra. Pompeu observou o país que Ptolomeu Meneu ocupava, o qual não perdia em maldade para Dionísio Tripolitano, seu parente, que tivera a cabeça truncada, sendo que Meneu resgatou a sua por mil talentos. Pompeu os distribuiu às suas tropas, arrasou o castelo de Lusíada, do qual um judeu chamado Silas se havia apoderado, passou por Heliópolis e pela Cálcida, atravessou o monte para descer à Baixa Síria e veio de Pela a Damasco. Ouviu Hircano e Aristobulo com relação ao litígio entre eles e também os judeus que se queixavam de um e de outro, dizendo que não queriam estar sujeitos à dominação dos reis, pois Deus lhes havia ordenado que obedecessem apenas aos sacerdotes, e que reconheciam que os dois irmãos eram da casta sacerdotal, mas estes queriam mudar a forma de governo para usurpar a suprema autoridade e reduzir assim o seu país à escravidão. Hircano queixava-se de que, sendo o mais velho, Aristobulo queria privá-lo do que lhe pertencia por direito de nascimento e obrigá-lo a se contentar com uma pequena parte, usurpando todo o resto; que ele fazia incursões pelas terras contra os povos vizinhos e praticava a pirataria nos mares; que não se precisava de outra prova de seu mau caráter, de sua violência e de seu partidarismo senão o fato de haver levado o povo a se revoltar; e que mais de mil dentre os ilustres judeus que Antípatro tinha ganho apoiavam com o próprio testemunho essas queixas. Aristobulo afirmava, ao contrário, que o irmão era indigno da realeza pela sua covardia e incapacidade, que o tornavam inapto para o governo e o faziam desprezado por todo o povo, e que por essa razão fora obrigado a tomar a suprema autoridade, para que ela não passasse a outra família. Quanto à qualidade de rei, não a assumira senão pelo fato de que o seu pai sempre a tivera também. Com relação às testemunhas, eram uns moços que ninguém tolerava que viessem ali tão bem vestidos e enfeitados, mais parecendo ter vindo para ostentar a própria vaidade que para ouvir o pronunciamento de uma sentença. Pompeu, depois de ouvir os dois irmãos, não teve dificuldade em constatar que Aristobulo era violento. Disse-lhes que voltassem mais tarde, que procuraria dar remédio a tudo depois que dominasse os nabateenses e os reduzisse à obediência. Por enquanto, ordenava-lhes que vivessem em paz. Ele tratou Aristobulo com urbanidade e gentileza, temendo que este lhe cortasse a passagem, mas no entanto não lhe conquistou a confiança, pois Aristobulo, sem esperar a realização de suas promessas, partiu para a cidade de Délio e de lá retirou-se para a judéia. CAPÍTULO 6 POMPEU, OFENDIDO PELA RETIRADA DE ARISTÓBULO, MARCHA CONTRA ELE. DIVERSAS ENTREVISTAS ENTRE ELES, SEM RESULTADO. 575. Pompeu sentiu-se ofendido com a retirada de Aristobulo. Tomou as tropas que havia destinado aos nabateenses, mandou vir todas as que tinha em Damasco e no resto da Síria e com as legiões que comandava marchou contra ele. Depois de passar por Pela e Citópolis chegou a Core, onde começa aquela parte da )udéia que está no meio das terras, encontrou um castelo muito forte, de nome Alexandriom, situado no vértice de um monte, e soube que Aristobulo lá estava. Mandou dizer-lhe que viesse procurá-lo, e ele foi, porque o aconselharam a não se meter numa guerra contra os romanos. Depois de lhe falar do litígio com o irmão, relativo à primazia da Judéia, Pompeu deixou-o voltar ao castelo. O mesmo aconteceu ainda duas ou três vezes, nada deixando Aristóbulo de fazer, com a esperança de obter o reino e agradar a Pompeu. Ele, porém, não deixava de se preparar para a guerra, pois temia muito que Pompeu se pronunciasse em favor de Hircano. Pompeu ordenou-lhe que entregasse as fortalezas e escrevesse de próprio punho aos governadores, a fim de que não criassem dificuldades. Ele o fez, mas com tanta tristeza que se retirou para Jerusalém, a fim de poder resistir. Pompeu marchou também imediatamente contra ele e, no caminho, um enviado que vinha do Ponto trouxe-lhe a notícia de que o rei Mitridates fora morto por Farnaces, seu filho. CAPÍTULO 7 ARISTÓBULO ARREPENDE-SE, VEM PROCURAR POMPEU E CONVERSA COM ELE. OS SOLDADOS DE ARISTÓBULO RECUSAM-SE A DAR O DINHEIRO QUE ESTE HAVIA PROMETIDO, BEM COMO A RECEBER OS ROMANOS EM JERUSALÉM. POMPEU O RETÉM PRISIONEIRO E SITIA O TEMPLO, PARA ONDE OS PARTIDÁRIOS DE ARISTÓBULO SE HAVIAM RETIRADO. 576. O primeiro lugar onde Pompeu acampou foi Jerico, região abundante em palmeiras e onde cresce o bálsamo, que é o mais precioso de todos os perfumes, destilado de arbustos que o produzem mediante incisões com pedras bem afiadas. No dia seguinte, ele avançou para Jerusalém, e então Aristóbulo arrependeu-se do que havia feito. Foi procurá-lo, ofereceu-lhe uma soma de dinheiro, disse que o receberia em Jerusalém e rogou que ordenasse e dispusesse de tudo como lhe aprouvesse, mas sem guerra. Pompeu aceitou a proposta e concordou com esse desejo. Mandou Gabínio com tropas para receber o dinheiro e entrar na cidade. Mas ele voltou sem nada conseguir, porque os soldados de Aristóbulo não quiseram cumprir o tratado: não entregaram o dinheiro e ainda lhe fecharam as portas da cidade. Pompeu ficou de tal modo encolerizado que manteve Aristóbulo prisioneiro e marchou em pessoa contra Jerusalém. A cidade estava bem fortificada por todos os lados, exceto o norte, onde um vale largo e profundo rodeava o Templo, que era assim cercado por uma grossa muralha. CAPÍTULO 8 POMPEU, DEPOIS DE UM CERCO DE TRÊS MESES, TOMA O TEMPLO DE ASSALTO, MAS NÃO O SAQUEIA. DIMINUI O PODER DOS JUDEUS. DEIXA O COMANDO DO EXÉRCITO A ESCAURO. LEVA ARISTÓBULO PRISIONEIRO A ROMA, COM ALEXANDRE E ANTÍGONO, SEUS DOIS FILHOS, E SUAS DUAS FILHAS. ALEXANDRE ESCAPA DA PRISÃO. 577. A cidade de Jerusalém estava dividida. Uns diziam que era preciso abrir as portas a Pompeu. Os do partido de Aristóbulo afirmavam, ao contrário, que deviam fechá-las e se preparar para a guerra, pois ele era mantido prisioneiro. E, sem adiar mais, apoderaram-se do Templo, destruíram a ponte que o unia à cidade e resolveram defendê-lo. Os outros receberam o exército de Pompeu e entregaram-lhe a cidade e o palácio real. Ele logo mandou Pisão, seu lugar-te-nente-general, com as tropas para tomar posse dela. Pompeu, por sua vez, fortificava também as casas e os outros lugares próximos do Templo. Mas antes de tentar qualquer outro esforço, ofereceu condições de paz aos que pretendiam defendê-lo. Quando viu que eles as recusavam, fortificou com muralhas o que estava em redor. Hircano fornecia com prazer tudo o que era necessário. Pompeu escolheu atacá-lo pelo lado norte, porque era o mais fraco, embora fortificado por altas e fortes torres e por um grande fosso, feito com grande dificuldade num vale muito profundo, pois do lado da cidade onde ele havia estabelecido o seu quartel havia somente um precipício, por onde, depois que a ponte fora destruída, não se podia mais passar. Os romanos trabalharam com infatigável ardor para elevar as plataformas e cortaram para isso todas as árvores em redor. Depois, atacaram o Templo com máquinas que Pompeu fizera vir de Tiro e que lançavam grandes pedras à maneira de balas. Eles não teriam podido realizar esse feito com as plataformas se as leis de nossos antepassados, que proíbem trabalhar no dia de sábado, não tivessem impedido os sitiados de se opor a essa atividade naquele dia. Os romanos, sabendo disso, não lançavam pedras nem atacavam de qualquer outro modo, mas continuavam a elevar as plataformas e a fazer avançar as máquinas, para se servirem delas no dia seguinte. Pode-se, pois, imaginar o nosso zelo para com Deus e pela observância de nossas leis, pois nem o medo de sermos atacados nos afastou da celebração de nossos sacrifícios. Os sacerdotes não deixavam um dia sequer de oferecer sacrifícios a Deus sobre o altar, pela manhã e às nove horas. O perigo, por maior que fosse, não conseguia interrompê-los. Depois de três meses de cerco, o Templo foi tomado, num dia de jejum, na Olimpíada cento e setenta e nove, sendo cônsules C. Antônio e M. Túlio Cícero. Embora os romanos matassem todos os que encontravam, o medo da morte não impediu os que estavam ocupados nas sagradas cerimônias de continuar a celebrá-las, tanto estavam persuadidos de que o maior de todos os males é o abandono dos altares e a não-observância das santas leis. Para provar que o que digo não são palavras ditas apenas por mera formalidade, para pôr em evidência o espírito de piedade de nossa nação, basta ler o que referem todos os que narram os feitos de Pompeu, como Estrabão, Nicolau e particularmente Tito Lívio, que escreveu a História Romana. Mas devemos retomar a nossa narração. Quando a maior das torres cedeu à potência das máquinas e, caindo, fez cair também o muro que estava perto, os romanos apressaram-se a entrar pela brecha. O primeiro que subiu foi Cornélio Fausto, filho de Sila, seguido por seus comandados. Fúrio entrou pelo outro lado com a sua companhia, e Fausto passou entre ambos e entrou com a sua. Todos os lugares ficaram juncados de cadáveres. Parte dos judeus foi morta pelos romanos, os outros matavam-se entre si ou se precipitavam do alto ou incendiavam as próprias casas. A morte parecia-lhes mais doce que tão horrível desolação. Doze mil judeus vieram a perecer, mas poucos romanos. Absalão, tio e sogro de Aristóbulo, foi aprisionado. A santidade do Templo foi violada de maneira singular. Até então os profanos não somente jamais tinham posto o pé no Santuário, como nem mesmo o tinham visto. Pompeu, todavia, entrou nele com o seu séquito e viu o que não era permitido, senão aos sacerdotes. Lá encontrou a mesa, os candelabros e as taças de ouro, grande quantidade de perfumes e, no tesouro sagrado, cerca de dois mil talentos. Sua piedade impediu-o de tocar em qualquer coisa, e nada ele fez então que não fosse digno de sua virtude. No dia seguinte, ordenou aos oficiais do Templo que o purificassem, para oferecer sacrifícios a Deus, e deu a Hircano o cargo de sumo sacerdote, tanto por causa dos auxílios que dele recebera quanto porque impedira os judeus de abraçar o partido de Aristóbulo. Mandou em seguida cortar a cabeça aos que haviam insuflado a guerra e deu a Fausto e a outros, por terem sido os primeiros a subir às muralhas, recompensas dignas de seu valor. Quanto à cidade de Jerusalém, ele a tornou tributária dos romanos. Tirou ao judeus as cidades que haviam conquistado na Baixa Síria, determinou que obedecessem aos governadores e fixou, assim, em seus primeiros limites, o poder de nossa nação, antes tão grande e tão extenso. A cidade de Gadara algum tempo antes fora destruída, mas foi reconstruída em favor de Demétrio, seu liberto, que dela era oriundo. Pompeu restituiu aos seus antigos habitantes as que estavam bem dentro, em terra firme, a saber: Hipona, Citópolis, Pela, Diom, Samara, Maressa, Azoto, Jamnia e Aretusa, como também as que a guerra destruíra completamente. Quis ele que as cidades marítimas ficassem livres e fizessem parte da província, a saber: Gaza, Jope, Adora e a torre de Estratão, que Herodes depois mandou reconstruir com grande magnificência e enriqueceu com portos e belos Templos, mudando-lhe o nome para Cesaréia. Foi assim que a divergência entre Aristóbulo e Hircano causou tantos males, fazendo-nos perder a liberdade, sujeitando-nos ao Império Romano e nos obrigando a entregar o que havíamos conquistado da Síria pelas armas. A isso devemos acrescentar que esses novos senhores exigiram de nós, logo depois, mais de dez mil talentos e transferiram o reino, que antes sempre pertencera à casta sacerdotal, a homens cujos nascimentos nada tinham de ilustre. Falaremos mais particularmente, a seu tempo, de todas essas coisas. 578. Pompeu deixou a Escauro o governo da Baixa Síria até o Eufrates e as fronteiras do Egito, dirigiu-se para a Cilícia com duas legiões e foi para Roma rapidamente, levando consigo Aristóbulo como prisioneiro, bem como os seus dois filhos e as suas duas filhas. O mais velho chamava-se Alexandre, e o mais novo, Antígono. O mais velho, Alexandre, porém, conseguiu escapar, e o mais novo, Antígono, chegou a Roma com as suas irmãs. CAPÍTULO 9 ANTÍPATRO SERVE PROVEITOSAMENTE A ESCAURO NA ARÁBIA. 579. Escauro marchou com o seu exército para Petra, capital da Arábia, e, como as passagens e os caminhos para lá eram muito difíceis, os soldados, acossados pela fome, saqueavam os países da redondeza. Antípatro fez com que lhes trouxessem da Judéia, por ordem de Hircano, trigo e outras coisas necessárias. Sendo Hircano muito conhecido de Aretas, Escauro mandou-o a esse rei como embaixador. Ele saiu-se tão bem que o persuadiu a entregar trezentos talentos para impedir a ruína de seu país. Assim, a guerra terminou apenas começada. Escauro não sentiu menos alegria que Aretas. CAPÍTULO 10 ALEXANDRE, FILHO DE ARISTÓBULO, ARMA-SE NAJUDÉIA E FORTIFICA AS PRAÇAS. GABÍNIO DERROTA-O NUMA BATALHA E O CERCA NO CASTELO DE ALEXANDRIOM. ALEXANDRE ENTREGA-LHE O CASTELO E OUTRAS PRAÇAS. 580. Pouco tempo depois, Gabínio, general do exército romano, veio à Síria, onde fez coisas dignas de memória. Hircano, sumo sacerdote, desejou reconstruir os muros de Jerusalém, que Pompeu havia destruído, mas foi obstado pelos romanos. Alexandre, seu sobrinho, filho de Aristóbulo, reuniu e armou na Judéia dez mil homens de infantaria e mil e quinhentos cavaleiros, fortificou o castelo de Alexandriom, situado perto de Core, como também o de Macherom, nos montes da Arábia, e fazia incursões na Judéia sem que Hircano a isso se opusesse. Gabínio marchou contra ele e enviou Marco Antônio com outros oficiais, que se uniram aos judeus fiéis aos romanos, comandados por Pitolau e Malico, reforçados com o auxílio das tropas de Antípatro. Gabínio seguiu com o resto do exército, e Alexandre retirou-se para perto de Jerusalém, onde a se travou batalha. Os romanos venceram, mataram três mil homens e fizeram muitos prisioneiros. Gabínio sitiou em seguida o castelo de Alexandriom e prometeu perdão aos que o defendiam, caso se entregassem. Um grupo considerável, que fazia guarda fora da fortaleza, foi atacado pelos romanos, que mataram um grande número. Antônio distinguiu-se muito nessa ocasião, pois matou muitos com as próprias mãos. Gabínio deixou parte de seu exército para continuar o cerco, avançou com o resto para a Judéia e fez reconstruir todas as cidades que estavam destruídas. Desse modo, Samaria, Azo-to, Citópolis, Antedom, Rafia, Adora, Maressa, Gaza e várias outras foram restauradas e, depois de estar por tanto tempo desertas, puderam ser habitadas com segurança. Gabínio deixou tudo organizado e voltou ao cerco de Alexandriom. Apertando bastante o castelo, fez com que Alexandre se visse obrigado a pedir-lhe perdão e se dispusesse a entregar-lhe não somente aquela fortaleza, mas também Hircânia e Macherom. Gabínio aceitou o oferecimento e destruiu todas essas praças. A mulher de Aristóbulo, mão de Alexandre, que era afeiçoada aos romanos e cujo marido e os outros filhos ainda estavam prisioneiros em Roma, veio procurar Gabínio e obteve tudo o que desejava. Depois de dar as suas ordens, ele levou Hircano a Jerusalém, a fim de que cuidasse do Templo e se entregasse às outras funções do cargo de sumo sacerdote. Dividiu toda a província em cinco partes e estabeleceu muitos tribunais para a administração da justiça: um em Jerusalém, outro em Gadara, um terceiro em Hamate, um quarto em Jerico e um quinto em Seforis, na Galiléia. Assim os judeus, livres do domínio dos reis, passaram a um governo aristocrático. CAPÍTULO 11 ARISTÓBULO, PRISIONEIRO EM ROMA, SALVA-SE COM ANTÍGONO, UM DE SEUS FILHOS, E VEM ÀJUDÉIA. OS ROMANOS VENCEM-NO NUMA BATALHA. ELE SE RETIRA PARA ALEXANDRIOM, ONDE É SITIADO E PRESO. GABÍNIO O DEVOLVE PRISIONEIRO A ROMA, DERROTA ALEXANDRE, FILHO DE ARISTÓBULO, NUMA BATALHA E VOLTA A ROMA, DEIXANDO CRASSO EM SEU LUGAR. 581. Aristóbulo escapou de Roma e voltou para a Judéia, com o propósito de restaurar o castelo de Alexandriom, destruído de novo, como dissemos. Mas Gabínio enviou Cisena, Antônio e Servílio para impedi-lo de se apoderar dessa praça e para prendê-lo. Vários judeus uniram-se a ele, quer pelo respeito que tinham por um nome ilustre como o dele, quer por serem naturalmente inclinados à rebelião e à revolta. Pitolau, governador de Jerusalém, levou-lhes mil bons soldados. Vieram-lhe ainda outros, em grande número, porém a maior parte não estava armada, e ele os despediu como inúteis. Marchou depois para Macherom com o objetivo de tomá-la. Os romanos seguiram-no, alcançaram-no e o atacaram. Ele e os seus, embora se defendessem valentemente, foram derrotados, e cinco mil foram mortos. O resto salvou-se como pôde. Aristóbulo, com uns mil somente, refugiou-se em Macherom. O mau êxito de suas empresas, porém, não lhe abateu o ânimo nem o fez perder a esperança. Ele pôs-se a trabalhar para fortificá-la. Mas foi imediatamente sitiado e, após resistir por dois dias, ferido em várias partes do corpo, foi aprisionado junto com Antígono, seu filho, que fugira com ele de Roma, e levado a Gabínio. A má sorte desse príncipe levou-o segunda vez a Roma como prisioneiro. Ele havia reinado e exercido durante três anos e meio o sumo sacerdócio, com não menos brilho que coragem. O senado pôs os seus filhos em liberdade, porque Gabínio escreveu que o prometera à mãe deles, em consideração à entrega que ela fizera das praças, e eles foram encaminhados para a Judéia. 582. Gabínio preparava-se para marchar contra os partos. Já havia passado o Eufrates quando mudou de idéia e foi para o Egito, a fim de restaurar Ptolomeu, como dissemos em outro lugar. Antipatro, por ordem de Hircano, forneceu-lhe trigo para o exército, armas e dinheiro e persuadiu os judeus que moravam em Pelusa, que eram como os guardas da entrada no Egito, a fazer aliança com os romanos. 583. Gabínio, ao seu regresso do Egito, encontrou toda a Síria perturbada. Alexandre, filho de Aristóbulo, ocupara à força o governo e atraíra grande número de judeus para o seu partido. Assim, havendo reunido tropas, ele percorria toda a província e matava quantos romanos encontrava. Os outros retiraram-se para o monte Gerizim, e ele os cercou. Gabínio, encontrando as coisas nesse estado, enviou Antipatro, cuja prudência conhecia, para tentar persuadir os revoltosos a tomar melhor deliberação. Ele conduziu-se com tanta habilidade que convenceu vários, porém, não pôde persuadir Alexandre. Resolveu então, com os trinta mil judeus que o seguiam, travar batalha. Esta aconteceu perto do monte de Itabírio. Os romanos venceram, e os judeus perderam dez mil homens. Gabínio, depois de colocar em ordem as questões principais em Jerusalém, segundo o conselho de Antipatro, marchou contra os nabateenses e venceu-os também numa batalha. Mandou de volta para o país de origem dois senhores partos, de nome Mitridates e Orsano, que se haviam refugiado junto dele, e fez ao mesmo tempo correr a notícia de que eles escaparam para voltar ao seu país. Esse grande general, depois de tantos e tão belos feitos militares, voltou para Roma, e Crasso sucedeu-o no governo das províncias. Nicolau de Damasco e Estrabão da Capadócia escreveram os feitos de Pompeu e de Gabínio contra os judeus, e eles estão perfeitamente de acordo. CAPÍTULO 12 CRASSO SAQUEIA O TEMPLO. É DERROTADO PELOS PARTOS COM TODO O SEU EXÉRCITO. CÁSSIO RETIRA-SE PARA A SÍRIA E A DEFENDE CONTRA OS PARTOS. GRANDE PRESTÍGIO DE ANTIPATRO, SEU CASAMENTO E SEUS FILHOS. 584. Crasso foi fazer guerra aos partos. Passou à Judéia e levou do Templo não somente os dois mil talentos em que Pompeu não havia tocado, mas tudo o que lá encontrou, no valor de mais ou menos oito mil talentos. Tomou também ouro maciço, no peso de trezentas minas. (Cada mina pesa duas libras e meia.) O sacerdote Eleazar, que tinha a guarda dos tesouros do Templo, deu-lhe a barra de ouro não com mau fim, pois era homem de bem, mas por ter ao mesmo tempo a guarda de toda a tapeçaria, de extrema beleza e de altíssimo valor, que estava dependurada a essa barra. O temor de que Crasso, possuído de ambição desmedida e cioso de se enriquecer, apanhasse todos os ornamentos do Templo fê-lo pensar que podia entregar a barra de ouro quase como para resgatar as outras riquezas, o que ele fez somente após Crasso haver jurado não tocar em nada do que restava e contentar-se com tão grande presente. Essa barra de ouro estava encerrada e escondida propositadamente numa barra de madeira, e somente Eleazar o sabia. Crasso, porém, sem se incomodar em violar o seu juramento, apanhou tudo o que havia no Templo, e não é de admirar que encontrasse muitas riquezas, pois todos os judeus da Ásia e da Europa que ainda amavam a Deus as haviam oferecido durante muitos anos. Para provar que não exagero e que não é por orgulho de nossa nação que digo que o que Crasso roubou do Templo alcançava uma enorme soma, eu poderia citar vários historiadores. Contentar-me-ei, contudo, em relatar o que diz Estrabão da Capadócia, com estas palavras: "Mitridates mandou para a ilha de Cós, a fim de apanhar o dinheiro que a rainha Cleópatra lá havia depositado e oitocentos talentos dos judeus". Como não temos dinheiro público, a não ser o que consagramos a Deus, claramente se deduz dessas palavras que, pelo medo da guerra que Mitridates fazia aos judeus da Ásia, eles haviam mandado aqueles oitocentos talentos para a ilha de Cós. Do contrário, que necessidade tinham os da judéia, que possuíam além do Templo uma cidade tão forte, de enviar dinheiro para essa ilha? É possível que os de Alexandria tenham sido levados pelo mesmo temor a fazer a mesma coisa, se não tinham motivo para temer Mitridates? O mesmo Estrabão, falando da passagem de Silas pela Grécia para fazer guerra a Mitridates e das tropas que Lúculo mandou a Cirene para dominar a revolta de nossa nação, confirma a mesma coisa e mostra que o povo estava espalhado por toda a terra. Eis as palavras desse autor: "Havia na cidade de Cirene burgueses trabalhadores, estrangeiros e judeus. Estes se acham disseminados por todas as cidades, e seria difícil encontrar um lugar em toda a terra que não os tenha recebido ou onde eles não se tenham pacificamente estabelecido. O Egito e Cirene, quando estavam submetidos a um mesmo soberano, e várias outras nações tanto apreciaram os judeus que abraçaram os seus costumes. E, tendo sido criados e educados com eles, observaram as mesmas leis. Há também no Egito várias colônias de judeus, sem falar de Alexandria, onde eles ocupam uma grande parte da cidade e onde têm magistrados para resolver todas as suas questões segundo as suas leis e confirmar os contratos e outros atos entre eles, como nas repúblicas mais absolutas. O que fez essa nação se estabelecer de tal sorte no Egito foi que os egípcios tem a sua origem dos judeus, e esses dois países são tão próximos que facilmente se pode passar de um ao outro. Assim também Cirene, que não somente está perto do Egito, mas é parte dele". 585. Depois de fazer o que quis na Judéia, Crasso marchou contra os partos, mas foi derrotado por eles, com todo o seu exército, como dissemos alhures. Cás-sio retirou-se para a Síria, de onde resistia aos partos, que, orgulhosos com a vitória, lá faziam incursões. Depois veio a Tiro e passou à Judéia, onde tomou Tariquéia, levando escravos cerca de trinta mil homens. Pitolau, que havia abraçado o partido de Aristóbulo, estava entre os prisioneiros. Cássio os matou, a conselho de Antipatro, que, além de ter grande prestígio perante ele e na Iduméia, desposara uma mulher das mais ilustres famílias da Arábia, de nome Ciprom, da qual teve quatro filhos — Fazael, Herodes, que depois foi rei, José e Feroras — e uma filha, de nome Salomé. Antipatro conquistou a amizade de vários príncipes pela maneira respeitosa como os tratava e particularmente a do rei dos árabes, ao qual ele confiou os seus filhos quando fazia guerra a Aristóbulo. Cássio, depois de reunir mais forças, marchou para o Eufrates a fim de combater os partos, como o dizem outros historiadores. CAPÍTULO 13 POMPEU CORTA A CABEÇA A ALEXANDRE, FILHO DE ARISTÓBULO. FELIPIOM, FILHO DE PTOLOMEU MENEU, PRÍNCIPE DA CÁLCIDAT DESPOSA ALEXANDRA, FILHA DE ARISTÓBULO. PTOLOMEU, SEU PAI, O MATA E DESPOSA ESSA PRINCESA. 586. Pouco tempo depois, César apoderou-se de Roma. Pompeu e todo o senado de lá fugiram, passando para além do mar Jônico. Aristóbulo foi então libertado e mandado com duas legiões para a Síria, a fim de defender aquela província. Mas esse príncipe não desfrutou por muito tempo a esperança que a proteção de César lhe outorgava: os partidários de Pompeu envenenaram-no, e os de César embalsamaram o seu corpo com mel e o enterraram. Por muito tempo ele ficou nesse estado, até que Antônio mandou-o para a Judéia, para ser colocado no sepulcro dos reis. 587. Cipião, por ordem de Pompeu, cortou a cabeça de Alexandre, filho de Aristóbulo, em Antioquia, porque de novo ele se havia revoltado contra os romanos. Ptolomeu Meneu, príncipe da Cálcida, que está situada no monte Líbano, mandou seu filho Felipiom a Asquelom, à viúva de Aristóbulo, pedindo que lhe mandasse Antígono, seu filho e suas filhas. Felipiom enamorou-se de uma delas, de nome Alexandra, e a desposou. Algum tempo depois, Ptolomeu, seu pai, mandou matá-lo e desposou a mesma princesa, o que não o impediu de continuar a cuidar de seus irmãos e de suas irmãs. CAPÍTULO 14 ANTÍPATRO, POR ORDEM DE HIRCANO, AJUDA CÉSAR NA GUERRA DO EGITO E MOSTRA MUITO VALOR. 588. Quando César, depois da vitória e da morte de Pompeu, fez guerra ao Egito, Antípatro, governador da Judéia, ajudou-o muito, por ordem de Hircano. Isso porque Mitridates, pergameniano, que levava socorro a César, fora obrigado a se deter perto de Asquelom, pois não se sentia forte o bastante para passar por Pelusa. Antípatro uniu-se a ele com três mil judeus bem armados e não somente fez com que os árabes viessem também em seu socorro como foi a principal causa da obtenção de um grande auxílio da Síria, particularmente do príncipe Jamblique, de Ptolomeu, seu filho, de Ptolomeia, filha de Soeme, que habitava o monte Líbano, e de quase todas as cidades. Assim, Mitridates, reforçado com tantas tropas, veio a Pelusa, cujos habitantes recusaram-se a abrir as portas, e ele então os sitiou. Antípatro distinguiu-se muito nessa ocasião, pois foi o primeiro a dar o assalto, após abrir uma brecha, e assim permitiu a tomada da praça. Depois foi com Mitridates unir-se a César. Os judeus que moravam naquela província do Egito, denominada Onias, queriam opor-se à sua passagem, mas Antípatro persuadiu-os a abraçar o partido de César, servindo-se para isso das cartas do sumo sacerdote Hircano, com as quais não somente os animava, mas também dizia que ajudassem o seu exército com víveres e outras coisas necessárias. Os habitantes de Mênfis souberam-no e chamaram Mitridates. Ele se dirigiu para lá, e todos passaram para o seu lado. CAPITULO 15 ANTIPATRO CONTINUA A GRANJEAR GRANDE REPUTAÇÃO NA GUERRA DO EGITO. CÉSAR VEM À SÍRIA, CONFIRMA HIRCANO NO CARGO DE SUMO SACERDOTE E PRESTA GRANDES HONRAS A ANTIPATRO, NÃO OBSTANTE AS QUEIXAS DE ANTÍGONO, FILHO DE ARISTÓBULO. 589. Quando Mitridates e Antipatro chegaram a Delta, deram combate aos inimigos em um lugar chamado Campo do judeus. Mitridates comandava a ala direita, e Antipatro, a esquerda. A de Mitridates foi desbaratada e seria completamente destruída se Antipatro, que já tinha por sua vez vencido os inimigos, não tivesse vindo prontamente em seu auxílio, ao longo do rio, e não os tivesse salvo de tão grande perigo. Ele derrotou os egípcios, que se julgavam vencedores, perseguiu-os, devastou o seu acampamento e convidou Mitridates e os seus, que estavam na retaguarda, a tomar parte nos despojos. Mitridates perdeu oitocentos homens nesse combate, e Antipatro, somente cinqüenta. Mitridates não deixou de escrever a César, dizendo que a honra daquela vitória não somente era devida a Antipatro, mas que ele também o havia salvo, bem como aos seus. Esse glorioso testemunho fez César conceber altíssima estima por Antipatro, pois, além dos elogios que lhe fez, serviu-se dele nas ocasiões mais perigosas da guerra. Antipatro deu ainda provas de inteligência e de coragem não menores que o seu valor e chegou a ser ferido várias vezes. César, depois de terminada a guerra, veio por mar à Síria. Prestou grandes honras a Hircano e a Antipatro, confirmou aquele no cargo de sumo sacerdote e deu a este a prerrogativa de cidadão romano com todos os privilégios a ele inerentes. Muitos dizem que Hircano esteve naquela guerra e passara ao Egito, o que Estrabão da Capadócia confirma, com a autoridade de Asínio. Eis as suas palavras: "Depois que Mitridates entrou no Egito, Hircano, sumo sacerdote dos judeus, também entrou com ele". O mesmo Estrabão diz, em outro lugar, citando para isso Ifícrates, que "Mitridates primeiro veio sozinho, mas quando estava em Asquelom chamou Antipatro, governador da Judéia, em seu auxílio, que lhe levou três mil judeus e foi causa de que todos os outros grandes, entre os quais Hircano, sumo sacerdote, unissem as suas armas às dele". 590. Por esse mesmo tempo, Antígono, filho de Aristóbulo, foi procurar César e queixou-se de que seu pai fora envenenado por ter seguido o seu partido e que Cipião mandara cortar a cabeça de seu irmão. Rogou-lhe que tivesse compaixão dele, pois se via despojado do principado que pertencia ao irmão. Acusou também Hircano e Antípatro de o haverem usurpado pela força. Antípatro respondeu que Antígono era faccioso, sempre ocupado em suscitar rebeliões. Lembrou as dificuldades que haviam sofrido e os serviços prestados na última guerra, de que não queria outras provas senão ele mesmo. Disse também que Aristóbulo, ao contrário, tendo sido sempre inimigo do povo romano, fora com muita razão levado prisioneiro a Roma e que Cipião fizera muito bem em cortar a cabeça de seu irmão, devido aos desmandos e crimes deste. César, persuadido por essas razões, confirmou Hircano no cargo de sumo sacerdote e entregou a Antípatro a administração dos negócios e interesses da Judéia, oferecendo-lhe o governo que ele quisesse. CAPÍTULO 16 CÉSAR PERMITE A HIRCANO RECONSTRUIR OS MUROS DE JERUSALÉM. HONRAS PRESTADAS A HIRCANO PELA REPÚBLICA DE ATENAS. ANTÍPATRO RECONSTRÓI OS MUROS DE JERUSALÉM. 591. César acrescentou aos muitos favores que fizera a Hircano o de permitir-lhe reconstruir os muros de Jerusalém, os quais ainda não haviam sido restaurados depois que Pompeu os derrubara. Escreveu depois a Roma, aos cônsules, para que colocassem o decreto aos arquivos do Capitólio, nestes termos: "Valério, filho de Lúcio Pretor, referiu ao senado reunido no dia treze do mês de dezembro, no Templo da Concórdia, na presença de L. Copônio, filho de Lúcio, e de C. Papiro Quirino: que Alexandre, filho de Jasão, Numênio, filho de Antíoco, e Alexandre, filho de Doroteu, embaixadores dos judeus, pessoas de mérito e nossos aliados, vieram renovar a antiga amizade e a aliança de sua nação com o povo romano. Para nos dar uma prova disso, eles nos trouxeram uma taça e um escudo no valor de cinqüenta mil peças de ouro e nos rogaram que lhes déssemos cartas endereçadas às cidades livres e aos reis, para poderem passar em segurança pelas suas terras e pelos seus portos. A esse respeito, o senado determinou que eles serão recebidos na amizade e na aliança do povo romano, que tudo o que pedem lhes seja concedido e que serão aceitos os presentes. Isso aconteceu no nono ano do sumo sacerdócio e do principado de Hircano e no mês de paneme". 592. Esse príncipe dos judeus recebeu também outra grande honra da República de Atenas, que, para demonstrar a gratidão que sentia, lhe mandou um decreto nestes termos: "Na lua vigésima do mês de paneme, sendo Dionísio Asclepíades juiz e sumo sacerdote, apresentou-se aos governadores um decreto dos atenienses, dado sob Agátocles, de que Eucles, filho de Menandro, faz menção na undécima lua de muniquiom. Depois que Doroteu, sumo sacerdote e os presidentes dentre o povo recolheram os votos, Dionísio, filho de Dionísio, disse que Hircano, filho de Alexandre, sumo sacerdote e príncipe dos judeus, sempre mostrou afeto por toda a nossa nação em geral e por todos os cidadãos em particular, que não perdeu ocasião de disso nos dar provas, quer pela maneira como recebeu os nossos embaixadores e os que foram procurá-lo para assuntos particulares, quer pelo cuidado que teve de os fazer chegar em segurança até aqui, como diversas pessoas o afirmam. E, pelo que disse em seguida Teodoro, filho de Teodoro Símias, da virtude desse príncipe e de sua disposição em nos prestar todos os bons ofícios que dele dependerem, decretou-se honrá-lo com uma coroa de ouro, erguer-lhe uma estátua de bronze no Templo de Demos e das Graças e fazer-se publicar por um arauto, nos lugares de exercícios públicos, de luta e de corrida e no teatro, quando aí se representarem novas comédias ou tragédias em honra de Baco, de Ceres e de outras divindades, que essa coroa lhe foi dada por causa de sua virtude. E também, enquanto ele continuar a nos demonstrar tão grande afeto, nossos principais magistrados cuidarão em reconhecê-lo por toda espécie de honras e serviços, para que todos saibam de nossa gratidão e de nossa estima por todas as pessoas de mérito, e assim todos venham a desejar a nossa amizade. Determinou-se ainda que se nomearão embaixadores para levar-lhe este decreto e agradecer-lhe por tantos sinais de honra que teve a gentileza de nos conceder". 593. Depois que César pôs em ordem todos os negócios da Síria, tornou a embarcar em seu navio, e Antípatro, depois de o acompanhar, voltou à Judéia, onde a primeira coisa que fez foi reerguer os muros de Jerusalém. Em seguida, passou por toda a província para impedir, com os seus conselhos e advertências, as rebeliões e sedições, fazendo o povo ver que, obedecendo a Hircano, como era seu dever, poderia desfrutar em paz todos os seus bens. Mas se a esperança de obter vantagens nas perturbações da ordem os fizesse suscitar revoltas e rebeliões, eles descobririam que, em vez de governador, ele seria um senhor muito severo, que Hircano, em vez de um rei cheio de amor pelos seus súditos, seria um rei sem piedade, e que César e os romanos, em vez de príncipes, seriam inimigos mortais e irreconciliaveis, pois jamais tolerariam que se suscitassem agitações e mudanças no que haviam ordenado. Essas palavras de Antípatro tiveram tal força que produziram uma feliz tranqüilidade. CAPÍTULO 17 ANTÍPATRO CONQUISTA GRANDE PRESTÍGIO POR SUA VIRTUDE. FAZAEL, SEU FILHO MAIS VELHO, EFEITO GOVERNADOR DE FERUSALÉM, E HERODES MANDA MATAR VÁRIOS LADRÕES CONDENADOS À MORTE. INVEJA DE ALGUNS GRANDES CONTRA ANTÍPATRO E SEUS FILHOS. ELES OBRIGAM HIRCANO A PROCESSAR HERODES POR CAUSA DAQUELES HOMENS QUE MANDARA MATAR. HERODES COMPARECE PERANTE O TRIBUNAL E DEPOIS RETIRA-SE. VEM SITIAR JERUSALÉM E A TERIA TOMADO SE ANTÍPATRO E FAZAEL NÃO O TIVESSEM FEITO DESISTIR. HIRCANO RENOVA A ALIANÇA COM OS ROMANOS. DEMONSTRAÇÕES DE ESTIMA E DE AFETO DOS ROMANOS POR HIRCANO E PELOS JUDEUS. CÉSAR É MORTO NO CAPITÓLIO POR CÁSSIO E BRUTO. 594. A incapacidade e a indolência de Hircano deram a Antípatro motivo para lançar as bases da grandeza em que a sua família mais tarde se viu elevada. Ele constituiu Fazael, seu filho mais velho, governador de Jerusalém e de toda a província. Herodes, o segundo filho, foi feito governador da Galiléia. Este, embora não tivesse ainda quinze anos, era tão inteligente e corajoso que bem depressa mostrou uma virtude superior à idade. De uma feita, prendeu Ezequias, chefe de uns ladrões que assaltavam todo o país e mandou matá-lo, havendo-o condenado à morte com todos os seus companheiros. Esse ato tão útil à província suscitou-lhe tanto afeto entre os sírios que estes proclamavam em todas as cidades e nos campos que lhes eram devedores da tranqüilidade e da posse pacífica de seus bens. Obteve ainda outra vantagem: travou conhecimento com Sexto César, governador da Síria e parente do grande César. Essa estima produziu grande emulação em Fazael, que, não querendo ser inferior ao irmão em mérito e em virtude, não media esforços para conquistar o afeto do povo de Jerusalém. Ele desempenhava em pessoa os cargos públicos e com tanta justiça e de maneira tão agradável que ninguém tinha motivo de queixa nem podia acusá-lo de abuso de poder. Como a glória dos filhos vem recair sobre o pai, a nossa nação concebeu tanto amor por Antípatro que lhe prestava as mesmas honras, como se ele fosse rei. Tão sábio ministro, em vez de se deixar dominar pelo brilho de tão grande prosperidade, como a maior parte dos homens, conservou sempre o mesmo afeto e a mesma fidelidade para com Hircano. Mas os grandes dos judeus, vendo-o elevado — com os seus filhos — a tão grande autoridade, tão amado pelo povo e tão rico com o que recebia das rendas da Judéia e das gratificações de Hircano, deixaram-se dominar por uma extrema inveja, que aumentou quando souberam que ele havia conquistado também o afeto dos imperadores. Diziam que ele persuadira Hircano a enviar-lhes uma grande soma de dinheiro e, em lugar de apresentá-la em nome do rei, oferecera-a em seu próprio nome. Disseram o mesmo de Hircano, mas ele riu-se disso. O que os aborrecia acima de tudo era que Herodes lhes parecia tão violento e ousado que não duvidavam de que ele aspirava a um governo tirânico. Resolveram então procurar Hircano para acusar abertamente Antípatro e lhe falaram deste modo: "Até quandoVossa Majestade permitirá o que acontece debaixo dos vossos olhos? Não vedes que Antípatro e seus filhos desfrutam todas as honras da soberania e deixam-vos somente o nome de rei? Não vos importa então saber disso? Não vos importa dar a tudo um remédio? Julgais estar em segurança descuidando-vos da salvação do Estado e de vossa própria vida? Esses indivíduos não agem mais por vossa ordem nem como vossos dependentes. Seria bajular a si mesmo acreditar neles, mas eles agem abertamente como soberanos. QuerVossa Majestade prova melhor do que ver que, embora as nossas leis proíbam mandar matar um homem, por mais perverso que seja, antes de ele ser condenado juridicamente, Herodes não teve receio de violar essas leis, mandando matar Ezequias e seus companheiros sem mesmo vos pedir licença para isso?" 595. Essas palavras persuadiram Hircano. As mães daqueles que Herodes condenara à morte aumentaram ainda a sua cólera, pois não se passava um dia sem que elas fossem ao Templo rogar a ele e a todo o povo que obrigasse Herodes a se justificar perante os judeus por uma ação tão criminosa. Assim, ele intimou-o a comparecer perante o tribunal. Logo que Herodes recebeu a notificação, pôs em ordem as coisas da Galiléia e partiu para Jerusalém. Mas, em vez de levar uma comitiva particular, se fez acompanhar, a conselho de seu pai, por tantas pessoas quantas julgou necessárias, para não despertar suspeitas a Hircano e estar ao mesmo tempo em condições de se defender, caso o atacassem. Sexto César, governador da Síria, não se contentou em escrever a Hircano em favor de Herodes, mas ordenou que ele fosse absolvido, empregando até mesmo ameaças, para o caso de não ser atendido. Tão forte recomendação, porém, não era necessária, pois Hircano amava Herodes como se fosse seu filho. Quando ele compareceu diante dos juizes com os que o acompanhavam, os seus acusadores ficaram tão atônitos que nem um sequer ousou abrir a boca e sustentar o que haviam dito contra ele na sua ausência. Saméias, então, que era homem de grande virtude e não tinha receio de se expressar com toda a liberdade, levantou-se e falou, dirigindo-se a Hircano e aos juizes: "Majestade e vós, senhores, que aqui estais reunidos para julgar este acusado: quem já viu um homem obrigado a se justificar apresentar-se desta maneira? Creio que se teria dificuldade em citar exemplo semelhante. Todos os que até aqui compareceram a esta assembléia vieram com humildade e temor, vestidos de preto e com os cabelos em desalinho, em atitude de mover à compaixão. Este, ao contrário, acusado de haver cometido vários assassínios, quer evitar o castigo e comparece diante de nós vestido de púrpura, com os cabelos bem penteados e acompanhado por uma tropa de homens armados, a fim de que, se o condenarmos, segundo as leis, ele zombe delas e estrangule a todos nós também. Não o censuro, porém, de agir assim, pois se trata de salvar a própria vida, que lhe é mais cara que a observância de nossas leis, mas censuro a todos vós por tolerá-lo, e particularmente ao rei". E, voltando-se para os juizes, acrescentou: "Mas vós sabeis, senhores, que Deus não é menos justo que poderoso, e assim, Ele permitirá que este mesmo Herodes, que quereis absolver para agradar a Hircano, nosso rei, vos castigue por isso um dia e castigará também a ele". 596. Essas palavras foram uma profecia, que mais tarde se verificou: Herodes, tendo sido constituído rei, mandou matar todos aqueles juizes, exceto Saméias, a quem sempre tratou com grande honra, tanto por sua virtude quanto porque, quando junto com Sósio sitiou Jerusalém, ele exortou o povo a recebê-lo, dizendo que faltas passadas não deveriam impedir que se submetessem a Herodes, como diremos mais particularmente a seu tempo. Mas, voltando ao nosso assunto, Hircano, vendo que o sentimento dos juizes tendia a condenar Herodes, adiou o julgamento para o dia seguinte e mandou dizer-lhe secretamente que escapasse. Assim, com o pretexto de temer Hircano, ele retirou-se para Damasco e, quando se viu em segurança junto de Sexto César, declarou em voz alta que, se o citassem uma segunda vez, estava resolvido a não comparecer. Os juizes, irritados com essa declaração, esforçaram-se por demonstrar a Hircano que o propósito de Herodes era destruí-lo, o rei não podia mais ignorá-lo. Mas ele era tão covarde e estúpido que não sabia que deliberação tomar. Enquanto isso, Herodes obteve de Sexto César, por meio de uma soma de dinheiro, a nomeação para governador da Baixa Síria, e então Hircano começou a temer que Herodes tomasse as armas contra ele. Seu temor não foi em vão. Herodes, para vingar-se por o haverem citado em juízo, pôs-se em campo com um exército, a fim de tomar Jerusalém. E nada o impediria, não fossem os rogos de Antípatro, seu pai, e de Fazael, seu irmão. Eles foram procurá-lo e lhe fizeram ver que já era suficiente fazer tremer os inimigos; que ele não devia tratar como inimigos os que não o haviam ofendido; que não poderia, sem ingratidão, tomar as armas contra Hircano, a quem devia a sua elevação e a sua grandeza; que não se devia lembrar de ter sido chamado a juízo, e sim de não ter sido condenado; que a prudência o obrigava a considerar que os eventos da guerra são duvidosos, pois somente Deus tinha a vitória nas mãos, para dá-la como lhe aprouvesse; e que ele não tinha motivos para esperar obtê-la combatendo contra o seu rei e benfeitor, que jamais lhe fizera mal algum, pois só fora levado àquele ato pelos maus conselhos que recebera. Herodes, persuadido por essas razões, contentou-se em haver mostrado a toda a nação até onde chegava o seu poder e adiou a execução de seus grandes desígnios e o gozo do efeito de suas esperanças. 597. As coisas na Judéia chegaram a esse estado. César, que tinha voltado a Roma, preparou-se para passar à África, a fim de combater Cipião e Catão. Hircano enviou-lhe embaixadores para rogar que renovasse a aliança. Creio dever relatar, a esse respeito, as honras que a nossa nação recebeu dos imperadores romanos e os tratados de aliança feitos entre eles, a fim de que todos saibam da estima e do afeto que os soberanos da Ásia e da Europa tiveram por nós em razão de nosso valor e de nossa fidelidade. Os historiadores persas e macedônios escreveram muitas coisas que nos são muito honrosas — não somos os únicos a ter a própria história: outros povos também as possuem. Porém, como a maior parte daqueles que nos odeiam recusam-se a prestar-lhes fé, com o pretexto de que ninguém a conhece, pelo menos não poderão contradizer os documentos emanados dos romanos, publicados em todas as cidades e gravados em tábuas de cobre postas no Capitólio. Júlio César quis também, pela inscrição que mandou colocar sobre uma coluna de bronze, em Alexandria, dar testemunho do direito de burguesia que têm os judeus nessa poderosa cidade. E acrescentarei a essas provas determinações dos imperadores e decretos do senado concernentes a Hircano e a toda a nossa nação. "Caio Júlio César, imperador, sumo sacerdote e ditador, pela segunda vez, aos governadores, ao senado e ao povo de Sidom, saudação. Mandamo-vos a cópia da carta que escrevemos a Hircano, filho de Alexandre, príncipe e sumo sacerdote dos judeus, a fim de que a façais traduzir para o grego e para o latim nos vossos arquivos". Eis o que dizia essa carta: "Júlio César, imperador, ditador pela segunda vez e sumo sacerdote. Depois de reunidos em conselho, determinamos o que se segue. Como Hircano, filho de Alexandre, judeu de nascimento, sempre nos deu provas de seu afeto, tanto na paz como na guerra, como vários generais do exército no-lo demonstraram, e por ter na última guerra de Alexandria levado por nossa ordem a Mitridates mil e quinhentos soldados, não sendo em valor inferior aos outros, queremos que ele e os seus descendentes sejam perpetuamente príncipes e sumos sacerdotes dos judeus para exercer esses cargos segundo as leis e os costumes de seu país, como também que sejam nossos aliados e amigos, e que desfrutem todos os direitos e privilégios que pertencem ao sumo sacerdócio. E, se alguma divergência surgir com relação à disciplina que se deve observar entre os de sua nação, seja ele o juiz e não seja obrigado a dar quartéis de inverno aos soldados nem a pagar qualquer tributo". [Seguem-se outras cartas.] "Caio César, cônsul, ordena que o principado dos judeus fique para os filhos de Hircano, com o usufruto das terras que eles possuem e que ele seja sempre príncipe e sumo sacerdote de sua nação e administre a justiça. Queremos também que lhes sejam enviados embaixadores para firmar amizade e aliança e que sejam colocadas no Capitólio e nos Templos de Tiro, de Sidom e de Asquelom tábuas de cobre, onde todas essas coisas deverão ser gravadas em caracteres romanos e gregos, e que esse ato seja comunicado a todos os magistrados de todas as cidades, a fim de que todos saibam que consideramos os judeus nossos amigos e desejamos que os seus embaixadores sejam bem recebidos. A presente ata será mandada a toda parte". "Caio César, imperador, ditador e cônsul. Determinamos, quer por motivo de honra, de virtude e de amizade, quer para o bem e benefício do senado e do povo romano, que Hircano, filho de Alexandre e seus filhos sejam sumos sacerdotes de Jerusalém e da nação do judeus, usufruindo esse cargo com os mesmos direitos e privilégios de que desfrutaram os seus predecessores". "Caio César, cônsul pela quinta vez. Ordenamos que seja fortificada a cidade de Jerusalém; que Hircano, filho de Alexandre, sumo sacerdote e príncipe dos judeus, governe segundo o que julgar mais conveniente; que coisa alguma se diminuirá aos judeus no segundo ano da renda de seus tributos; e que eles não serão inquietados e ficarão isentos dos impostos". "Caio César, imperador pela segunda vez. Ordenamos que os habitantes de Jerusalém paguem todos os anos um tributo, do qual a cidade de Jope estará isenta, mas que no sétimo ano, a que eles chamam ano do sábado, nada pagarão, porque nesses anos eles não semeiam nem cultivam a terra, nem recolhem os frutos das árvores; que pagarão de dois em dois anos, em Sidom, o tributo que consiste em um quarto das sementes e os dízimos a Hircano e seus filhos, como pagaram os seus predecessores. Determinamos também que nenhum governador, comandante de tropas ou embaixador poderá recrutar soldados ou fazer imposição alguma nas terras dos judeus, quer quanto aos quartéis de inverno, quer por qualquer outro pretexto, mas que eles sejam isentos de todas as coisas e desfrutem pacificamente tudo o que conquistaram ou compraram. Queremos ainda que a cidade de Jope, que eles possuíam ao fazer aliança com o povo romano lhes pertença, e que Hircano e seus filhos usufruam os rendimentos que dela provierem, tanto do que lhes pagam os lavradores quanto do direito de ancoragem ou da alfândega das mercadorias que se transportam a Sidom, que perfazem a cada ano vinte mil e seiscentos e setenta e cinco medidas, exceto no sétimo ano, a que os judeus chamam ano de descanso, no qual eles não cultivam nem colhem os frutos das árvores. Quanto às cidades que Hircano e seus predecessores possuíam no Grande Campo, apraz ao senado que Hircano e os judeus delas desfrutem da mesma maneira que antes. Ele quer também que as convenções feitas em todos os tempos entre os judeus e os sacerdotes sejam observadas e que eles usufruam todos os favores que lhes foram concedidos pelo senado e pelo povo romano, o que terá lugar mesmo com relação a Lida. Quanto às terras e outras coisas que os romanos haviam cedido aos reis da Síria e da Fenícia por causa da aliança que havia entre eles, o senador ordena que Hircano, príncipe dos judeus delas também desfrute e que, como ele, os seus filhos e os embaixadores tenham o direito de sentar-se com os senadores para assistir aos combates de gladiadores e outros espetáculos públicos. E ainda, quando tiverem alguma coisa que pedir ao senado, o ditador ou o coronel da cavalaria os introduzirá e lhes fará saber dentro de dez dias a resposta que se lhes tiver de dar". "Caio César, imperador, ditador pela quarta vez, cônsul pela quinta vez e declarado ditador perpétuo, falou deste modo quanto aos direitos que pertencem a Hircano, filho de Alexandre, sumo sacerdote e príncipe dos judeus: Os que antes governaram as nossas províncias, tendo prestado valiosos testemunhos a Hircano, sumo sacerdote dos judeus e aos de sua nação, de que o senado e o povo romano testemunharam o seu contentamento, é bem razoável que disso conservemos a memória e procuremos que o senado e o povo romano continuem a manifestar a Hircano, aos seus filhos e a toda a nação dos judeus todo o seu afeto". "Caio Júlio, ditador e cônsul, aos magistrados, ao conselho e ao povo dos parianianos, saudação. Os judeus vieram de diversos lugares procurar-nos em Delos e nos fizeram queixas, na presença de vossos embaixadores, da proibição que lhes haveis feito de viver segundo as suas leis e de fazer sacrifícios. Isso é exercer contra amigos e aliados nossos um rigor que não podemos permitir, não sendo justo obrigá-los no que se refere à sua disciplina e impedir-lhes de entregar o seu dinheiro, segundo o costume de sua nação, em festins públicos e em sacrifícios, pois isso lhes é permitido na própria cidade de Roma. E, pelo mesmo edito com que Caio César, cônsul, proibiu as assembléias públicas nas cidades, ele excetuou os judeus. Assim, embora proibamos essas assembléias, como ele o fez, permitimos aos judeus continuar as suas, como eles fazem e fizeram em todos os tempos. Assim, se ordenastes alguma coisa que fere os nossos amigos e aliados, é bem razoável que a revogueis em consideração à sua virtude e afeição por nós". Depois da morte de César, Antônio e Dolabela, que então eram cônsules, reuniram o senado, fizeram lá entrar os embaixadores dos judeus e apresentaram o que eles pediam. Foi-lhes concedido tudo, e renovou-se por um decreto o tratado de confederação e de aliança. O próprio Dolabela, tendo recebido cartas de Hircano, escreveu também para toda a Ásia, particularmente à cidade de Éfeso, que era a principal. Eis o que dizia a carta: "O imperador* Dolabela, aos magistrados, ao conselho e ao povo de Éfeso, saudação. Alexandre, filho de Teodoro, embaixador de Hircano, sumo sacerdote, príncipe dos judeus, nos disse que os de sua nação não podem presentemente ir à guerra porque nos dias de sábado as leis de seu país lhes proíbem usar armas, empreender viagem e até mesmo cuidar do alimento. Eis por que, tencionando agir do mesmo modo como agiram os nossos predecessores, em cuja dignidade estamos, nós os isentamos de ir à guerra e permitimo-lhes viver segundo as suas leis e reunir-se como estão habituados a fazer, segundo a sua religião o determina, a fim de se entregarem às coisas santas e oferecerem sacrifícios. Entendemos que o comuniqueis a todas as cidades de vossa província". _____________________ * A palavra "imperador" era então um título de honra que se dava aos generais que houvessem obtido alguma importante vitória sobre os inimigos. O cônsul Lúcio Lêntulo disse, opinando no senado, que os judeus eram cidadãos romanos e viviam em Éfeso segundo as leis que a religião deles prescrevia e que lá anunciara, do alto de seu tribunal, a dezoito de setembro, que eles estavam isentos de ir à guerra. Há vários decretos do senado e atos dos imperadores romanos em favor de Hircano e de nossa nação e cartas escritas às cidades e aos governadores das províncias relacionadas aos nossos privilégios. Os que os lerem sem prevenção não terão dificuldade em lhes prestar fé. Assim, tendo mostrado com provas tão claras e tão constantes a nossa amizade com o povo romano, e sendo que as colunas e as tábuas de cobre que ainda hoje se vêem no Capitólio são e serão sempre sinais indubitáveis disso, creio que nenhuma pessoa sensata delas ainda queira duvidar. Ao contrário, estou certo de que se julgará, pelo que acabo de dizer, da verdade das outras provas que eu ainda poderia trazer, mas que suprimo como supérfluas, para não aborrecer o leitor. 598. Sobreveio nesse mesmo tempo, pelo motivo que vou dizer, uma grande agitação na Síria. Basso, que era do partido de Pompeu, mandou matar Sexto César à traição e apoderou-se da província com tropas que comandava. Os do partido de César imediatamente marcharam contra Basso, com todas as suas forças. Os arredores de Apaméia foram teatro dessa guerra. Antipatro, para mostrar a sua gratidão pelos favores que devia a César e vingar a morte deste, prestou-lhes socorro, sob o comando de seu filho. Como essa guerra se prolongava, Marcos foi enviado para substituir Sexto. César foi morto no senado por Cássio, por Bruto e por outros conjurados após reinar três anos e meio, como se poderá ver mais particularmente em outras histórias. CAPÍTULO 18 CÁSSIO VEM À SÍRIA E TOMA SETECENTOS TALENTOS EM DINHEIRO DA JUDÉIA. HERODES GANHA O SEU AFETO. INGRATIDÃO DE MALICO PARA COM ANTIPATRO. 599. Depois da morte de César, surgiu uma grande guerra civil entre os romanos. Os principais do senado iam por toda parte recrutar soldados. Cássio veio à Síria, tomou o comando das tropas que sitiavam Apaméia, levantou o cerco e conquistou Basso e Marcos para o seu partido. Em seguida, foi de cidade em cidade, reunindo soldados e exigindo grandes tributos, principalmente na Judéia, de onde levou mais de setecentos talentos de dinheiro. Antipatro, vendo as coisas malparadas, ordenou aos seus dois filhos que levassem parte dessa soma. Malico, que não o estimava, e outros foram encarregados do resto. Herodes viu que a prudência o obrigava a ganhar o partido dos romanos, às custas de outrem, e foi o primeiro a executar a comissão na Galiléia, tornando-se querido de Cássio. Os outros governadores, não tendo agido do mesmo modo, irritaram-no muito, e ele pôs em leilão os habitantes de várias cidades, das quais as principais eram Gosna, Emaús, Lida e Tamna, e teria mandado matar Malico, se Hircano não lhe tivesse aplacado a cólera, mandando-lhe cem talentos por meio de Antipatro. Depois que Cássio partiu, Malico conspirou contra Antipatro, na esperança de que a morte deste confirmaria a dominação de Hircano. Antipatro, porém, veio a sabê-lo e partiu imediatamente para além do Jordão, a fim de reunir tropas tanto entre os habitantes dessas províncias quanto entre os árabes. Quando Malico, que era um homem muito astucioso, viu que a sua traição fora descoberta, protestou com juramento que jamais tivera aquela intenção e que, sendo Fazael, filho mais velho de Antipatro, governador de Jerusalém e Herodes, seu segundo filho, comandante das tropas, não havia motivos para que semelhante pensamento lhe tivesse vindo à mente. Assim, ele reconciliou-se com Antipatro, porém Marcos, governador da Síria, descobriu o plano, que perturbaria toda a Judéia, e o teria matado se Antipatro não lhe salvasse a vida com os seus rogos, e nisso os fatos mostraram que ele cometeu uma grande imprudência. CAPÍTULO 19 CÁSSIO E MARCOS, PARTINDO DA SÍRIA, DÃO A HERODES O COMANDO DO EXÉRCITO QUE HAVIAM REUNIDO E PROMETEM FAZÊ-LO REI. MALICO MANDA ENVENENAR ANTIPATRO. HERODES DISSIMULA, FINGINDO NÃO O SABER. 600. Cássio e Marcos, após terem reunido um exército, deram o comando a Herodes, bem como o de seus navios, e o fizeram governador da Baixa Síria, prometendo fazê-lo rei depois que terminasse a guerra empreendida contra Antônio e o jovem César (depois cognominado Augusto). Tão grande autoridade, unida a esperanças ainda maiores, aumentou o temor que Malico tinha de Antipatro. Resolveu por isso matá-lo. Para executar o seu projeto, subornou um camareiro de Hircano, que o envenenou um dia, quando ambos jantavam em casa desse príncipe dos judeus. Então Malico, seguido por soldados, foi à cidade para impedir que essa morte causasse alguma agitação. Herodes e Fazael, filhos de Antípatro, sentiram imenso a perda do pai e, tendo descoberto a maldade daquele camareiro, não tiveram dificuldade em deduzir que fora Malico o autor do crime, mas ele o negou terminantemente. Esse foi o fim de Antípatro. Ele era um homem de bem e afeiçoadíssimo à sua pátria. Herodes quis partir imediatamente com um exército contra Malico, mas Fazael julgou mais conveniente dissimular, para surpreendê-lo, a fim de que não os pudessem acusar de suscitar uma guerra civil. Assim, Herodes fingiu prestar fé aos protestos que Malico fazia de não ter tido parte em tão negra ação e ocupou-se em enriquecer o túmulo que fizera edificar para o pai. Nesse meio tempo, ele veio a Samaria e a encontrou em grande desordem. Então procurou acomodar as coisas e remediar as dificuldades entre os habitantes. Pouco tempo depois, próximo da celebração de uma grande festa em Jerusalém, ele para lá se dirigiu com os seus soldados. Malico, espantado por vê-lo chegar em tal companhia, convenceu Hircano a impedi-lo de entrar daquela maneira, dizendo que não era permitido a profanos, como os que estavam com Herodes, assistir às santas cerimônias. Herodes, porém, sem se deter ante tal proibição, entrou de noite na cidade e assim tornou-se ainda mais temível a Malico. O traidor recorreu aos seus embustes ordinários: chorava em público a morte de Antípatro, que dizia ter sido seu amigo íntimo, enquanto reunia soldados em segredo, para garantir a própria segurança. Herodes, vendo-o desconfiado, julgou melhor não dar a conhecer que sabia de sua hipocrisia. Preferiu fingir viver em paz com ele, para tranqüilizá-lo. CAPÍTULO 20 CÁSSIO, A ROGO DE HERODES, MANDA ORDEM AOS CHEFES DAS TROPAS ROMANAS PARA QUE VINGUEM A MORTE DE ANTÍPATRO, E ELES APUNHALAM MALICO. FÉLIX, QUE COMANDAVA A GUARNIÇÃO ROMANA EM JERUSALÉM, ATACA FAZAEL, QUE OBRIGA FÉLIX A PEDIR A CAPITULAÇÃO. 601. Quando Cássio, que sabia ser Malico um homem muito mau, soube por Herodes que ele mandara envenenar o seu pai, pediu-lhe para vingar a sua morte e enviou ordem secretas aos comandantes das tropas romanas que estavam em Tiro, a fim de que o ajudassem num ato tão justo. Cássio depois tomou Laodicéia, e os maiorais do país vieram trazer-lhe coroas e dinheiro. Herodes não duvidou de que Malico também viria e julgou ser aquela a ocasião mais propícia para executar o seu desígnio. Malico, estando já perto de Tiro, na Fenícia, começou a desconfiar e imaginou então uma empresa de vulto: levar de Tiro para a judéia o seu filho que lá estava como refém, incitar o povo a se revoltar e usurpar o governo enquanto Cássio estava ocupado na guerra contra Antônio. Esse projeto tão ousado ter-se-ia realizado se a sorte lhe tivesse sido favorável. Mas como Herodes, que era extremamente hábil, suspeitava de que Malico tinha em mente algum projeto importante, enviou um dos seus sob o pretexto de preparar uma ceia para vários amigos; na realidade, ele estava indo rogar aos chefes das tropas romanas que comparecessem à presença de Malico levando punhais. Eles partiram imediatamente, alcançaram-no perto da cidade, ao longo do mar, e o mataram a golpes de punhal. Ao saber disso, o espanto de Hircano foi tão grande que ele perdeu a fala. Depois, mais calmo, mandou perguntar a Herodes o motivo daquela ação e soube que tudo se fizera por ordem de Cássio. Então louvou-o e disse que Malico era um homem muito mau e inimigo de sua pátria. Assim, a morte de Antípatro foi por fim vingada. 602. Depois que Cássio partiu da Síria, surgiram perturbações na Judéia. Félix, que fora deixado em Jerusalém com as tropas romanas, atacou Fazael, e o povo tomou as armas para defendê-lo. Herodes avisou Fábio, governador de Damasco, sobre isso e, quando se preparava para ir socorrê-lo, uma doença o reteve. Fazael, porém, não teve necessidade desse auxílio, pois obrigou Félix a se retirar a uma torre, de onde só lhe permitiu sair por capitulação. Em seguida, fez graves censuras a Hircano, por favorecer os seus inimigos depois de lhe haver prestado tantos serviços. Isso porque o irmão de Malico se havia apoderado de várias praças, dentre outras, Massada, que é um castelo muito forte. Herodes, quando sarou, retomou todas as praças e deixou-o partir, depois de terem feito um acordo. CAPÍTULO 21 ANTÍGONO, FILHO DE ARISTÓBULO, REÚNE UM EXÉRCITO. HERODES DERROTA-O E VOLTA TRIUNFANTE A JERUSALÉM. HIRCANO PROMETE DAR-LHE EM CASAMENTO MARIANA, SUA NETA, FILHA DE ALEXANDRE, FILHO DE ARISTÓBULO. 603. Antígono, filho de Aristóbulo, conquistou Fábio por dinheiro e reuniu um exército. Ptolomeu Meneu adotou-o por causa do parentesco que havia entre eles. Foi também ajudado por Mariom, que, tendo sido feito príncipe de Tiro por intermédio de Cássio, governava tiranicamente a Síria — ele pusera guarnições em diversas praças e ocupara umas três delas na Galiléia. Herodes retomou-as todas, tratou bem os tírios que as ocupavam e até mesmo deu presentes a alguns, pela afeição que eles tinham à sua cidade. Marchou depois contra Antígono, deu-lhe combate e o venceu, mal tinha ele chegado à fronteira da judéia. Assim, voltou triunfante a Jerusalém. O povo ofereceu-lhe coroas, e também o próprio Hircano, pois o considerava então como da família, porque ele iria desposar Mariana, filha de Alexandre, filho de Aristóbulo e de Alexandra, filha de Hircano. O casamento realizou-se depois, e Herodes dele teve três filhos e duas filhas. Ele havia desposado em primeiras núpcias uma mulher de nome Dóris, que era de sua nação, e dela tivera Antípatro, seu filho mais velho. CAPÍTULO 22 DEPOIS DA DERROTA DE CÁSSIO, PERTO DE FILIPOS, ANTÔNIO VEM À ÁSIA. HERODES GANHA A SUA AMIZADE POR MEIO DE GRANDES PRESENTES. DETERMINAÇÕES FEITAS POR ANTÔNIO EM FAVOR DE HIRCANO E DA NAÇÃO JUDAICA. 604. Cássio foi vencido em Filipos por Antônio e por Augusto. Este último passou para as Cálias, e Antônio veio para a Ásia. Quando chegou a Bitínia, embaixadores de diversas nações foram procurá-lo, e alguns dos mais influentes judeus acusaram Fazael e Herodes, dizendo que Hircano era rei apenas na aparência e que eles é que reinavam de verdade. Herodes veio justificar-se e por uma grande soma de dinheiro conseguiu ganhar Antônio, de tal modo que este, não se contentando em tratá-lo com muita distinção, nem mesmo quis ouvir os seus acusadores. Quando Antônio estava em Éfeso, Hircano, sumo sacerdote, e o povo judeu enviaram-lhe embaixadores, que levaram para ele uma coroa de ouro e rogaram que escrevesse às províncias, mandando pôr em liberdade os de sua nação levados como escravos por Cássio, contra o direito da guerra, como também ordenando que devolvessem as terras que injustamente lhes haviam tirado. Ele achou o pedido razoável, concedeu-lhes o que pediam e escreveu a Hircano e aos tírios as seguintes cartas: "Marco Antônio, imperador, a Hircano, sumo sacerdote dos judeus, saudação. Lisímaco, filho de Pausânias, José, filho de Meneu, e Alexandre, filho de Teodoro, vossos embaixadores, vieram procurar-nos em Éfeso para confirmar as promessas já feitas em Roma acerca do afeto que vós e toda a vossa nação tendes por nós, e nós os recebemos com grande alegria, porque as vossas ações, a vossa virtude e a vossa piedade nos persuadem ainda mais que as vossas palavras. Como os inimigos nossos e do povo romano devastaram toda a Ásia sem poupar as cidades e os lugares santos e não tiveram escrúpulos em faltar à palavra e violar os seus juramentos, não foi tanto o nosso interesse particular quanto o bem geral de todos que nos levou a vingar tanta crueldade para com os homens e tanta impiedade ofensiva aos deuses, pois o próprio sol parece ter escondido os seus raios para não ver esse horrível crime cometido na pessoa de César. A Macedônia recebeu esses celerados em seu seio, e, como eles agiam furiosos, praticaram ali todo o mal possível e imaginável, particularmente em Filipos. Apoderaram-se em seguida de todos os lugares vantajosos, acobertaram-se nas muitas defesas dos montes, que se estendem até o mar, e julgaram-se em segurança por haver uma única estrada pela qual se podia ir a eles. Mas os deuses, horrorizados pelos seus detestáveis desígnios, concederam-nos a graça de vencê-los. Bruto fugiu para Filipos, onde o cercamos. Cássio pereceu com ele. Depois de termos castigado esses pérfidos como eles mereciam, esperamos desfrutar no futuro uma paz feliz, e a Ásia será libertada de tantas misérias que a guerra a fez sofrer. Parece que a nossa vitória começa já a fazê-la respirar, como um doente que convalesce de grave enfermidade. Tenhais vós e a vossa nação a certeza de ter parte nessa felicidade, porque eu vos estimo muito para deixar de nesta ocasião procurar o vosso benefício. Para vos dar prova disso, enviamos a todas as cidades ordem para que ponham em liberdade todos os judeus, tanto livres quanto escravos, que Cássio e os de seu partido venderam em leilão. Desejamos que todos os favores que nós e Dolabela vos concedemos tenham a sua validade. Proibimos também aos tírios empreender qualquer coisa contra vós e ordenamos que vos entreguem tudo o que ocuparam no vosso país. Recebemos a coroa de ouro que nos enviastes". "Marco Antônio, imperador, aos magistrados, ao senado e o povo de Tiro, saudação. Hircano, sumo sacerdote e príncipe dos judeus, nos fez saber, por meio de embaixadores, que ocupastes terras em seu país quando os nossos inimigos se apoderaram daquela província. Mas, como empreendemos esta guerra apenas para o bem do império, para proteger a justiça e a piedade, e para punir os ingratos e os maus, queremos que vivais em paz com os nossos amigos e aliados e que lhes restituais o que os nossos inimigos vos deram e que lhes pertence. Pois nenhum daqueles que vos deram tal posse recebeu esse encargo ou o comando do exército por autoridade do senado, e sim por usurpação, concedendo parte disso aos ministros de suas violências. E agora que eles receberam o castigo de que eram dignos, é justo e razoável que os nossos aliados entrem na posse pacífica de seus bens. Assim, se ainda ocupais alguma das terras pertencentes a Hircano, príncipe dos judeus, da qual vos apoderastes quando Cássio veio fazer uma guerra injusta no nosso governo, certamente as restituireis sem dificuldade. E, se pretendeis ter nelas algum direito, podereis dizer-nos as vossas razões quando passarmos por essa província, e os nossos aliados, por sua vez, apresentarão também as suas". "Marco Antônio, imperador, aos magistrados, ao senado e ao povo de Tiro, saudação. Nós vos enviamos a nossa ordem e desejamos que ela seja escrita em grego e em romano e posta nos vossos arquivos, em lugar de destaque, a fim de que todos as possam ler". Numa assembléia em que os tírios travavam de seus negócios, Marco Antônio, imperador, disse: "Depois de termos reprimido pelas armas o orgulho e a insolência de Cássio, que por mercê de agitações apoderou-se de um governo que não lhe pertencia absolutamente e se serviu de soldados que não estavam sob seu comando, devastando a judéia, embora essa nação seja amiga do povo romano, queremos reparar por justas sentenças e determinações eqüitativas as injustiças e violências que ele cometeu. Para isso, determinamos que todos os bens tomados ao judeus lhes sejam restituídos e que os que dentre eles foram feitos escravos sejam postos em liberdade. E, se alguém ousar desobedecer à presente determinação, seja castigado segundo a sua falta o merece". Antônio escreveu a mesma coisa aos de Sidom, de Antioquia e de Arade. Julguei dever referir aqui tudo isso para mostrar o interesse que o povo romano sempre teve pela nossa nação. CAPÍTULO 23 COMEÇO DO AMOR DE ANTÔNIO POR CLEÓPATRA. ELE MALTRATA OS JUDEUS QUE VÊM ACUSAR HERODES E FAZAELPERANTE ELE. ANTÍGONO, FILHO DE ARISTÓBULO, FAZ AMIZADE COM OS PARTOS. 605. Quando Antônio estava para entrar na Síria, Cleópatra, rainha do Egito, veio procurá-lo na Cilícia e deu-lhe amor. Cem dos mais ilustres dos judeus dirigiram-se a ele em Dafne, que é um arrabalde de Antioquia, para acusar Herodes e Fazael e para isso escolheram os mais eloqüentes dentre eles. Messala tomou a defesa dos dois irmãos e foi ajudado por Hircano. Antônio, depois de escutar todos eles, perguntou a Hircano qual daqueles diferentes partidos era o mais capaz de governar o país. Ele respondeu que era o de Herodes, e então Antônio, que havia muito tempo nutria um afeto particular por esses dois irmãos (porque Antípatro o recebera muito bem em sua casa quando Gabínio fazia guerra na Judéia), os fez tetrarcas dos judeus e deu-lhes o encargo dos negócios da nação. Escreveu também cartas em seu favor. Mandou meter na prisão alguns dos inimigos deles, e os teria mandado matar se Herodes não tivesse intercedido por eles. Esses ingratos, no entanto, em vez de reconhecer tal favor, mal regressaram de sua embaixada organizaram outra, com umas mil pessoas de seu partido, as quais foram a Tiro esperar Antônio. Mas Herodes e seu irmão já o tinham inteiramente a seu favor, por uma grande soma com que lhe haviam obsequiado. Assim, ele ordenou aos magistrados que castigassem esses deputados, pois queriam suscitar novas agitações, e ajudassem Herodes em tudo o que ele desejasse deles para se estabelecer na tetrarquia. Herodes mostrou ainda a sua generosidade nessa ocasião, pois fora procurar aqueles deputados enquanto passeavam à beira-mar e exortara-os a se retirar. Hircano, que estava com eles, deu-lhes o mesmo conselho, mostrando a gravidade do perigo em que se poriam, caso se obstinassem naquele empreendimento. Mas eles desprezaram esse aviso. Imediatamente os judeus, junto com os habitantes do lugar, lançaram-se sobre eles, feriram-nos e mataram alguns. Os outros fugiram e depois viveram em paz. Mas o povo não deixou de clamar contra Herodes, e Antônio ficou de tal modo encolerizado que mandou matar todos os que estavam presos. 606. No ano seguinte, Pacoro, filho do rei dos partos, e um dos grandes de seu país, de nome Barzafarnés apoderou-se da Síria, e Ptolomeu Meneu veio a morrer nesse mesmo tempo. Lisânias, seu filho, sucedeu-o no reino e por meio de Barzafarnés, que tinha grande poder sobre ele, contraiu amizade com Antígono, filho de Aristóbulo. CAPÍTULO 24 ANTÍGONO, AJUDADO PELOS PARTOS, CERCA INUTILMENTE FAZAEL E HERODES NO PALÁCIO DE JERUSALÉM. HIRCANO E FAZAEL DEIXAM-SE PERSUADIR PARA PROCURAR BARZAFARNÉS. 607. Antígono prometeu aos partos mil talentos e quinhentas mulheres se eles tirassem o reino de Hircano e o entregassem a ele e mandassem matar Herodes com todos os seus partidários. Eles marcharam então para a )udéia, embora ainda não tivessem recebido aquela soma. Pacoro avançou ao longo do mar, e Barzafarnés, pelo meio das terras. Os tírios recusaram-se a receber Pacoro, mas os sidônios e os tolemaidos abriram-lhe as portas. Ele mandou adiante, para a Judéia, um corpo de cavalaria comandado pelo seu mordomo-mor, que se chamava Pacoro, como ele, para fazer um reconhecimento por todo o país e ordenou-lhe agir em conjunto com Antígono. Os judeus que moravam no monte Carmelo dirigiram-se a Antígono, e ele julgou poder, por esse meio, apoderar-se daquela parte do país, que se chama Druma. Os judeus uniram-se a eles e então avançaram até Jerusalém, onde, aumentando ainda mais o seu poder com um maior número de homens, sitiaram Fazael e Herodes no palácio real. Os dois irmãos atacaram-nos no grande mercado, repeliram-nos, obrigaram-nos a se retirar ao Templo e puseram soldados nas casas que estavam próximas. O povo sitiou-os lá, incendiou as casas e queimou os que as defendiam. Herodes não demorou muito para se vingar, atacando e matando um grande número deles. Não se passava um dia em que não houvesse alguma escaramuça. Antígono e os de seu partido esperavam com impaciência a festa de Pente-costes, que estava próxima, porque uma grande multidão de povo viria de todas as partes para celebrá-la. Aquela oportunidade veio, e o povo começou a chegar. Uns vinham armados, e outros, sem armas. Encheram o Templo e toda a cidade, exceto o palácio, do qual Herodes guardava o interior com poucos soldados, enquanto Fazael guardava o exterior. Herodes atacou os inimigos que estavam nos arrabaldes e, depois de um renhido combate, pôs em fuga a maior parte, muitos dos quais se retiraram para a cidade, outros para o Templo e outros ainda para trás das defesas que estavam próximas. Fazael agiu então muito bem e com acerto. Pacoro, o mordomo, entrou na cidade com poucos homens, a rogo de Antígono, com o pretexto de apaziguar a perturbação, mas tinha na realidade o propósito de fazê-lo rei. Fazael veio à sua presença e o recebeu muito bem no seu palácio. Pacoro, para fazê-lo cair na armadilha, aconselhou-o a ir procurar Barzafarnés. Fazael, que de nada desconfiava, deixou-se persuadir, contra a opinião de Herodes, que, conhecendo bem a perfídia daqueles bárbaros, o aconselhava a fazer o contrário, isto é, a se desfazer de Pacoro e de todos os que tinham vindo com ele. Assim, Hircano e Fazael se puseram a caminho, e Pacoro cedeu-lhes duzentos cavaleiros e dez daqueles que se chamavam livres, para acompanhá-los. Chegando à Galiléia, os governadores das praças vieram com armas encontrá-los, e Barzafarnés, de início, recebeu-os muito bem e deu-lhes presentes, mas depois ficou pensando em como se desfazer deles. Levou-os a uma casa perto do mar, onde Fazael soube que Antígono tinha prometido a Barzafarnés mil talentos e quinhentas mulheres. Começou então a desconfiar, e também o avisaram de que naquela mesma noite lhe dariam guardas para se apoderar de sua pessoa, o que de fato teria sido feito sem se esperar que os partos que estavam em Jerusalém tivessem se apoderado de Herodes, para que este não escapasse quando soubesse que Hircano e Fazael haviam sido presos. Pareceu logo que aquele aviso era verdadeiro, pois viram chegar os guardas. Aconselharam então Fazael, particularmente um certo Ofélio, que descobrira o segredo por meio de Saramala, o mais rico de todos os sírios, a montar imediatamente num cavalo para se salvar. Ofereceu-lhe navios para esse fim, porque não estavam longe do mar. Mas Fazael julgou que não devia abandonar Hircano e deixar Herodes, seu irmão, em perigo. Assim tomou a deliberação de ir procurar Barzafarnés e disse-lhe que não podia, sem uma extrema injustiça e sem desonrá-lo, atentar contra a vida de pessoas que o tinham vindo procurar de boa fé e das quais não tinha motivo para se queixar. Se precisava de dinheiro, ele poderia dar-lhe muito mais que Antígono. Barzafarnés protestou com juramento que nada havia de mais falso que aquilo que lhe haviam dito e foi procurar Pacoro. CAPÍTULO 25 BARZAFARNÉS CONSERVA PRESOS FAZAEL E HIRCANO. MANDA SOLDADOS A JERUSALÉM PARA PRENDER HERODES. DURANTE A NOITE, HERODES SE RETIRA COM TODOS OS SEUS SOLDADOS E PARENTES. E ATACADO NO CAMINHO, MAS LEVA VANTAGEM. FAZAEL SUICIDA-SE. INGRATIDÃO DO REI DOS ÁRABES PARA COM HERODES, QUE VAI A ROMA. 608. Logo que Barzafarnés partiu, prenderam Hircano e Fazael, que nada mais pôde fazer senão execrar tal perfídia. Aquele bárbaro mandou ao mesmo tempo um eunuco a Jerusalém, a Herodes, com ordem de atraí-lo para fora do palácio e prendê-lo. Mas este sabia que os partos haviam aprisionado os que Fazael lhe mandara para avisá-lo da traição. Fez graves queixas a Pacoro e a todos os outros chefes, e eles, embora de tudo soubessem, fingiram completa ignorância do que se passava e disseram-lhe que ele não devia criar dificuldades para sair do palácio a fim de receber as cartas que lhe queriam entregar, pois traziam somente boas notícias de seu irmão. Herodes não prestou fé a essas palavras porque já sabia da prisão de Fazael, confirmada por Alexandra, filha de Hircano, cuja filha ele devia desposar. Embora os outros zombassem de seus avisos, ela não deixava de os considerar atentamente, porque era uma mulher muito hábil. Os partos, embaraçados quanto ao que deviam fazer, porque não ousavam atacar abertamente um homem tão destemido, deixaram para o dia seguinte a sua determinação. Então Herodes, não podendo mais duvidar de sua perfídia e da prisão de seu irmão, embora outros afirmassem o contrário, resolveu aproveitar para fugir naquela mesma tarde, evitando permanecer em tal risco no meio de seus inimigos. Para realizar essa resolução, tomou tudo o que tinha de soldados, fez subir em carros puxados por cavalos sua mãe, sua irmã, sua noiva Mariana, Alexandra, mãe dela, seu irmão, todos os criados e o resto dos servidores. Assim, tomou o caminho para a Iduméia sem que os inimigos o soubessem. Teria sido impossível permanecer insensível diante de tão triste espetáculo. Mulheres banhadas em lágrimas e aflitas pela dor arrastavam os filhos, abandonavam o seu país e deixavam parentes na prisão, não podendo esperar também para si mesmas uma sorte melhor. Nada, porém, pôde abater a coragem de Herodes. Nessa contingência, ele mostrou que o seu valor era maior que a sua infelicidade e durante toda a viagem não deixava de exortá-los a suportar corajosamente a situação a que se encontravam reduzidos, sem se deixar dominar pela tristeza ou por queixumes inúteis, que só iriam retardar a fuga, sua única esperança de salvação. Mas aconteceu um acidente, e este o tocou de tal modo que pouco faltou para que não se suicidasse: o carro no qual estava a sua mãe tombou, e ela ficou tão ferida que se pensava que viesse a morrer. A grande dor que ele sentiu, unida ao temor de que seus inimigos chegassem de repente, aproveitando o atraso de sua retirada, deixou-o tão fora de si que ele puxou a espada, e atravessá-la-ia no próprio corpo se alguns dos que estavam perto não tivessem impedido aquele gesto. Eles rogaram-lhe que não os abandonasse ao furor dos inimigos, mostrando que aquela não era uma ação digna de sua generosidade, isto é, pensar somente em se esquivar daqueles males, mais temíveis que a própria morte, sem se incomodar que pessoas que lhe eram tão caras ficassem a eles expostas. Assim, em parte pela força e em parte pela vergonha de sucumbir ante a infelicidade, ele desistiu daquele fúnebre desígnio, mandou medicar a mãe como se poderia fazer naquela contingência, e retomaram o caminho para a fortaleza de Massada. Os partos atacaram-no várias vezes durante o caminho, e ele os venceu em todas as ocasiões. Até mesmo alguns judeus o atacaram, quando ele ainda não estava afastado de Jerusalém mais que uns sessenta estádios, mas ele os venceu também num grande combate, porque não se defendia como um homem que foge e é surpreendido, e sim como um grande general preparado para sustentar um ataque violento. E, quando ele foi elevado ao trono, mandou construir naquele mesmo lugar um soberbo palácio e uma cidade, a que chamou Herodiom. Quando chegou a Tressa, aldeia da Iduméia, José, seu irmão, veio encontrá-lo, e juntos consideraram sobre o que fazer com o grande número de soldados que Herodes trouxera, além dos que estavam sob pagamento, porque a fortaleza de Massada, onde ele queria abrigar-se, não era bastante grande para recebê-los todos. Resolveu então mandar embora a maior parte deles, mais ou menos umas nove mil pessoas. Deu-lhes víveres e disse-lhes que poderiam se estabelecer do melhor modo possível nas diversas regiões da Iduméia. Ficou com os parentes e mais alguns valentes e peritos. Deixou as mulheres na fortaleza, bem como as pessoas para servi-las, em número de oitocentos mais ou menos. Como a fortaleza tinha bastante trigo e água e todas as outras coisas necessárias para a sua subsistência, ele tranqüilizou-se. Depois de tomar todas as providências, partiu para Petra, capital da Arábia. Despontando o dia, os partos saquearam e roubaram tudo o que Herodes havia deixado em Jerusalém, até mesmo no palácio. Não tocaram, porém, em trezentos talentos que pertenciam a Hircano, e uma parte do que pertencia a Herodes também foi salva, com tudo o que a sua previdência o fizera mandar para a Iduméia. Os bárbaros não se contentaram em saquear a cidade, devastaram também os campos e destruíram inteiramente Maressa, cidade muito rica. Assim, Antígono apoderou-se da Judéia, tomando-lhe o governo por intermédio do rei dos partos. Entregaram-lhe também Hircano e Fazael como prisioneiros, mas ele ficou muito envergonhado, porque as mulheres que ele prometera dar ao príncipe junto com os quinhentos talentos haviam escapado. E, com medo de que o povo restaurasse Hircano no trono, mandou cortar-lhe as orelhas, para torná-lo inapto ao sumo sacerdócio, porque a Lei proíbe que se conceda essa honra aos que têm qualquer defeito físico. 609. Não poderemos deixar de admirar a grandeza da coragem de Fazael. Ele não temia tanto a morte, à qual sabia estar destinado, quanto a vergonha de recebê-la das mãos do inimigo. Não podendo matar-se, porque estava acorrentado, quebrou a cabeça contra uma pedra. Diz-se que Antígono lhe mandou alguns médicos, os quais, em vez de medicá-lo, envenenaram-lhe as feridas. Antes de morrer, ele teve a consolação de saber por uma mulher pobre que Herodes estava a salvo e suportou a morte alegremente, acreditando que deixava um irmão que a vingaria e que seus inimigos receberiam dele o castigo pela sua perfídia. 610. Herodes, cuja coragem não se abatia ante a fortuna adversa, tudo fazia para se pôr em condições de superá-la. Foi procurar Malco, rei dos árabes, que lhe devia grandes favores, para pedir-lhe que demonstrasse reconhecimento em tão pungente necessidade e, principalmente, que o ajudasse com dinheiro, quer como donativo, quer como empréstimo. Como ainda não sabia da morte do irmão, estava resolvido a empregar até trezentos talentos para resgatá-lo. Havia até mesmo levado consigo, para esse fim, o filho de Fazael, de apenas sete anos de idade, para dá-lo como refém aos árabes. Porém, alguns homens enviados por esse príncipe vieram ordenar-lhe, da parte dele, que saísse de suas terras, porque os partos o haviam proibido de recebê-lo, dizendo-lhe que os grandes de seu reino tinham dado aquele covarde conselho para dele se isentarem, com o pretexto de entregar a Herodes o dinheiro que Antípatro havia confiado em depósito. Herodes respondeu que não o queria atacar, mas desejava apenas falar-lhe de assuntos importantes. 611. Depois de pensar, ele julgou que era melhor retirar-se e dirigiu-se para o Egito, tão insatisfeito como se pode imaginar alguém diante de uma ação tão indigna de um rei. Deteve-se num Templo onde havia deixado vários dos que o acompanhavam, chegando no dia seguinte a Rinosura, e lá soube da morte de Fazael. No entanto, o rei dos árabes reconheceu o seu erro e, sentido, veio ao seu encalço, mas não pôde alcançá-lo, porque ele caminhava rapidamente, a fim de chegar logo a Pelusa. Alguns marinheiros que iam para Alexandria, porém, recusaram-se a recebê-lo em seu navio, e Herodes dirigiu-se então aos magistrados, que lhe prestaram grandes honras. A rainha Cleópatra quis retê-lo, mas não conseguiu persuadi-lo a ficar, tanto ele estava ansioso para ir a Roma, embora fosse pleno inverno e corresse a notícia de que as coisas na Itália estavam muito difíceis, com grandes perturbações e motins. Assim, ele embarcou para a Panfília, mas foram acossados por uma violenta tempestade, que os obrigou a lançar ao mar muitas das coisas que estavam no navio. Chegou por fim a Rodes. Lá encontrou dois amigos, Sapinas e Ptolomeu. Ficou tão comovido ao ver a cidade destruída pela guerra contra Cássio que nem a necessidade em que se encontrava o impediu de fazer-lhe grandes benefícios, muito acima de suas posses. Ali equipou uma galera, embarcou com os seus amigos, chegou a Brindisi e de lá foi para Roma, onde primeiramente se dirigiu a Antônio. Contou-lhe tudo o que havia acontecido na Judéia: que seu irmão Fazael fora aprisionado e morto pelos partos; que eles ainda retinham Hircano prisioneiro; que haviam constituído Antígono rei porque ele lhes prometera mil talentos e quinhentas mulheres, as quais escolheu dentre as pessoas de maior destaque, particularmente da família dele, de Herodes; que para salvá-las de suas mãos ele as levara à noite, com muita dificuldade, deixando-as em grandíssimo perigo; e que por fim enfrentara os risco do mar em pleno inverno para vir procurá-lo, como sendo o seu refúgio e o único de quem esperava algum auxílio. CAPÍTULO 26 HERODES É DECLARADO EM ROMA REI DA JUDÉIA POR ANTÔNIO, COM O AUXÍLIO DE AUGUSTO. ANTÍGONO SITIA MASSADA, DEFENDIDA POR JOSÉ, IRMÃO DE HERODES. 612. A compaixão que Antônio sentiu da infelicidade a que a inconstância da sorte — que sente prazer em perseguir os homens mais ilustres — reduzira Herodes, a lembrança da maneira gentil com que Antípatro, seu pai, o havia recebido em casa, a consideração do dinheiro que ele lhe prometia se o fizesse rei, tal como já o fizera tetrarca, e principalmente o ódio contra Antígono, que ele considerava faccioso e inimigo declarado dos romanos, fizeram-no decidir-se por ajudá-lo com todas as suas posses. Augusto fez o mesmo, tanto em consideração à amizade particular que César tivera por Antípatro, por causa do auxílio dele recebido na guerra do Egito, quanto pelo desejo de obsequiar Antônio, a quem via abraçar com tanto ardor os interesses de Herodes. Assim, reuniram o Senado. Messala e Atratino introduziram Herodes, elogiaram grandemente os serviços que seu pai e ele haviam prestado ao povo romano, lembrando que Antígono, ao contrário, não somente era um inimigo declarado, tal como o provavam as suas ações precedentes, como também demonstrara total desprezo pelos romanos ao receber a coroa das mãos dos partos. Essas palavras incitaram o senado contra Antígono, e Antônio acrescentou que na guerra que se travaria contra os partos seria, sem dúvida, muito vantajoso constituir Herodes rei da Judéia. Todos aceitaram a proposta, e o favor que Herodes ficou devendo a Antônio foi tanto maior quanto era inesperada aquela extraordinária graça, pois os romanos não costumavam outorgar coroas senão aos de família real. Ele havia pensado apenas em pedir a coroa da Judéia para Alexandre, irmão de Mariana e neto de Aristóbulo do lado paterno e de Hircano do lado materno. (Herodes depois mandou matar Alexandre, como diremos a seu tempo.) Podemos acrescentar que a pressa de Antônio aumentou ainda esse favor, pois esse importante assunto foi concluído em sete dias. Ao sair do Senado, Antônio e Augusto levaram Herodes em sua companhia e, seguidos pelos cônsules e senadores, foram ao Capitólio, onde ofereceram sacrifícios e colocaram como num sagrado depósito o decreto do senado. Antônio em seguida ofereceu um lauto banquete ao novo príncipe, cujo reinado se iniciava na centésima octogésima quarta Olimpíada, no consulado de Caio Domício Calvino e Caio Asínio Polião. 61 3. Enquanto isso se passava em Roma, Antígono sitiava a fortaleza de Massada. José, irmão de Herodes, a defendia. Estava ela bem provida de todas as coisas, mas faltava água. Como José sabia que Malco, rei dos árabes, estava sentido por ter dado motivos para que Herodes ficasse descontente com ele, resolveu, naquela contingência, sair à noite com duzentos homens para ir procurá-lo, mas naquela mesma noite caiu tão forte chuva que as cisternas se encheram. E assim, não tendo mais necessidade de água, cuidou apenas em defender-se bem. Aquele auxílio, que ele e os seus julgaram vir do céu, elevou-lhes de tal modo a coragem que eles faziam contínuas arremetidas contra os sitiantes, quer em pleno dia, quer à noite, e assim conseguiram matar muitos deles. 614. Ventídio, general de um exército romano, expulsou os partos da Síria, entrou na Judéia e acampou perto de Jerusalém, sob o pretexto de socorrer José, mas na realidade viera tirar dinheiro de Antígono, como de fato tirou. Ele retirou-se em seguida com a maior parte das tropas e deixou o resto sob o comando de Silom. Antígono foi obrigado a dar dinheiro também a este, para que ele não lhe fosse contrário durante o tempo em que ele aguardava socorro, que lhe deveria vir dos partos. CAPÍTULO 27 HERODES, VOLTANDO DE ROMA, REÚNE UM EXÉRCITO, TOMA ALGUMAS PRAÇAS E SITIA JERUSALÉM, MAS NÃO CONSEGUE TOMÁ-LA. DERROTA OS INIMIGOS NUM GRANDE COMBATE. SEU ESTRATAGEMA PARA VENCER JUDEUS PARTIDÁRIOS DE ANTÍGONO, QUE FAZIA A GUERRA AOS PARTOS. BELOS COMBATES QUE TRAVA A CAMINHO. JOSÉ, IRMÃO DE HERODES, É MORTO EM COMBATE. ANTÍGONO MANDA CORTAR-LHE A CABEÇA, E HERODES VINGA ESSA MORTE. SITIA JERUSALÉM, ONDE SÓSIO SE UNE A ELE COM UM EXÉRCITO ROMANO. HERODES DESPOSA MARIANA. 615. Herodes, voltando de Roma, reuniu em Ptolemaida uma grande quantidade de tropas, tanto de sua nação quanto estrangeiras, que tomou sob pagamento, sendo ajudado ainda por Ventídio e por Silom, a quem Gélio havia trazido uma ordem de Antônio para se unir a ele. Ambos antes estavam ocupados: o primeiro acalmando agitações em algumas cidades, devido à invasão dos partos, e o segundo estava na Judéia, onde Antígono o subornara com dinheiro. Herodes entrou na Caliléia para marchar contra Antígono. Suas forças aumentavam sempre, à medida que ele avançava, e quase toda a Galiléia abraçou o seu partido. A primeira coisa que ele resolveu empreender foi fazer levantar o cerco de Massada, para livrar os seus parentes, que lá estavam encerrados. Mas era antes necessário tomar Jope, a fim de não deixar atrás de si nenhuma praça-forte quando avançassem para Jerusalém. Silom aproveitou a oportunidade para se retirar, e os judeus do partido de Antígono perseguiram-no. Mas Herodes, embora tivesse poucos soldados, deu-lhes combate, derrotou-os e salvou Silom, que já não lhes podia resistir. Depois tomou Jope e avançou rapidamente para Massada. O seu exército fortificava-se dia a dia com os compatriotas que se uniam a ele, uns pelo afeto que tinham tido por seu pai, outros pela estima que tinham por ele e outros ainda pelos favores que deviam a ambos. A maior parte, porém, vinha pela esperança dos benefícios que imaginavam receber dele como rei. Antígono fez-lhe diversas emboscadas pelo caminho, mas sem grande vantagem. Assim, Herodes fez levantar o cerco de Massada e, aumentando ainda as suas forças com os que estavam nessa praça, tomou o castelo de Ressa e avançou para Jerusalém, seguido pelas tropas de Silom e por vários habitantes daquela grande cidade, que temiam o seu poder. Herodes sitiou-a do lado do ocidente, e os que a defendiam atiraram grande número de flechas e grande quantidade de dardos, e fizeram várias arremetidas contra as suas tropas. Ele começou anunciando por um arauto que não viera com outro objetivo senão o bem da cidade e que esqueceria as ofensas feitas a ele pelos seus maiores inimigos, não excetuando ninguém dessa anistia geral. Antígono respondeu, dirigindo-se a Silom e aos romanos, que era coisa indigna da justiça, de que o povo romano fazia profissão, colocar no trono um simples particular, ainda mais um idumeu, isto é, um semijudeu, contra as leis da nação, que só concedia aquela honra a quem o nascimento tornava digno dela, e que, se estavam descontentes por ele haver recebido a coroa das mãos dos partos, restavam ainda outros, de família real, que não haviam ofendido os romanos e aos quais podiam oferecê-la, e também sacerdotes, aos quais não era justo privar de uma honra à qual tinham o direito de aspirar. Antígono e Herodes assim discutiram e chegaram mesmo às injúrias. Antígono permitiu aos seus repelir os inimigos, e eles atiraram-lhes flechas e lançaram tantos dardos do alto das torres que os obrigaram a se retirar. Viu-se então claramente que Silom se deixara subornar por dinheiro, pois ele permitiu que vários de seus soldados começassem a gritar que lhes dessem víveres e dinheiro com quartéis de inverno, porque os campos haviam sido inteiramente devastados pelas tropas de Antígono. Todo o acampamento se revoltou então, preparando-se para se retirar, mas Herodes pediu aos oficiais das tropas romanas que não o abandonassem daquela maneira, lembrando-lhes que haviam sido enviados por Antônio, Augusto e pelo senado para ajudá-lo e que, quanto aos víveres, ele daria uma ordem, e nada haveria de faltar. Essa promessa ele cumpriu imediatamente. Mandou buscar alimento em tão grande quantidade que tirou qualquer pretexto de Silom para se retirar. Pediu também aos amigos em Samaria que levassem a jerico trigo, vinho, óleo, gado e todas as outras coisas necessárias a um exército. Logo que Antígono soube disso, deu ordem que se reunissem as tropas de seu partido, as quais ocuparam as passagens dos montes e armaram ciladas aos que traziam esses víveres de Jerico. Herodes, que por seu lado de nada se descuidava, tomou cinco coortes romanas, cinco dos judeus, alguns soldados estrangeiros e parte de sua cavalaria e foi a jerico. Achou a cidade abandonada, e quinhentos de seus habitantes haviam fugido para os mortes com as suas famílias. Ele os mandou prender e depois os soltou. Os romanos encontraram a cidade cheia de toda espécie de bens e a saquearam. Herodes lá deixou uma guarnição e deu quartéis de inverno para as tropas romanas na Iduméia, na Galiléia e em Samaria. Antígono, como recompensa pelos presentes que concedera a Silom, obteve dele que mandasse uma parte de suas tropas a Lida, para ganhar as boas graças de Antônio. Assim, os romanos puderam viver em paz e em grande abundância. 616. Herodes, que não queria ficar inativo, enviou José, seu irmão, à Iduméia com mil homens de infantaria e quatrocentos cavaleiros, enquanto ele foi a Samaria, onde deixou a sua mãe e os demais parentes que havia retirado de Massada. Passou depois à Galiléia para tomar as praças nas quais Antígono havia colocado guarnições. Chegou a Seforis numa ocasião em que caía muita neve, e os que a defendiam para Antígono fugiram. Ele aí encontrou grande quantidade de víveres. Mandou de lá um corpo de cavalaria e três coortes contra os ladrões que se refugiavam nas cavernas próximas à aldeia de Arbela. Quarenta dias depois, ele avançou com o seu exército, e os inimigos apareceram com muita coragem e ousadia. Travou-se logo um grande combate. A ala esquerda do exército de Herodes foi desbaratada, mas ele a socorreu com tanta força e energia que a fez voltar a sua frente para aqueles dos seus que lhes tinham voltadas as costas, pondo assim em fuga os inimigos, que já se julgavam vitoriosos, e perseguindo-os até o Jordão. Tão belo feito trouxe ao seu partido o resto da Galiléia, exceto os que se haviam retirado para as cavernas. Deu aos seus soldados cento e cinqüenta dracmas por cabeça, tratou os oficiais de acordo com o cargo e os enviou aos quartéis de inverno. Silom foi obrigado a abandonar os seus soldados e vir procurá-lo com os seus oficiais, porque Antígono só forneceria víveres às suas tropas durante um mês, e dera ordem aos habitantes dos lugares vizinhos que lhes retirassem todas as coisas necessárias à vida e fugissem para as montanhas, a fim de fazê-los morrer de fome. Herodes tomou providências e entregou essa incumbência a Feroras, seu irmão mais novo, ao qual ordenou que também restaurasse o castelo de Alexandriom, que estava completamente abandonado. 617. Antônio estava então em Atenas, e Ventídio, na Síria, de onde mandou dizer a Silom que fosse procurá-lo para marchar com as tropas auxiliares das províncias contra os partos, mas somente depois que tivesse prestado a Herodes o auxílio de que este necessitava. Herodes, no entanto, não quis retê-lo e foi com as suas tropas contra os ladrões que estavam em famílias nas cavernas do monte. A dificuldade era lá chegar, porque os caminhos são muito estreitos e cercados de rochedos pontudos e precipícios que impedem subir até lá quando se está ao pé do monte e descer quando se está em cima. Para remediar essa dificuldade, Herodes mandou fazer caixas amarradas a cadeiras de ferro, que eram descidas da montanha por meio de máquinas. As caixas eram cheias de soldados armados com alabardas, para ferir os que lhes opusessem resistência. A descida era muito perigosa por causa da altura, e os que se haviam escondido nas cavernas tinham abundância de víveres. Quando as caixas chegavam à entrada das cavernas, um soldado armado com espada, escudo e vários dardos agarrava com as duas mãos as cadeias às quais a caixa estava presa e lançava-se por terra. Se ninguém aparecia, ele aproximava-se da entrada de uma das cavernas, matava quantos encontrasse a golpes de dardos, fisgava com a alabarda os que lhe queriam resistir e precipitava-os do alto dos rochedos. Entrava depois na caverna, onde matava mais alguns, e em seguida voltava para a caixa. Os gritos espantavam os demais e os faziam desesperar da própria salvação. Mas a noite obrigou os soldados de Herodes a se retirar, e ele mandou avisar que perdoaria a todos os que se entregassem. No dia seguinte, começaram a atacar do mesmo modo, e vários soldados saíram das caixas para combater à entrada das cavernas. Lançaram-lhes fogo, sabendo que dentro havia grande quantidade de matéria combustível. Numa das cavernas havia um velho escondido com a sua mulher e sete filhos, os quais, vendo-se reduzidos a tal extremo, pediram-lhe permissão para entregar-se. Em vez de a conceder, o velho pôs-se à entrada da caverna e matou-os um a um, inclusive a mulher, à medida que tentavam sair, lançando os corpos do alto do monte. Depois lançou-se ele mesmo, preferindo assim a morte à escravidão. Antes de se precipitar, porém, fez mil censuras a Herodes, dizendo-lhe palavras ofensivas, embora o príncipe, que o avistava, fizesse sinais com a mão, a indicar que desejava perdoá-lo. Assim, todos os que estavam nas cavernas foram obrigados a se entregar, porque não podiam mais se esconder nem resistir. 618. O hábil Herodes, depois de constituir Ptolomeu governador do país, foi a Samaria com seiscentos cavaleiros e três mil soldados de infantaria, com o intuito de combater Antígono. Ptolomeu saiu-se mal nesse cargo. Foi atacado e morto por aqueles que antes haviam perturbado a Galiléia. Eles fugiram em seguida para os pântanos e outros lugares inacessíveis, de onde devastavam os campos. Herodes não se demorou muito em castigá-los, pois veio combatê-los e matou uma parte deles. Apoderou-se dos lugares para onde os outros se haviam retirado e matou-os também. Destruiu em seguida esses lugares e condenou as cidades a pagar uma multa de cem talentos, cortando assim as sublevações pela raiz. 619. Os partos foram vencidos numa grande batalha onde Pacoro, seu rei, foi morto. Ventídio, por ordem de Antônio, enviou Maquera ao rei Herodes com duas legiões e mil cavaleiros. Antígono subornou Maquera com dinheiro, e assim, embora Herodes tentasse impedir que ele fosse procurar Antígono, Maquera para lá se dirigiu, sob o pretexto de observar o estado das forças. Mas Antígono não confiou nele e não somente se recusou a recebê-lo como mandou atacá-lo. Então ele reconheceu a sua falta e foi para Emaús. Cheio de cólera, mandou matar todos os judeus que encontrou em seu caminho, sem indagar se eram amigos ou inimigos. Esse proceder de Maquera enfureceu Herodes, que foi a Samaria resolvido a procurar Antônio e rogar-lhe que não mais lhe mandasse tal auxílio, pois causava mais mal a ele que aos seus inimigos, e ele muito bem o poderia dispensar, porque se sentia forte o bastante para combater Antígono. Maquera veio procurá-lo no caminho e pediu-lhe que ficasse ou pelo menos lhe cedesse José, seu irmão, para juntos fazerem a guerra a Antígono. Assim, eles reconciliaram-se, e Herodes acedeu aos pedidos de Maquera, deixando-lhe a maior parte do exército, sob o comando de José, ao qual recomendou que não se arriscasse nem se indispusesse com Maquera. 620. Em seguida, Herodes foi com um corpo de cavalaria e de infantaria procurar Antônio, que sitiava a cidade de Samosata, situada sobre o rio Eufrates. Encontrou em Antioquia um grande número de pessoas que também queriam falar com Antônio, mas não se atreviam a se pôr a caminho para continuar a viagem porque os bárbaros espalhados pelas redondezas matavam todos os que lhes caíam nas mãos. Ele os tranqüilizou e se ofereceu para lhes servir de chefe, já estavam eles há dois dias em Samosata. Os bárbaros, que se haviam reunido em grande número para atacar os que iam procurar Antônio, só saíram de sua emboscada quando os viram atravessando a planície. Deixaram, porém, passar a primeira tropa de Herodes e atacaram com quinhentos cavaleiros a que veio depois, onde ele estava em pessoa. Puseram em fuga as primeiras linhas, mas o príncipe atacou-os tão violentamente que ergueu a coragem e o ânimo dos seus, fazendo voltar ao combate os que já haviam desistido da luta. Ele dizimou a maior parte daqueles bárbaros, atacando-os até reconquistar todos os despojos e os prisioneiros que eles haviam feito. Continuando a viagem, derrotou outro grande número de bárbaros, que estavam nos bosques próximos daqueles campos com o propósito de se lançar sobre os viandantes, e matou grande quantidade deles. Assim, garantiu a passagem aos que vinham atrás dele, os quais o chamavam de protetor e salvador. Aproximando-se eles de Samosata, Antônio, que já soubera como ele havia derrotado os bárbaros e do auxílio que lhe trazia, mandou o que havia de melhor em suas tropas para recebê-lo com honras e demonstrações de alegria. Depois abraçou-o, louvou o seu valor e o tratou como um príncipe, ao qual ele mesmo havia posto a coroa na cabeça. Logo depois, Antíoco entregou Samosata, e a guerra terminou. Antônio deixou Sósio como comandante do exército e da província, com ordem de ajudar o rei Herodes em tudo o que ele viesse precisar, e partiu para o Egito. Sósio mandou adiante, para a judéia, duas legiões com Herodes e depois seguiu-o com o resto no exército. 621. Enquanto isso se passava, José, irmão de Herodes, perdeu a vida na Judéia, por não ter cumprido a ordem que dele recebera, ou seja, de não se arriscar, como vou narrar a seguir. Ele marchou para Jerico com as suas tropas e cinco companhias de cavalaria cedidas por Maquera, pretendendo fazer a colheita do trigo, e acampou nos montes. Mas a cavalaria romana era composta de moços pouco habituados à guerra, a maior parte recrutada na Síria. Os inimigos os atacaram em lugares pouco vantajosos e os derrotaram, bem como ao corpo de cavalaria que José comandava. Ele morreu combatendo valentemente. Os mortos ficaram em poder de Antígono, e ele mandou cortar a cabeça a José, embora Feroras, seu irmão, lhe quisesse pagar cinqüenta talentos para ter o corpo intacto. Em seguida, os galileus revoltaram-se contra os seus governadores e lançaram no lago os que seguiam o partido de Herodes. Vários outros movimentos de agitação rebentaram na judéia. Maquera fortificou o castelo de Gethe. Herodes soube de tudo quando estava num arrabalde de Antioquia chamado Dafne e quase o esperava, por causa de alguns sonhos que tivera, os quais previam a morte do irmão. Assim, apressou a marcha ao chegar ao monte Líbano e tomou oitocentos homens do país e uma legião romana, com os quais foi a Ptolemaida, de onde partiu na mesma noite para avançar contra a Galiléia. Os inimigos atacaram-no, mas ele os venceu e obrigou-os a se encerrar num castelo, de onde haviam saído no dia anterior. No dia seguinte, pela manhã, foi sitiá-los, mas uma grande tempestade o obrigou a se retirar para as aldeias vizinhas. A outra legião que ele havia recebido de Antônio veio unir-se a ele, e o medo dos sitiados os fez abandonar o castelo durante a noite. Como Herodes estava impaciente para vingar a morte do irmão, avançou rapidamente para Jerico, onde conversou com os maiorais da cidade. Apenas os convidados se retiraram para as suas casas, a sala onde se realizava o banquete desabou, e todos imaginaram que Deus tinha um cuidado particular de Herodes, pois o livrara por milagre de um grande perigo. No dia seguinte, seis mil inimigos, que haviam descido dos montes, encheram de espanto os romanos, e seus filhos, perdidos, atacaram-nos a golpes de dardos e de pedras. Herodes ficou ferido no lado, e Antígono, querendo dar a entender que era bastante forte para fazer guerra ao mesmo tempo em diversos lugares, enviou tropas a Samaria, comandadas por Papo. Porém, Maquera enfrentou-o, e Herodes, por sua vez, tomou cinco cidades, matou cerca de dois mil homens que nelas estavam como guarnição, incendiou-as e se voltou contra Papo, que estava acampado em Isanas, para onde vários se dirigiam, tanto de Jerico quanto da Judéia. Logo que Herodes soube que os inimigos eram tão ousados que se atreviam a combater, atacou-os e os venceu. Inflamado pelo desejo de vingar a morte do irmão, perseguiu-os, matando sempre até uma aldeia. As casas encheram-se imediatamente e muitos foram obrigados a subir aos telhados. Esses logo foram mortos. Depois os tetos foram removidos, e viram-se então onde estavam escondidos todos os outros, os quais de tão apertados não se podiam defender. Foram mortos a pedradas, e não houve em toda essa guerra espetáculo mais deplorável, pois causava horror tão grande quantidade de cadáveres. Esse feito, mais que qualquer outro, abateu a ousadia dos inimigos, porque os fez perder a esperança de um êxito favorável. Eram vistos fugindo em grandes grupos, e, não fora uma grande tempestade que sobreveio, os vencedores poderiam ter ido a Jerusalém com a certeza da vitória, e a guerra teria terminado. Antígono já pensava também em abandonar a cidade e fugir. Quando chegou a noite, Herodes deu ordem que se servisse a refeição aos soldados. Como estava extremamente cansado, retirou-se para o seu quarto, a fim de tomar um banho. A providência de Deus livrou-o então de um grave perigo, pois estando nu e tendo consigo apenas um de seus criados, três dos inimigos, que o medo fizera esconder-se naquela casa, apareceram de espada em punho para se salvar e ficaram tão assustados com a presença do rei no banho que, em vez de matá-lo, como poderiam ter feito facilmente, só pensaram em escapar. No dia seguinte, Herodes, depois de mandar cortar a cabeça Papo, que estava no número dos mortos, mandou-a a Feroras, para consolá-lo da perda do irmão, pois fora Papo quem matara José. 622. Cessada a tempestade, esse grande general marchou para Jerusalém, acampou perto da cidade e sitiou-a, três anos após ser declarado rei em Roma. Escolheu o lugar que julgou mais apropriado para tomar a cidade e colocou o seu acampamento diante do Templo, como outrora Pompeu havia feito. Usando uma grande quantidade de trabalhadores, fez elevar três plataformas. Também construiu torres e derrubou muitas árvores. Enquanto o cerco continuava, ele foi a Samaria para desposar Mariana, filha de Alexandre e neta do rei Aristóbulo, que ele tinha como noiva, conforme dissemos anteriormente. CAPÍTULO 28 HERODES, AJUDADO POR SÓSIO, GENERAL ROMANO, TOMA JERUSALÉM E RESGATA O SAQUE. SÓSIO APRISIONA ANTÍGONO E LEVA-O A ANTÔNIO. 623. Herodes levou para o seu exército, depois de suas núpcias, um reforço de trinta mil homens. Sósio, que havia mandado a ele o seu exército, que era poderoso tanto em cavalaria quanto em infantaria, veio ao mesmo tempo pela Fenícia. Assim, reuniram-se tropas de todos os lados para se juntar no cerco de Jerusalém, que era atacada pelo norte. Havia cerca de onze legiões e seis mil cavaleiros, além das tropas auxiliares da Síria. Os dois chefes desse célebre cerco eram Sósio, enviado por Antônio em auxílio de Herodes, e este, que fazia guerra por si mesmo, para arruinar Antígono, inimigo declarado do povo romano, e assim garantir-se na coroa que o decreto do senado lhe havia conferido. Os judeus, vindos de todas as partes do reino para reunir-se naquela praça, defendiam-na com extrema coragem. Vangloriando-se da santidade do Templo, afirmavam ao povo que Deus os livraria daquele perigo e faziam secretamente incursões pelos campos, para estragar os víveres e a forragem, a fim de que viessem a faltar aos que o cercavam. Herodes, para remediar isso, colocou em diversos lugares tropas de emboscada e fez vir comboios de longe, que trouxeram abundância de víveres e todas as coisas necessárias para o exército. Empregou também um grande número de trabalhadores, pois, sendo verão, a estação favorável os ajudava, sem retardar os trabalhos, de modo que ele terminou as três plataformas que iniciara a construir. Batia ao mesmo tempo nos muros da cidade com as suas máquinas e tudo fazia para chegar logo ao termo de tão grande empresa. Os sitiados, por sua vez, faziam todos os esforço imagináveis para bem se defender: queimavam os trabalhos, não somente os começados, mas também os já concluídos, e faziam ver, pelo seu extremo valor, que os romanos os superavam somente na ciência da guerra. No lugar dos muros derrubados pelas máquinas, eles construíam logo outros, retribuíam astúcia por as-túcia e combatiam às vezes corpo a corpo. Assim, embora sitiados por um poderoso exército e ao mesmo tempo oprimidos pela fome, porque aquele ano era de sábado, o próprio desespero os animava, e nada os convencia a se entregar. Por fim, no quadragesimo dia do cerco, vinte dos mais valentes soldados romanos subiram a muralha seguidos por um de seus oficiais, que estava sob o comando de Sósio, e, ajudados por outras tropas, apoderaram-se dela. Quinze dias depois, o segundo muro também foi tomado, e alguns pórticos do Templo foram incendiados, mas Herodes disso acusou Antígono, para torná-lo odioso ao povo. A parte externa do Templo e a cidade baixa também foram tomadas, e os sitiados retiraram-se para a cidade alta e para o Templo, temendo que os romanos os impedissem de oferecer a Deus os sacrifícios ordinários, e rogaram aos sitiantes que lhes permitissem fazer entrar somente os animais necessários para esse fim. Herodes consentiu, na esperança de que esse favor os dobrasse. Mas, vendo que se obstinavam mais do que nunca em manter Antígono na realeza, redobrou os esforços para tomar a praça. Viu-se então surgir, mais do que antes e de todas as partes, a figura horrorosa da morte, pois os romanos estavam irritados porque o cerco se prolongava demasiado, e os judeus afeiçoados a Herodes queriam destruir inteiramente os compatriotas que haviam abraçado o partido contrário. Assim, matavam-nos nas ruas, nas casas e mesmo quando se refugiavam no Templo. Não poupavam velhos nem moços, e a fraqueza do sexo não lhes despertava a menor compaixão pelas mulheres. E, embora Herodes ordenasse que fossem poupadas e unisse rogos às suas ordens, eles não lhe obedeciam, pois estavam tão inflamados pelo furor que haviam perdido todo o senso de humanidade. 624. Antígono, com um proceder indigno de seu glorioso passado, desceu da torre onde estava e veio lançar-se aos pés de Sósio, que, em vez de se comover, insultou-o ainda na sua infelicidade, chamando-o não de Antígono, mas de Antígona. Tratou-o, porém, como mulher porque não confiou nele e fez com que o custodiassem com muito cuidado. 625. Herodes, depois de tanta dificuldade para vencer os inimigos, teve ainda graves embaraços para reprimir a insolência daqueles estrangeiros que havia chamado em seu auxílio. Eles lançaram-se em massa sobre o Templo e queriam até mesmo entrar no Santuário. Para impedi-los, ele empregou não somente rogos e ameaças, mas também a força, porque se julgava mais infeliz como vencedor do que se tivesse sido vencido, uma vez que a sua vitória estava expondo a olhos profanos o que não lhes era permitido ver. Fez tudo o que foi possível para impedir o saque da cidade, dizendo energicamente a Sósio que, se os romanos a queriam despovoar e saquear, concluir-se-ia que ele fora constituído rei de um deserto. Declarou também que não compraria nem mesmo o império do mundo, se lhe custasse o sangue de um número tão grande de seus súditos. A isso Sósia respondeu que não se podia negar aos soldados o saque de uma praça que eles haviam tomado. Herodes então prometeu compensá-los com dinheiro. Assim, preservou a cidade e cumpriu magnificamente a sua promessa, tanto para com os soldados quanto para com os oficiais, particularmente Sósio. Essa tomada de Jerusalém aconteceu sob o consulado de M. Agripa e de Canísio Calo, na centésima octogésima quinta Olimpíada, no terceiro mês, e durante um jejum solene, no mesmo dia em que Pompeu a havia tomado, vinte e sete anos antes. 626. Sósio, depois de consagrar a Deus uma coroa de ouro, partiu de Jerusalém e levou Antígono prisioneiro a Antônio. Isso pôs Herodes em grande ansiedade, pois receava que Antônio o deixasse partir ou que Antígono, quando chegasse a Roma, dissesse ao senado que, sendo de família real, devia ser preferido a Herodes, o qual nada tinha de ilustre por nascimento, e que mesmo que a sua revolta contra os romanos o impedisse de manter-se no reino, pelo menos não poderiam com justiça privar dele os seus filhos, que não os haviam ofendido. Para livrar-se dessas apreensões, conseguiu fazer com que Antônio, por meio de uma grande soma de dinheiro, mandasse matar Antígono. 627. Assim, a família dos asmoneus, após reinar cento e vinte e seis anos, perdeu o trono. Essa família foi ilustre não somente por ter sido elevada ao poder, mas também porque sempre foi honrada com o sumo sacerdócio e porque as muitas e ilustres ações de seus reis elevaram em muito a glória de nossa nação. As dissensões domésticas, no entanto, causaram por fim a sua ruína, e a sua grandeza passou à família de Herodes, filho de Antipatro, o qual tinha origem numa família que nada possuía de nobre, para que fosse distinguida do comum dos demais súditos dos reis. Livro Décimo Quinto CAPÍTULO 1 ANTÔNIO MANDA CORTAR A CABEÇA DE ANTÍGONO, REI DOS JUDEUS. 628. Vimos no livro precedente a tomada de Jerusalém por Sósio e Herodes e o aprisionamento de Antígono. Vou agora falar de suas conseqüências. Quando Herodes se viu senhor da Judéia, demonstrou muita gratidão para com aqueles que lhe dedicaram afeto enquanto ele era apenas um homem da vida privada. Mas não se passava um dia em que não matasse algum dos que haviam seguido o partido de Antígono. Poliom, fariseu, e Saméias, discípulo deste, foram os únicos aos quais tratou com consideração, para recompensá-los, porque durante o cerco eles haviam aconselhado o povo a recebê-lo. Poliom era aquele que durante o julgamento de Herodes, quando os juizes o queriam condenar, predissera a Hircano e aos outros juizes que, se o absolvessem, ele os mataria a todos, o que Deus confirmou em seguida.* _____________________ * Foi dito, no artigo 595, que Saméias fez tal predição. 629. Herodes mandou levar para o palácio real tudo o que encontrou de móveis preciosos, mais o ouro e a prata que tomou dos ricos, e reuniu assim uma grande soma de que fez presente a Antônio e aos que este mais estimava. Mandou matar quarenta e cinco dos principais seguidores de Antígono e colocou guardas às portas para ver, quando trouxessem os corpos, se estavam mortos de verdade. Ordenou também que lhe trouxessem tudo o que se encontrasse de ouro e de prata. Os que haviam seguido o partido de Antígono não viam o termo de seus males. Os bens todos que possuíam eram insuficientes para satisfazer a ambição de Herodes ou para contentar a sua insaciável avareza, pois as suas finanças estavam então esgotadas. Havia ainda motivos para se temer uma carestia, porque as terras estavam em descanso, sendo aquele o sétimo ano, no qual não nos é permitido cultivar nem semear a terra. Antônio queria conservar Antígono como ornamento ao seu triunfo. Porém, vendo que os judeus o favoreciam e estavam prestes a se revoltar por causa do ódio que sentiam contra Herodes, julgou que o único meio de conservá-los no cumprimento do dever era matando-o. Assim, mandou cortar-lhe a cabeça em Antioquia. Estrabão da Capadócia relata esse fato da seguinte maneira: "Antônio, em Antioquia, mandou cortar a cabeça a Antígono, rei dos judeus, e foi o primeiro dos romanos que desse modo fez morrer um rei, porque julgou que não havia outro meio de fazer com que os judeus obedecessem a Herodes, que havia sido feito rei em seu lugar, pois estavam tão enraivecidos contra ele e tão afeiçoados a Antígono que nem mesmo a violência dos tormentos poderia obrigá-los a dar a Herodes o nome de rei. Foi isso o que levou Antônio a se servir de um suplício tão vergonhoso para um soberano, a fim de obscurecer a memória de um e moderar a aversão que se tinha pelo outro". 630. Já vimos como Barzafarnés e Pacoro, generais do exército dos partos, retive-ram presos Hircano, sumo sacerdote, e Fazael, irmão de Herodes, que se suicidou para evitar a vergonha da escravidão. Devemos dizer agora de que modo Hircano foi posto em liberdade e como veio procurar Herodes depois que este foi feito rei. CAPÍTULO 2 FRAATE, REI DOS PARTOS, PERMITE A HIRCANO, SEU PRISIONEIRO, VOLTAR À JUDÉIA. HERODES OUTORGA O SUMO SACERDÓCIO A UM HOMEM SEM MÉRITO. ALEXANDRA, SOGRA DE HERODES E MÃE DE ARISTÓBULO, DIRIGE-SE A CLEÓPATRA PARA OBTER ESSE CARGO PARA O FILHO POR MEIO DE ANTÔNIO. HERODES DESCOBRE E CONCEDE O CARGO A ARISTÓBULO. FINGE RECONCILIAR-SE COM ALEXANDRA. 631. Hircano foi levado a Fraate, rei dos partos, e esse príncipe tratou-o muito bem por causa da nobreza de sua família. Tirou-lhe as cadeias e permitiu que morasse na Babilônia, onde havia um grande número de judeus. Ele era honrado como sumo sacerdote e rei não somente pelos que se haviam estabelecido naquela poderosa cidade, mas também por todos os outros judeus que moravam além do Eufrates, e ele sentia-se feliz em sua desdita. E, quando soube que Herodes subira ao trono, concebeu as maiores esperanças, tanto porque o rei naturalmente amava os seus parentes e aliados quanto por julgar que, tendo lhe salvado a vida quando ele corria o risco de ser condenado, nada mais esperava dele senão reconhecimento. Assim, desejou ardentemente ir procurá-lo e falou de seus planos àqueles em quem mais confiava. Aconselharam-no, porém, a ficar, dizendo-lhe, para convencê-lo disso, que todos os seus compatriotas naquele país já estavam prestando a ele todas as honras que podiam prestar a seu sumo sacerdote e rei; que ele não podia esperar a mesma coisa da Judéia, por causa da maneira ultrajosa como Antígono o havia tratado; que a mudança de sorte muda também os sentimentos dos homens, e jamais os reis se lembram dos favores recebidos enquanto simples cidadãos; e que ele não devia esperar tanto afeto da parte de Herodes. Essas opiniões, embora tão sensatas, não fizeram impressão no espírito de Hircano, tanto ele estava ansioso para voltar. E Herodes escreveu-lhe também, rogando que pedisse ao rei e aos judeus para não lhe invejarem o contentamento de compartilhar o poder da realeza, pois chegara o tempo de agradecer os favores que lhe devia, tanto por Hircano havê-lo elevado como por lhe salvar a vida. Esse fingido soberano não se contentou em escrever-lhe nesses termos, mas também enviou Saramala como embaixador a Fraate, com muitos presentes, para obter deste a liberdade de seu benfeitor e a oportunidade para recompensá-lo pelos favores que recebera. Todas essas demonstrações de amizade, no entanto, eram pura mentira e hipocrisia. A única coisa verdadeira nisso tudo era que ele havia usurpado a coroa e temia uma reviravolta. Por isso desejava com ardor ter Hircano ao seu alcance, para poder matá-lo, caso julgasse tal coisa conveniente para a sua própria segurança, como nos faz ver a continuação da história. 632. Hircano foi posto em liberdade pelo rei dos partos, e os judeus que estavam na Babilônia forneceram-lhe o dinheiro necessário para a viagem. Herodes tratou-o com muita deferência. Dava-lhe sempre o primeiro lugar nas assembléias e nos banquetes, chamava-o de pai e tudo fazia para que ele não suspeitasse de sua traição, porque desejava a todo custo conservar a posse da coroa e reforçar a sua recente autoridade. Isso causou dissensões domésticas que excitaram grande perturbação, por motivo que vou relatar. O temor de que uma pessoa de origem ilustre fosse constituída no sumo sacerdócio levou Herodes a mandar vir da Babilônia um sacerdote chamado Ananel, oriundo de uma das mais obscuras famílias, e investiu-o nesse cargo. Alexandra, mãe de Hircano e viúva de Alexandre, filho do rei Aristobulo, de quem ela tivera um filho de nome Aristobulo, como o avô, e uma filha de nome Mariana, mulher de Herodes, ficou muito sentida com a injustiça que este fez ao filho, preterindo-o para honrar com tão excelsa dignidade um homem de nenhum mérito. Ela então escreveu a Cleópatra, por meio de um músico, rogando-lhe que pedisse a Antônio o cargo para o filho. A rainha prestou-lhe de boa mente aquele favor, mas nada pôde obter. Ao mesmo tempo, Célio, que era muito amigo de Antônio, veio à Judéia para alguns negócios e admirou-se da beleza extraordinária de Aristobulo e de Mariana, e da felicidade de Alexandra, por ter posto no mundo tais filhos. Aconselhou-a a mandar retratos deles a Antônio, não duvidando que ele, depois de os ter visto, faria tudo o que ela desejava. Ela acreditou, e Gélio, ao regressar para junto dele, exagerou a beleza deles, afirmando que mais pareciam divindades que criaturas humanas, e tudo fez para suscitar nele o amor por Mariana. Antônio, porém, julgou que não seria justo obrigar um rei seu amigo a enviar-lhe a própria mulher. Além disso, temia a inveja e o ciúme de Cleópatra. Assim, contentou-se em escrever a Herodes, pedindo que lhe enviasse Aristobulo por algum pretexto honesto, se isso não lhe viesse a causar nenhuma aflição. Herodes julgou arriscado enviar uma pessoa da origem, beleza e idade de Aristobulo, que então contava apenas dezesseis anos, a um homem de posição tão elevada como Antônio, que era também o mais voluptuoso dos romanos, pois podia ocultar a sua volúpia pela confiança que tinha em seu poder. Assim, respondeu-lhe que Aristobulo não poderia sair da Judéia sem perigo de uma guerra, pela esperança que tinham os judeus de ser beneficiados por uma troca de rei. 633. Herodes, depois de se desculpar perante Antônio, julgou conveniente dar atenção também a Aristobulo e a Alexandra e não descontentar Mariana, que insistentemente pedia o sumo sacerdócio para o irmão. Ele julgou também vantajoso tirar a Aristobulo qualquer ocasião de sair do país sob pretexto de viagem. Reuniu em seguida os seus amigos mais íntimos e queixou-se muito de Alexandra, dizendo que ela trabalhava secretamente para tirar-lhe a coroa e para fazer com que Antônio, por meio de Cleópatra, a entregasse ao filho, e que nisso ela era ainda mais culpada, pois não poderia obtê-lo sem fazer a filha descer do trono e sem tirar ao genro uma honra que ele conquistara com muitos sofrimentos e perigos, mas que ele desejava, no entanto, esquecer essa injustiça e demonstrar em atos o seu afeto por ela e pelos seus, outorgando ao filho dela o sumo sacerdócio que Ananel exercera até então por causa da pouca idade de Aristóbulo. Essas palavras, que Herodes premeditara para enganar as princesas e os amigos, comoveram Alexandra, tanto pela alegria de obter o que tão ardentemente desejava quanto pelo temor de ver que Herodes havia descoberto os seus desígnios, e de tal modo que, banhada em lágrimas, ela lhe confessou que tudo o que tentara referente ao sumo sacerdócio fora na persuasão de que seria vergonhoso para o filho ver outro homem no cargo. Quanto ao que se referia ao reino, porém, não tivera a menor idéia de pretendê-lo para o filho, e, ainda que o oferecessem, ela não aceitaria, pois era uma grande honra ver a filha reinar com ele e sua família, e nada tinha a temer. Por isso, vencida pelos benefícios, ela recebia com gratidão a honra que ele fazia ao filho, e Herodes podia ter a certeza de que ele lhe seria submisso. Rogou-lhe ainda que perdoasse tudo o que os sentimentos de sua origem e a injustiça que julgava se fazia a Aristóbulo a tinham levado a empreender. Em seguida, depois dessas palavras, apertaram-se as mãos, para mostrar que a reconciliação era verdadeira. E todos julgaram que, de fato, não havia mais entre eles nenhum motivo de desconfiança. CAPITULO 3 HERODES TIRA O CARGO DE SUMO SACERDOTE DE ANANEL E O ENTREGA A ARISTÓBULO. MANDA PRENDER ALEXANDRA E ARISTÓBULO QUANDO ELES TENTAM PROCURAR CLEÓPATRA PARA SE SALVAR. FINGE RECONCILIAR-SE COM ELES. MANDA AFOGAR ARISTÓBULO E ORDENA-LHE MAGNÍFICOS FUNERAIS. 634. Logo depois, o rei Herodes tirou o sumo sacerdócio de Ananel, o qual, embora fosse da família dos sacerdotes, passava por estrangeiro porque era da raça dos judeus que moravam em grande número além do Eufrates. Herodes honrara-o com aquela dignidade logo que subira ao trono, mas apenas porque era um grande amigo. E tirou-a somente porque julgou necessário, para acalmar as divergências em família, pois aquele cargo era concedido não por algum tempo, mas para sempre, e não se podia tirá-lo de alguém sem cometer uma injustiça. Antíoco Epifânio foi o primeiro a violar essa lei, quando depôs Jesus para colocar Onias em seu lugar. Aristóbulo foi o segundo, quando tirou o cargo de Hircano, seu irmão, a fim de tomá-lo para si mesmo. E Herodes foi o terceiro, quando, para ter paz em casa, o entregou a Aristóbulo, vivendo ainda Ananel. 635. Essa reconciliação, todavia, não impediu que Herodes continuasse com as suas desconfianças. Julgou que Alexandra, depois do que ela havia feito, não deixaria de provocar uma rebelião, se ocasião para tal se apresentasse. Assim, proibiu-a de sair do palácio e de intrometer-se em qualquer coisa. Mandou vigiá-la com tanto cuidado que nada fazia ela que não lhe fosse logo relatado. Como era muito orgulhosa, coisa natural nas mulheres, ela suportava com grande revolta aquele indigno tratamento, pois preferia sofrer qualquer coisa a perder a liberdade. Sob pretexto de honra, faziam-na passar a vida numa verdadeira escravidão e em contínuo temor. Assim, ela resolveu escrever à rainha Cleópatra, rogando-lhe que tivesse compaixão dela e de sua infelicidade e a ajudasse. A princesa mandou dizer-lhe que tentasse fugir com o filho para o Egito. Alexandra aprovou o conselho e ordenou a dois de seus servidores de mais confiança que fizessem duas caixas em forma de ataúde, numa das quais ela se encerraria, e na outra estaria o seu filho, para de noite serem levados a bordo de um navio que já estava preparado para partir para o Egito. Esopo, um desses servidores, falou disso a Sabiom, julgando que ele sabia do caso, pois passava por muito amigo de sua senhora e grande inimigo de Herodes — até mesmo se suspeitava que ele fosse um dos cúmplices no envenenamento de Antipatro. Esse homem, porém, feliz por haver encontrado tão favorável ocasião para conquistar o afeto de Herodes, foi manifestar-lhe a intenção de Alexandra de fugir para o Egito. Herodes, que não era menos vingativo que inteligente, deixou-a executar livremente o seu intento com o filho, sem detê-los, senão quando já eram levados naquelas caixas em forma de ataúde. Como ele não ousava causar mal a Alexandra, para que Cleópatra não ficasse ressentida, fingiu perdoá-la e mostrou-se clemente para com mãe e filho, num excesso de bondade. Mas no seu coração resolveu eliminar Aristóbulo de qualquer maneira. Esperaria mais um pouco, no entanto, para melhor ocultar os seus intentos. A festa dos Tabernáculos, uma das que nós celebramos com maior solenidade, havia chegado, e ele a quis passar em banquetes com o povo. Mas um fato que aconteceu nessa ocasião aumentou de tal modo a sua inveja por Aristóbulo que ele não pôde esperar mais para executar o seu projeto. Eis como as coisas se passaram: 636. Esse príncipe, que então contava dezessete anos, revestido com os ornamentos de sumo sacerdote, subiu ao altar para oferecer a Deus os sacrifícios ordenados na Lei. A sua extraordinária beleza e a figura esbelta, que sobrepujava em muito os de sua idade, fizeram brilhar de tal modo em sua pessoa a majestade de sua descendência que ele atraiu sobre si os olhos e o afeto de toda aquela grande multidão. Esse fato renovou no espírito do povo a lembrança dos grandes feitos de Aristobulo, seu avô. O povo não pôde esconder a sua alegria, e as aclamações e votos ao jovem príncipe foram manifestados com excessiva liberdade, não recomendável sob o reinado de um soberano tão invejoso e cioso de sua autoridade como Herodes. Essa demonstração de sentimentos pela família de Aristobulo e de gratidão pelos favores dele recebidos irritaram-no tanto que ele não quis adiar mais a execução do que tinha em mente. Assim, passada a festa, foi a um banquete que Alexandra oferecia em Jerico. Ali, como para homenagear Aristobulo, ele demonstrou prazer em assistir aos divertimentos dos moços. Com essa intenção, foi a um lugar ideal para o seu propósito. Sendo um dia de muito calor, os moços ficaram logo cansados de jogar e foram descansar e abrigar-se dos ardores do sol do meio-dia num jardim, onde se puseram a contemplar alguns dos companheiros e servidores que se banhavam. Herodes fez com que Aristobulo fosse banhar-se com eles, e então aqueles que ele havia levado para esse fim atiraram-se também à água e, como brincadeira, fizeram Aristobulo mergulhar, mas não o deixaram emergir, até que ele morreu afogado. Esse foi o triste fim de Aristobulo, que contava apenas dezoito anos e somente por um ano exercera o sumo sacerdócio. Herodes logo o restituiu a Ananel. Quem poderia exprimir a dor da mãe e da irmã desse infeliz príncipe? Elas derramavam lágrimas junto ao seu corpo e estavam inconsoláveis. A notícia espalhou-se logo por toda a Jerusalém e encheu a cidade de luto. Não havia uma casa ou família que não considerasse aquela perda como própria. Nenhuma outra dor, porém, se igualava à de Alexandra, e o conhecimento da traição que tão cruelmente lhe arrebatara o filho aumentava-a ainda mais. Era, no entanto, obrigada a dissimular, pelo temor de um mal maior. Veio-lhe muitas vezes à mente a idéia de matar-se, mas se conteve, na esperança de que, sobrevivendo ao filho sem mostrar o que sabia a respeito de sua morte, encontraria talvez ocasião para vingá-la. Herodes, por sua vez, usava de todos os meios para persuadir a todos de que não tivera naquilo a mínima participação, e não somente com palavras procurava demonstrar a sua tristeza e pesar, mas a elas ajuntava lágrimas, as quais pareciam tão espontâneas que poderiam passar por verdadeiras. A verdade, porém, é que ele julgava que a sua segurança dependia daquela morte. No entanto não podia deixar de se comover pela morte de um príncipe de tão rara beleza, tirado do mundo na flor da idade. Fosse como fosse, ele fazia todo o possível para dar a entender que não era culpado daquele crime, e não poupou despesas para lhe organizar um magnífico funeral. Se a dor das princesas pudesse ter sido mitigada por demonstrações exteriores de afeto, tê-lo-ia sido, sem dúvida, pela quantidade de preciosos perfumes que ele fez queimar sobre o túmulo e pelos ornamentos de que o enriqueceu, com magnificência mais que real. CAPÍTULO 4 HERODES É OBRIGADO A JUSTIFICAR-SE DIANTE DE ANTÔNIO PELA MORTE DE ARISTÓBULO E O CONQUISTA POR MEIO DE PRESENTES. ANTES DE PARTIR, ORDENA A JOSÉ, SEU CUNHADO, QUE MANDE MATAR MARIANA, CASO ANTÔNIO O CONDENE À MORTE. JOSÉ CONTA-O IMPRUDENTEMENTE À PRINCESA, E HERODES MANDA MATÁ-LO, POR CIÚME. AVAREZA INSACIÁVEL E AMBIÇÃO DESMESURADA DE CLEÓPATRA. 637. A perda de um filho tão amável fez uma ferida tão profunda no coração de Alexandra que nada podia consolá-la. Seu penar renovava-se todos os dias, com sentimentos tão vivos que todos a animavam continuamente a se vingar. Ela escreveu então a Cleópatra, narrando como Herodes lhe havia arrebatado o filho, com tão detestável traição. A rainha, que sempre fora inclinada a ajudá-la, teve tanta pena de sua desdita que tudo fez para persuadir Antônio a vingar uma morte tão deplorável. Falou-lhe como de coisa horrível, na qual ia também algo da honra dele, pois Herodes, depois de ter sido por seu intermédio elevado ao trono, ao qual não tinha direito, praticara aquela rara crueldade, derramando o sangue daquele que era o legítimo possessor. Antônio ficou impressionado com essas palavras e, como não podia aprovar tão negra ação, caso fosse verdadeira, dirigiu-se a Laodicé, dando ordem para que Herodes fosse procurá-lo a fim de se justificar do crime de que o acusavam. Herodes, que se sentia culpado e receava a ira de Cleópatra, que ele sabia incitar continuamente Antônio contra ele, temia muito essa viagem. A necessidade de obedecer, no entanto, o obrigou a empreendê-la, e ele deixou o governo do reino a )osé, seu cunhado,* ordenando-lhe em segredo que, se Antônio o condenasse, ele deveria imediatamente matar a rainha Mariana, sua mulher, pois ele a amava com tanta paixão que não podia tolerar que, depois de sua morte, ela passasse para outro homem. Além disso, considerava que ela era a causa de sua infelicidade, pois a fama de sua extraordinária beleza suscitara havia muito o amor de Antônio por ela. Depois de dar essas ordens, ele se pôs a caminho, com pouca esperança de um feliz êxito. _______________________ * A continuação da história nos faz ver que José era cunhado de Herodes, e não seu tio, como nos refere o texto grego. 638. Na ausência de Herodes, José ia freqüentemente visitar Mariana, quer para prestar-lhe a honra que lhe era devida, quer para tratar dos negócios do reino, e lhe falava constantemente do extremo amor que o rei seu marido tinha por ela. Quando ele notou que, em vez de mostrar que acreditava, ela se punha a zombar, e Alexandra, sua mãe, mais que ela ainda, um imprudente desejo de fazê-las mudar de sentimento levou-o a revelar a ordem que recebera, o que comprovava que Herodes não podia tolerar que a morte o separasse dela. Essas palavras, todavia, em vez de persuadir as princesas do afeto de Herodes, causaram-lhes horror, pela tirânica desumanidade que, mesmo após a morte, o tornava tão cruel para com a pessoa a quem ele mais amava na terra. 639. Os inimigos desse príncipe então fizeram correr a notícia de que Antônio mandara matar Herodes, depois de submetê-lo a diversos tormentos. Toda a cidade de Jerusalém ficou agitada, principalmente no palácio real e no das princesas. Alexandra exortou José a sair com ela e com Mariana, a fim de se colocarem sob a proteção das águias romanas — da legião comandada por Júlio, que estava acampada fora da cidade — e assim ficarem em segurança, caso houvesse algum tumulto, e também porque ela não duvidava de que quando Antônio visse Mariana obteria dele tudo o que quisesse, até mesmo a restauração ao trono e todas as outras honras e privilégios que o seu nascimento lhe permitia esperar. Pensavam assim, quando receberam cartas de Herodes, contrariando essas notícias. Diziam que, tendo chegado onde Antônio estava, havia acalmado o seu espírito com grandes presentes, tornando-o tão favorável nas conversações que tivera com ele que não havia mais motivo para temer os maus ofícios de Gleópatra, porque Antônio afirmava que um refnão era obrigado a prestar contas a ninguém de suas ações com relação ao governo de seu território, pois se assim fosse deixaria de ser rei, não podendo agir com a autoridade que tal posição lhe concede, e que não importava, nem mesmo a Cleópatra, a maneira como os reis governam. As cartas acrescentavam que não havia honras que ele não tivesse recebido de Antônio, o qual se servia de seus conselhos e o convidava todos os dias para banquetes, embora Cleópatra fizesse todos os esforços para destruí-lo, pelo desejo que tinha de ser rainha da Judéia. Mas a justiça de Antônio estava à porta dos artifícios e calúnias da princesa, e assim ele voltaria logo, mais consolidado do que nunca em seu reino e no afeto de Antônio, sem que restasse a Cleópatra esperança alguma de prejudicá-lo, porque Antônio entregara a ela a Baixa Síria, com a condição de que desistisse das pretensões que tinha sobre a Judéia. 640. Essas cartas fizeram Alexandra — e também Mariana — abandonar a idéia de ficar sob a proteção das águias romanas, mas Herodes veio a sabê-lo. Salomé, sua irmã, e sua mãe disso lhe falaram logo que ele chegou a Jerusalém e depois que Antônio partiu em marcha contra os partos. Salomé fez ainda mais. Para se vingar de Mariana, que tinha o coração extremamente grande, mas havia censurado numa contestação entre ambas a baixeza da origem da outra, ela acusou José, seu próprio marido, de ter se portado muito familiarmente com a princesa. Herodes, que amava ardentemente Mariana, sentiu então até onde iam os seus ciúmes. Conteve-se, todavia, embora com dificuldade, para que não percebessem que a sua paixão o fazia perder o juízo. E, em particular, perguntou a Mariana que relações ela tivera com José. Ela protestou com juramento, do qual uma pessoa inocente pode se servir para a sua justificação, que nada houvera entre eles que ele viesse a ter motivo para se queixar. Herodes, vencido pelo amor que lhe devotava, não somente acalmou o espírito como também pediu perdão por ter, ainda que levemente, prestado fé às palavras que lhe haviam dito. Demostrou ainda toda a satisfação que sentia por saber que ela era tão fiel e tudo fez para mostrar-lhe com que paixão a amava. Tantas provas de ternura fizeram, como acontece em casos semelhantes, com que ambos se pusessem a chorar e se abraçassem. Porém, ainda que Herodes se esforçasse por lhe incutir cada vez mais o seu amor, ela não pôde deixar de lhe dizer: "Achais então que é grande prova de amor ter ordenado que me mandassem matar, caso Antônio também vos tirasse a vida, embora eu jamais tivesse dado motivo para que ficásseis insatisfeito comigo?" Essas palavras foram como uma punhalada no coração de Herodes. Ele afastou Mariana, a quem ainda estava abraçado, arrancou os cabelos e disse que já não podia duvidar de seu crime, pois era impossível que José lhe tivesse manifestado um segredo daquela importância sem que ela se tivesse entregado a ele, para recompensá-lo pela traição. Ficou de tal modo transtornado pela cólera que a teria matado naquele mesmo instante, se a violência do amor não tivesse combatido a força do ciúme. Quanto a José, mandou imediatamente matá-lo, sem nem mesmo querer vê-lo ou ouvi-lo, e mandou meter Alexandra numa prisão, como sendo a causadora de todo aquele mal. 641. Nesse ínterim, a Síria estava convulsionada pela insaciável avareza de Cleópatra, a qual, abusando do poder que exercia sobre o espírito de Antônio, incitava-o continuamente contra os grandes do país, a fim de que ele os privasse de suas terras e possessões e as entregasse a ela. O amor que ela nutria pelas riquezas era tão grande que nada havia que não julgasse lícito para obtê-las. A sua ambição era tão desme.surada que ela mandou envenenar o irmão de quinze anos, ao qual pertencia o reino, e fez com que Antônio mandasse matar Asinoé, sua irmã, enquanto esta orava em Éfeso, no Templo de Diana. Ela não temia violar a santidade dos Templos, dos sepuicros ou dos asilos, se deles pudesse obter dinheiro. Não tinha escrúpulos em cometer sacrilégios, se lhe fossem úteis, nem diferençava os caminhos santos dos profanos, quando se tratava de seus interesses. Não tinha nenhuma dificuldade em calcar aos pés a justiça, contanto que daí lhe viesse alguma vantagem. Os tesouros todos da terra dificilmente seriam suficientes para satisfazer essa ambiciosa e voluptuosa princesa. Não devemos, portanto, nos admirar de que ela instigasse continuamente Antônio a despojar os outros para enriquecê-la. Assim, não havia ainda entrado com ele na Síria, quando sonhou apoderar-se de toda a região. Mandou então matar Lisânias, filho de Ptolomeu, dizendo que ele favorecia os partos. Depois insistiu com Antônio que tirasse a Arábia e a Judéia de seus reis as entregasse a ela. No entanto, embora a paixão de Antônio por ela fosse tão violenta que parecia havê-lo enlouquecido, ele não quis cometer uma injustiça tão patente, que com certeza teria mostrado ao mundo que ele era escravo de uma mulher. E, para não aborrecê-la com uma negativa a todos os seus pedidos e também para não passar por injusto perante todos se neles consentisse, deu-lhe tudo o que se havia suprimido dessas duas províncias e todas as cidades situadas desde o rio de Eleutério até o Egito, exceto Tiro e Sidom, que ele sabia terem sido sempre cidades livres, não obstante os esforços que ela fazia para obtê-las. CAPÍTULO 5 CLEÓPATRA VAI ÀJUDÉIA E INUTILMENTE PROCURA SUSCITAR AMOR EM HERODES. ANTÔNIO, APÓS CONQUISTAR A ARMÊNIA, CONTEMPLA ESSA PRINCESA COM MAGNÍFICOS PRESENTES. 642. Cleópatra, depois de acompanhar Antônio até o Eufrates, veio a Apaméia e a Damasco, enquanto ele marchava com o seu exército pela Armênia, e desejou também ver a Judéia. Herodes recebeu-a com grandes honras e tratou com ela a respeito das rendas da parte da Arábia a ela concedida por Antônio e do território de Jerico, o único lugar onde cresce o bálsamo, que passa pelo mais excelente de todos os perfumes, e onde se vêem em abundância as mais belas palmeiras no mundo. Durante as diversas entrevistas que Herodes teve com a princesa, ela tudo fez para envolvê-lo amorosamente. E, como era muito impudica, certamente sentia atração por ele. No entanto, o mais verossímil é que o seu intento fosse o de por esse meio encontrar ocasião para destruí-lo. De qualquer modo, ela demonstrou sentir grande paixão por Herodes. Ele, que, ao contrário, nutria por ela grande aversão havia muito tempo, pois essa princesa sentia prazer em fazer mal a todos, não somente permaneceu insensível às suas carícias como se sentiu horrorizado pela sua falta de pudor, chegando a consultar os amigos se não era o caso fazê-la morrer e assim livrar muita gente dos males que ela causava, bem como dos que poderia vir a causar. Alegou ainda que estaria fazendo um favor a Antônio, pois se a sorte deixasse de lhe ser favorável, ele só poderia esperar dela infidelidade, em vez de auxílio. A sua intenção era libertar o mundo daquela inimiga declarada da virtude e da justiça. Os amigos, porém, foram de opinião contrária. Disseram que não era vantagem um príncipe tão hábil como ele lançar-se em tão grave perigo; que não devia agir com tal precipitação; que era impossível Antônio não descobrir o seu ato; que, por maior benefício que Antônio viesse a obter com aquilo, a cólera por se ver daquele modo privado da princesa aumentaria ainda mais o seu amor por ela; que ele não escutaria nenhuma alegação em justificativa ao atentado à mais poderosa rainha de seu tempo, pois ainda que a sua morte lhe fosse útil, não se poderia negar que ele com isso seria grandemente ofendido; e que, sendo evidente que Herodes nada podia empreender contra Cleópatra sem atrair sobre si e sobre a sua família grandíssimos males, julgavam que a melhor deliberação a tomar, depois que ele recusara corresponder ao amor da princesa, era fazer em tudo o mais o que fosse possível para contentá-la. Herodes deixou-se persuadir por essas razões. Então, serenou Cleópatra com grandes presentes e levou-a até o Egito. Depois que Antônio conquistou a Armênia, mandou Artabaso, filho de Tigrano, e os príncipes seus filhos como prisioneiros ao Egito e deles fez presente a Cleópatra, junto com o que havia conquistado de mais precioso naquele reino. Artáxio, filho mais velho de Artabaso, que havia fugido ante a notícia dessa guerra, reinou depois no lugar de seu pai. Mas Arquelau e o imperador Nero o expulsaram do reino, colocando Tigrano, o mais novo de seus irmãos, no trono. Quanto aos tributos dos países que Antônio entregara a Cleópatra, Herodes pagava-os rigorosamente à princesa, porque ele bem sabia o quanto lhe era conveniente não dar a ela motivo para que o odiasse. Depois que a cobrança desses tributos passou a pertencer a Herodes, os árabes pagaram-lhe durante algum tempo duzentos talentos por ano. Depois passaram a lhe tributar apenas parte desse valor. CAPÍTULO 6 HERODES PRETENDE SOCORRER ANTÔNIO CONTRA AUGUSTO. ANTÔNIO, PORÉM, OBRIGA-O A CONTINUAR OS PLANOS DE GUERRA AOS ÁRABES. HERODES ENTRA NO PAÍS DOS ÁRABES, VENCE-OS, MAS PERDE OUTRA LUTA, QUANDO JULGAVA TER VENCIDO A GUERRA. 643. Herodes, cuja coragem não podia tolerar tal injustiça e desprezo dos árabes, preparava-se para entrar com armas no país deles, quando uma grande guerra civil rebentou entre os romanos, para se decidir a quem pertenceria o império do mundo, se a Antônio ou a Augusto. A batalha de Áccio, que se travou na centésima octogésima sétima Olimpíada, decidiu a sorte em favor de Augusto. Como o rei dos judeus devia a Antônio muitas obrigações e o longo e pacífico domínio de um país tão abundante em pastagens e gado, além de outras grandes rendas, que o haviam tornado extremamente rico, ele preparou grandes forças para ir em seu auxílio. Mas Antônio mandou dizer-lhe que não precisava delas e que, tendo sabido por ele e pela rainha Cleópatra da perfídia dos árabes, preferia que Herodes marchasse contra eles. Cleópatra, que estava muito satisfeita por ver os judeus e os árabes em luta, enfraquecendo-se uns aos outros, foi causa dessa resposta de Antônio, que obrigou Herodes a mudar de idéia. Em seguida, Herodes entrou na Arábia com um poderoso exército e avançou para Dióspolis, e os árabes vieram contra ele. Travou-se o combate, que foi muito sangrento, mas os judeus foram vitoriosos. Os árabes reuniram um novo exército perto de Canate, na Baixa Síria. Herodes marchou contra eles com a maior parte de suas tropas e, quando estava perto, decidiu acampar e fortificar o seu acampamento, a fim de esperar o tempo mais conveniente para atacá-los. Os soldados, porém, instaram com ele em altos brados para que não adiasse mais a luta e os levasse logo à batalha, pois a vitória que haviam conquistado e a confiança nas próprias forças tornara-os corajosos. Herodes julgou que não devia deixar esfriar aquele entusiasmo e aproveitou a ocasião para dizer que não lhes seria inferior em coragem. Então pôs-se à frente deles e marchou contra os inimigos. A ousadia com a qual partiu contra os árabes encheu estes de admiração, de modo que a maior parte fugiu — e teriam sido completamente derrotados, se Ateniom, general das tropas de Cleopatra naquele país, não o tivesse impedido. Como ele odiava Herodes, esperou com as suas tropas, em boa ordem, o advento da batalha, com a intenção de não se declarar por nenhum partido, caso os árabes levassem vantagem. Mas quando viu que estavam sendo derrotados, atacou os judeus, já cansados do combate. Apanhou-os justamente quando já se julgavam vitoriosos e, pensando que nada mais tinham a temer, começavam a se desorganizar. Não foi difícil par ele matar um grande número deles, tendo ainda a vantagem de conhecer a região, que era muito pedregosa e difícil. Então os árabes retomaram coragem e voltaram para atacar os judeus, que não estavam mais em condições de resistir. A mortandade foi tão grande que apenas uma pequena parte das tropas pôde, com dificuldade, retirar-se do campo. Herodes correu a toda brida para trazer outras tropas em socorro, mas não pôde impedir que o acampamento fosse saqueado. Assim, os árabes, por uma facilidade inesperada, obtiveram a vitória quando já se julgavam vencidos e destruíram um poderoso exército. Herodes evitou desde aquele dia travar novo combate. Contentou-se em acampar nos montes e fazer pequenas incursões naquele país e com isso obteve grande lucro, pois esse trabalho, ao qual acostumou os seus, permitiu-lhes reparar a perda que haviam sofrido. CAPÍTULO 7 ESTRANHO TREMOR DE TERRA EM JERUSALÉM. OS ÁRABES ATACAM OS JUDEUS E MATAM OS EMBAIXADORES ENVIADOS POR ESTES PARA PEDIR A PAZ. 644. No sétimo ano do reinado de Herodes, o mesmo em que se deu a batalha de Áccio, entre Augusto e Antônio, aconteceu na Judéia o maior terremoto de que ali se teve notícia. A maior parte do gado morreu, e cerca de dez mil homens ficaram esmagados sob as ruínas de suas casas. Os soldados não sofreram mal algum porque estavam acampados ao ar livre. Não se pode calcular como essa perda, que se dizia ainda maior, pelo ódio que as outras nações tinham da nossa, levantou o ânimo dos árabes. Eles imaginaram que todas as nossas cidades haviam sido destruídas e que não restava mais ninguém para lhes resistir. Assim, em vez de sentir pena da infelicidade dos judeus, eles mataram os embaixadores que estes lhes haviam mandado para pedir a paz e marcharam contra o nosso povo com ardor não menor que a solicitude ou a alegria. Os judeus não ousaram esperá-los, porque o infeliz resultado na guerra, as perdas que o terremoto havia causado e a pouca probabilidade de receber socorro os abateram de tal modo que, não sendo mais movidos pelo amor do bem público, estavam prestes a se abandonar a um completo desespero. Em tão extrema consternação, Herodes tudo fez para despertar a coragem de seus chefes e, vendo que os mais valentes começavam a conceber melhores esperanças, atreveu-se a falar às tropas, coisa que antes não ousara fazer, pois notara, em outras ocasiões, que quando a sorte lhes era contrária, eles nada queriam escutar. CAPÍTULO 8 DISCURSO DO REI HERODES AOS SOLDADOS, QUE LHES RESTITUI A CORAGEM, E ELES OBTÊM VITÓRIA CONTRA OS ÁRABES E OS OBRIGAM A TOMAR HERODES COMO SEU PROTETOR. 645. Disse-lhes o soberano: "Não ignorais, certamente, as desgraças que retardaram o nosso progresso de algum tempo para cá. Elas foram tão grandes que não se pode achar estranho que tenham amedrontado até mesmo os mais ousados. Mas, como os podemos vencer com a nossa virtude — toda a razão está do nosso lado —, por que não esperar mais do futuro e não retomar aqueles primitivos sentimentos de generosidade que nos tornaram temíveis aos inimigos? A única razão dessa guerra deve ser suficiente para vos animar, pois não a tendo empreendido senão para repelir injúrias intoleráveis, nada pode ser mais justo. Os males que nos afligem não nos devem fazer desesperar da vitória. Torno-vos a todos como testemunhas dos ultrajes que recebemos desses bárbaros, os mais pérfidos e ímpios de todos os homens. Por maiores que sejam os motivos que todos os seus vizinhos tenham para se queixar deles, ninguém experimentou como nós os efeitos de sua avareza e inveja. Que direi de sua ingratidão, sem falíir das outras obrigações que eles nos devem? Pois, podem eles negar que fui eu, pelo afeto que Antônio sempre me demonstrou, quem impediu que eles caíssem sob o domínio de Cleópatra? Quando essa princesa obteve de Antônio parte do país deles e do nosso, acaso deixei de ajudá-los ou não procurei a tranqüilidade dos dois povos com os presentes que lhes fiz de meus próprios bens? Por esse motivo, pago duzentos talentos cada ano e sou fiador de outros tantos, e, embora as terras das quais se exige esse tributo nos pertençam, são esses bárbaros que as possuem. Sendo judeus como nós, que motivo têm para nos obrigar a pagar esse tributo e nos tirar parte de nossos bens para dá-los a outro país que nos é devedor de sua salvação? É ainda mais injusto, porém, que aqueles que não podem negar ter obtido a liberdade pelo nosso auxílio, os quais nos apresentaram os seus agradecimentos por isso, tenham recusado, em plena paz e no tempo em que se diziam nossos amigos, pagar o que nos deviam. Como se pode, sem infâmia, faltar à palavra aos amigos, quando se é obrigado a mantê-la aos próprios inimigos? Um povo tão brutal só acha honesto aquilo que lhe é útil e julga que as injúrias devem ficar impunes quando são vantajosas aos que as fazem. Quem pode então duvidar de que não somos obrigados a nos vingar pelas armas das ofensas que recebemos desses bárbaros? Deus mesmo no-lo ordena, quando nos manda odiar a insolência e a injustiça, e esta guerra não é somente justa, mas necessária. Pois, matando os nossos embaixadores, como fizeram, não cometeram eles, segundo o juízo dos gregos e mesmo o das nações selvagens, o maior de todos crimes? Quem não sabe que entre os gregos o nome de arauto é sagrado e inviolável? Com muito maior razão deve sê-lo entre nós, que recebemos de Deus as nossas santas leis, pelo ministério dos anjos, que são os seus arautos e mensageiros. E essa uma prerrogativa que não podemos deixar de honrar, pois serve para levar os homens ao conhecimento de Deus e reconciliar os mais mortais inimigos. O que então é mais horrível que manchar as próprias mãos no sangue daqueles que vêm fazer propostas muito razoáveis e que feliz êxito podem esperar os que cometeram tão detestável ação? Dir-se-á, talvez, que é verdade que a razão está conosco, mas que eles são mais fortes. Respondo que isso não tem valor, pois Deus está sempre do lado da justiça e em toda parte onde Ele está o seu poder infinito aí também se faz presente. E, considerando apenas as nossas próprias forças, não os vencemos no primeiro combate e não os desbaratamos no segundo, sem que eles ao menos tivessem ousado resistir aos primeiros ataques? E não teríamos sido plenamente vitoriosos se Ateniom, por uma pérfida manobra, à qual não se pode dar o nome de valor, não nos tivesse atacado, sem antes nos declarar guerra? Por que então agora, que temos mais motivo de bem esperar, demostraríamos menor coragem que no passado? Por que temeríamos àqueles aos quais sempre vencemos quando não usam de fraude e a quem somente a traição faz obter a vitória? Se eles fossem mesmo tão temíveis como querem fazer crer, não deveria isso fortalecer a nossa coragem, em vez de enfraquecê-la? Pois o verdadeiro valor não consiste em sobrepujar os fracos e os tímidos, e sim em vencer os mais bravos e os mais valentes. Se eles julgam que os nossos problemas domésticos e esse último tremor de terra nos deixaram atônitos, devem considerar que foi isso mesmo o que enganou os árabes, pois eles julgaram o mal maior do que ele era na realidade, e nada nos seria mais vergonhoso que sentir medo daquilo que lhes dá coragem. Pois na verdade o valor que eles demonstram não procede da confiança nas próprias forças, mas por nos considerarem abatidos e esmagados por tantos males. Assim, quando nos virem marchar corajosamente contra eles, o seu ardor esvair-se-á, o seu medo aumentará a nossa coragem e teremos apenas de combater homens semivencidos. Os nossos males não foram tão grandes como eles e outros apregoam, pois o terremoto não foi causado pela cólera de Deus contra nós, mas por um daqueles acidentes com causas naturais. E, mesmo que tivesse acontecido pela vontade de Deus, não poderíamos duvidar de que a sua cólera já está satisfeita com esse castigo, pois de outro modo Ele não o teria feito cessar nem manifestaria, como fez, com sinais evidentes, que aprova a justa guerra que empreendemos. Esse terremoto foi geral para todo o resto do reino, e somente vós, que estáveis em armas, dele fostes preservados. Assim, se todo o povo estivesse como vós, na guerra, ninguém teria sofrido mal algum. Depois de termos ativamente considerado todas essas coisas, principalmente sabendo que Deus em tempo algum deixou de ser o nosso protetor, marchai com firme confiança na justiça de vossa causa contra essa pérfida nação, que violou os tratados mais sagrados, que sempre fugiu diante de nós e que só demonstrou coragem para assassinar os nossos embaixadores". 646. As palavras de Herodes animaram de tal modo as tropas que nada mais queriam senão partir para a luta. Ele ordenou sacrifícios segundo o costume e, sem perda de tempo, fez com que todos os soldados atravessassem o Jordão para marchar contra os árabes e acampou perto deles. Havia entre os exércitos um castelo do qual ele poderia tirar vantagem, tanto se fosse travada a batalha quanto se fosse necessário passar além para escolher um acampamento mais seguro. Ele resolveu tomá-lo. Os árabes tinham o mesmo objetivo, e a batalha teve início, depois de algumas pequenas escaramuças. Vários foram mortos, e os árabes fugiram. Os judeus perseguiram-nos, com intenção de atacá-los até mesmo no acampamento, e eles então foram obrigados a parar para se defender, embora estivessem em completa desordem e sem esperança de vitória. Depois desse grande combate, onde muitos perderam a vida, os árabes fugiram definitivamente, e cinco mil foram mortos pelos judeus e por eles mesmos, tanto se esforçavam e se comprimiam para salvar-se. O resto retirou-se para o acampamento, embora já tivessem falta de víveres e de água e se vissem cercados pelos judeus. Tal contingência obrigou-os a propor a Herodes fazer tudo o que ele desejava, contanto que os deixasse partir e lhes permitisse matar a sede. Mas ele não quis escutar os embaixadores nem receber o dinheiro que ofereciam como resgate e nem aceitar qualquer outra condição, tal o seu desejo de vingar-se daqueles que tinham violado o direito das gentes. Então, não podendo mais suportar tão ardente sede, quatro mil árabes se apresentaram no quinto dia do cerco para ser acorrentados como escravos. No dia seguinte, o resto resolveu sair para morrer de armas na mão, preferindo isso a expor-se a tão grande infâmia. Fizeram o que intentavam, mas estavam tão fracos e com o espírito tão abatido que nenhum esforço puderam fazer. Desejavam apenas morrer, temendo unicamente ficar vivos. Cerca de sete mil morreram desde o primeiro choque. Tão grande perda abateu completamente o orgulho daquela nação, que se admirou, em sua desgraça, do valor e do proceder de Herodes e tomou-o como protetor. CAPÍTULO 9 ANTÔNIO É DERROTADO POR AUGUSTO NA BATALHA DE ÁCCIO. HERODES MATA HIRCANO E QUAL O PRETEXTO PARA ISSO. DECIDE PROCURAR AUGUSTO. ORDENS QUE DÁ ANTES DE PARTIR. 647. Depois de tão vantajoso resultado, Herodes voltou a Jerusalém cheio de honras e de glória. Mas, quando parecia viver na mais franca prosperidade, a vitória de Augusto sobre Antônio, em Áccio, o colocou em tão grande perigo que ele se julgou perdido. Todos os seus amigos e inimigos eram do mesmo parecer, pois ninguém se podia persuadir de que aquela grande amizade entre ele e Antônio não lhe viesse causar a própria ruína. Assim, os que deveras o amavam não podiam dissimular a dor que sentiam. Os que o odiavam fingiam lamentá-lo, embora no coração sentissem grande alegria, pois assim podiam esperar alguma mudança nos acontecimentos. Como Hircano era o único de família real, Herodes julgou necessário mandar matá-lo, a fim de que, se conseguisse escapar de tão grande perigo, ninguém pudesse pretender a coroa, com prejuízo seu. Ou, se Augusto mandasse matá-lo, ele teria pelo menos a consolação de saber que Hircano não teria o prazer de sucedê-lo. Alimentava ele esses pensamentos, quando a família onde ele se havia hospedado ofereceu-lhe uma oportunidade para executar o seu desígnio. Hircano era por natureza excessivamente manso e jamais se ocupara completamente dos negócios. Tudo ele entregava à sorte e recebia de sua mão o que ela mandava, sem demonstrar descontentamento. Sua filha Alexandra, que, ao invés, era ambiciosa, não se podia contentar com a esperança de uma modificação. Ela solicitava-lhe sem cessar que não permitisse por mais tempo a Herodes perseguir assim a sua família e pensasse em sua segurança, conservando-se para uma sorte melhor. Aconselhou-o a escrever a Malque, que então governava a Arábia, e pedir-lhe proteção e refúgio junto dele, não havendo dúvida de que, se a sorte de Herodes fosse tão má como o ódio de Augusto contra ele dava motivos para crer, a nobreza de sua família e o afeto que todo o povo lhe consagrava poderiam fazê-lo voltar ao trono. Hircano de início rejeitou a proposta, mas Alexandra não deixava de apresentar as probabilidades que ele tinha: de um lado, esperar chegar à coroa; de outro, temer a traição e ^crueldade de Herodes. Ele deixou-se convencer, por fim, à insistente importunação. Escreveu a Malque por meio de um amigo, de nome Dositeu, rogando que lhe mandasse alguns cavaleiros que pudessem levá-lo até o lago Asfaltite, distante trezentos estádios de Jerusalém. Hircano e Alexandra escolheram Dositeu por julgarem-no um homem inteiramente dedicado a eles e inimigo de Herodes, pois era parente de José, a quem o rei mandara matar e também porque Antônio matara em Tiro dois de seus irmãos. Ele, porém, foi-lhes infiel. Na esperança de obter vantagens, entregou a carta nas mãos de Herodes. O soberano demonstrou muita satisfação e reconhecimento e pediu a ele outro favor: levar a carta ao destinatário, Malque, e trazer-lhe a resposta, pois importava conhecer os sentimentos deste. Dositeu cumpriu fielmente todas essas incumbências, e o árabe, por meio dele, mandou a Hircano a resposta, dizendo que o receberia, bem como a todos os judeus de seu partido, que mandaria uma escolta para conduzi-lo em segurança e que o ajudaria em tudo. Herodes, de posse dessa carta, mandou chamar Hircano ao seu conselho e perguntou-lhe que tratado ele fizera com Malque. Respondeu este que nenhum tratado havia feito. O rei então apresentou-lhe a carta e ordenou imediatamente que o matassem. Foi assim que o próprio Herodes narrou esse fato nos seus comentários. Outros dizem que não foi por esse motivo que ele mandou matar Hircano, mas porque este havia atentado contra a sua vida, e contam o caso deste modo: Herodes perguntou a Hircano, num banquete, sem manifestar a sua desconfiança, se ele havia recebido alguma carta de Malque. Ele respondeu que sim, mas somente de saudação. Herodes acrescentou: "Não recebestes presentes, também?" Hircano respondeu: "Sim, mas somente quatro cavalos para o meu carro". Herodes então, acusou-o de traição e de se ter deixado subornar e ordenou que o matassem. Esses mesmos escritores, para mostrar que Hircano era inocente, dizem que, tendo desde a sua mocidade — e mesmo depois de ser feito rei — demonstrado excessiva mansidão, grande prudência e moderação e tendo agido quase sempre a conselho de Antípatro, pai de Herodes, não havia nenhuma razão, visto que o rei Herodes estava bem firme no trono, para ele ter saído, na idade de oitenta anos, de além do Eufrates, onde era muito honrado, para viver sob a sua dominação e se entregar a um empreendimento tão alheio à sua natureza. Porém, há muito mais motivo para se crer que esse pretenso crime lhe tenha sido atribuído pelo próprio Herodes. Assim morreu Hircano, cuja vida foi agitada por muitas e graves perturbações. Ele foi constituído sumo sacerdote sob o reinado de Alexandra, sua mãe, e exerceu esse cargo durante nove anos. Sucedeu no reino a essa princesa e foi deposto três meses depois por Aristóbulo, seu irmão. Pompeu restaurou-o, e ele governou durante quarenta anos. Foi depois exilado por Antígono, castigado e levado como escravo pelos partos. O rei colocou-o em liberdade, e ele voltou à Judéia. E não somente não viu a realização das promessas que Herodes havia feito, como, após passar uma vida cheia de incertezas e amarguras, terminou os seus dias em adiantada velhice com uma morte deplorável, que não havia absolutamente merecido. Como era muito manso, moderado e amante da tranqüilidade e sabia não ter as condições necessárias para governar, servia-se em quase tudo do ministério de outrem. Essa excessiva bondade deu a Antípatro e a Herodes ocasião para se elevarem ao auge da autoridade e levarem a coroa à família deles. A morte foi a recompensa que esse infeliz príncipe recebeu da ingratidão de Herodes. 648. Depois que Herodes se desfez de Hircano, foi procurar Augusto, de quem nada esperava de favorável, por causa da inimizade que havia entre este e Antônio. Temia ao mesmo tempo que Alexandra aproveitasse a sua ausência para amotinar o povo contra ele e perturbar a nação. Ele deixou o governo a Feroras, seu irmão. Colocou Cipro, sua mãe, sua irmã e todos os seus parentes na fortaleza de Massada e ordenou a Feroras que, se na sua viagem algo de mal lhe viesse a suceder, tomasse o governo do reino. Quanto a Mariana, que não se acertava com Cipro nem com Salomé, ele a colocou com Alexandra, sua mãe, no castelo de Alexandriom, cuja guarda confiou a José, seu tesoureiro, e a Soeme Itureu, em quem desde o começo de seu reinado depositara sempre a sua inteira confiança. Tomou como pretexto querer prestar às princesas essa honra, mas deu a esses dois homens ordens secretas, caso a viagem lhe corresse mal: deveriam matá-las logo que tivessem notícias de sua morte e depois ajudar Feroras com todas as suas forças a conservar o reino aos seus filhos. CAPÍTULO 10 HERODES FALA COM TODA GENEROSIDADE A AUGUSTO E CONQUISTA A SUA AMIZADE. ACOMPANHA-O AO EGITO E O RECEBE EM PTOLEMAIDA COM TÃO EXTRAORDINÁRIA MAGNIFICÊNCIA QUE GRANJEIA A ESTIMA DE TODOS OS ROMANOS. 649. Depois que Herodes providenciou tudo, embarcou para Rodes, onde foi procurar Augusto. Compareceu à sua presença com todos os ornamentos da dignidade real, exceto a coroa, e jamais demonstrou maior coragem na maneira de falar. Pois, em vez de usar de rogos e amáveis desculpas, para induzir o rei a perdoá-lo, como se faz ordinariamente em tão grande golpe da fortuna, prestou-lhe contas de seu proceder sem demonstrar o mínimo temor. Confessou que nada podia acrescentar ao afeto que nutrira por Antônio; que contribuíra com todas as suas posses para conservar o império do mundo em seu poder; que se não estivesse ocupado com os árabes, teria unido as suas armas às dele; que esse motivo o impedira, mas ainda assim lhe enviara trigo e dinheiro; que desejaria ter feito muito mais, empregando não somente os seus bens, mas a sua vida por um amigo e benfeitor, como sempre fora Antônio para ele; que, pelo menos, não poderiam acusá-lo de ter abandonado Antônio na batalha de Accio, nem de que a mudança de sorte o tivesse feito mudar de idéia, para abraçar outros interesses e abrir caminho a novas esperanças. Ele acrescentou: "Quando me vi sem condições de ajudá-lo com as minhas tropas e com a minha pessoa, dei-lhe um conselho que teria impedido a sua ruína se ele o tivesse seguido: matar Cleópatra, apoderar-se do seu reino e poder assim fazer convosco uma paz muito vantajosa. Ele desprezou esse conselho e contribuiu assim para o aumento de vossa fortuna, em vez de conservar a dele. O vosso ódio por ele vos faz condenar o meu afeto. Eu, porém, não deixarei de confessá-lo e nada me impedirá de proclamar em alta voz quão grande era a minha paixão por seus interesses e por sua pessoa. Mas se quiserdes, sem considerar o que se passou entre mim e ele, experimentar que amigo eu sou e o meu reconhecimento para com os meus benfeitores, podeis fazer a prova: bastará mudarmos os nomes, e haverá sempre a mesma amizade, digna dos mesmos louvores". Herodes, ao pronunciar essas palavras, manifestara tanta coragem que Augusto, extremamente generoso, ficou muito impressionado, pois aquele rei dos judeus não somente evitou o perigo que o ameaçava como também conquistou o seu afeto com aquela maneira tão nobre de se justificar e defender. Permitiu-lhe então que retomasse a coroa e exortou-o a ser tão amigo seu quanto o fora de Antônio. Tratou-o honrosamente, manifestando também a sua gratidão por ter ele ajudado Lépido parente vários príncipes. Para dar-lhe uma prova de sua amizade, confirmou-o na posse do reino por um decreto do senado. Herodes, cumulado de tantos favores, que sobrepujavam em muito as suas esperanças, acompanhou Augusto ao Egito e deu a ele e aos seus adjuntos magníficos presentes, que iam mesmo além de suas posses. Pediu a Augusto com muita insistência graça para Alexandre, que havia sido amigo de Antônio, mas não pôde obtê-la, pois Augusto jurara não concedê-la. 650. A volta de Herodes à Judéia com um novo acréscimo de honra e de autoridade causou grande admiração a todos os que esperavam o contrário. E eles só podiam considerar tal fato uma prova da proteção de Deus sobre ele, que escapava com rara felicidade de todos os perigos que o ameaçavam e ainda tornava a sua vida mais brilhante e mais ilustre. 651. Quando Augusto passou da Síria ao Egito, Herodes não se contentou em recebê-lo com incrível magnificência em Ptolemaida, mas forneceu a todo o exército víveres em abundância. Essa generosa maneira de agir conquistou-lhe tanta familiaridade perante o imperador que este, quando marchava a cavalo pelo campo, o fazia ficar ao seu lado. Herodes escolheu cento e cinqüenta dentre aqueles em quem mais confiava para servir Augusto e os seus amigos com toda a suntuosidade e gentileza. Se o exército era obrigado a passar por lugares estéreis, onde não havia água, a sua previdência nada lhes deixava faltar, mas fazia com que tivessem até mesmo vinho. Deu ainda a Augusto oitocentos talentos, e os romanos ficaram muito satisfeitos com ele, a ponto de afirmar que a grandeza de sua alma o elevava muito acima de sua coroa. O fato de ele haver assim tratado, nessa ocasião, os homens mais ilustres do império, quando estes voltavam do Egito, incutiram tão grande estima no espírito de Augusto e dos romanos que eles não se cansavam de louvá-lo e de dizer que nenhum outro príncipe o superava em magnificência e em liberalidade. CAPÍTULO 11 MARIANA RECEBE HERODES COM FRIEZA, A QUAL, UNIDA ÀS CALÚNIAS DA MÃE E DA IRMÃ DO PRÍNCIPE, A TERIA LEVADO À MORTE, MAS HERODES É OBRIGADO A VOLTAR PARA JUNTO DE AUGUSTO. HERODES MATA MARIANA QUANDO REGRESSA. COVARDIA DE ALEXANDRA, MÃE DE MARIANA. DESESPERO DE HERODES APÓS A MORTE DE MARIANA. ELE ADOECE GRAVEMENTE. ALEXANDRA PROCURA APODERAR-SE DAS DUAS FORTALEZAS DE JERUSALÉM. ELE A MATA, BEM COMO A COSTOBARO E ALGUNS OUTROS. EM HONRA DE AUGUSTO, ESTABELECE JOGOS E ESPETÁCULOS, IRRITANDO A MAIOR PARTE DOS JUDEUS, E DEZ DELES TENTAM MATÁ-LO. CONSTRÓI DIVERSAS FORTALEZAS E RECONSTRÓI SOBRE AS RUÍNAS DE SAMARIA UMA BELA E FORTÍSSIMA CIDADE, A QUE CHAMA SEBASTE. 652. Herodes, na volta ao seu reino, em vez de desfrutar a doçura da paz ou um descanso tranqüilo, encontrou apenas perturbação em sua própria família, pelo descontentamento de Mariana e de Alexandra. Elas julgavam, com razão, que não era para cuidar de sua segurança que ele as encerrara naquele castelo, e sim para mantê-las prisioneiras, pois não tinham liberdade para dispor do que quer que fosse. Mariana, além disso, estava convencida de que o grande amor que ele lhe demonstrava era simulação, que ele apenas a julgava útil aos seus interesses. Como sempre se recordava da ordem que ele dera a José, pensava nisso com horror, pois, mesmo que ele viesse a morrer, ela não esperava continuar vivendo depois da morte dele. Assim, não havia meios que ela não empregasse para conquistar os guardas, particularmente Soeme, de quem ela sabia que dependia a sua morte ou a sua vida. No começo, ele era muito fiel a Herodes, mas pouco a pouco os presentes e a cordialidade das princesas o conquistaram. Ele não imaginava que Herodes, mesmo evitando o perigo que o ameaçava, viesse a conquistar tão grande autoridade. Julgava também que podia esperar mais das princesas do que dele e que a gratidão que elas lhe demonstravam por tão grande serviço o manteria não somente na estima em que se achava, mas aumentaria ainda o seu prestígio. E, ainda que sucedesse a Herodes tudo o que este poderia desejar, a sua incrível paixão por Mariana o tornaria onipotente. Tantas considerações, juntas, levaram-no a revelar às princesas o segredo que lhe fora confiado. Mariana ficou fora de si de despeito e de cólera ao ver que os males que ela devia temer não tinham limites, e fazia continuamente votos de que tudo fosse contrário a Herodes. Nada agora lhe parecia mais insuportável que passar a vida com ele, e esses sentimentos fizeram tal impressão em seu espírito que ela já não os podia dissimular. 653. Os resultados da viagem sobrepujaram as esperanças de Herodes, e a primeira coisa que ele fez ao chegar foi procurar Mariana, para abraçá-la e dizer-lhe que ela era a pessoa a quem mais ele amava no mundo e que a amava ainda mais e para contar de que modo tudo lhe havia sucedido maravilhosamente. Enquanto ele falava, ela ficou sem saber se devia alegrar-se ou afligir-se, mas a sua extrema sinceridade não lhe permitia ocultar a agitação de seu espírito, e os seus suspiros faziam ver que aquelas palavras lhe davam mais tristeza que alegria. Herodes então não pôde mais duvidar do que ela trazia na alma: uma aversão tão patente que ele a percebeu em seguida. E o seu excessivo amor por ela tornava aquele desprezo insuportável. Ao mesmo tempo, contudo, a sua cólera era de tal modo combatida pelo afeto que ele passava do ódio ao amor e do amor ao ódio. Assim, hesitando entre as duas paixões, não sabia que partido tomar, pois, ao mesmo tempo em que desejava matá-la, para vingar-se daquela ingratidão, sentia em seu coração que a morte dela o tornaria o mais infeliz de todos os homens. 654. Quando a mãe e a irmã de Herodes, que odiavam mortalmente Mariana, viram-no sob aquela agitação, julgaram ter encontrado uma ocasião mais que favorável para destruí-la. Não houve calúnias de que não se servissem para aumentar a irritação do príncipe e inflamar cada vez mais os seus ciúmes. Eles as escutava e demonstrava não reprovar que elas falassem contra Mariana, mas não se resolvia a matar uma pessoa a quem ele amava mais que a própria vida. No entanto irritava-se contra ela cada dia mais, e ela, por sua vez, não dissimulava os seus sentimentos. Por fim, o amor dele transformou-se em ódio, e ele teria então executado a sua cruel resolução, não fosse a notícia de que Augusto se tornara senhor do Egito pela morte de Antônio e de Cleopatra. Essa notícia obrigou-o a deixar tudo para ir procurá-lo. Recomendou Mariana a Soeme com grandes demonstrações de satisfação, pelo cuidado que tivera dela, e deu a ele um governo na Judéia. Como já havia adquirido muita familia-ridade com Augusto e tinha parte na sua amizade, Herodes recebeu dele não somente honras, mas grandes benefícios. Augusto deu-lhe quatrocentos gauleses que serviam de guardas a Cleopatra e entregou-lhe aquela parte da judéia que Antônio entregara a ela, bem como as cidades de Gadara, Hipona e Samaria e, à beira-mar, Gaza, Antedom, Jope e a torre de Estratão, o que aumentou em muito o seu reino. 655. Herodes acompanhou Augusto até Antioquia e, quando voltou a Jerusalém, sentiu que o seu casamento, que antes considerava a sua maior felicidade, o tornava agora tão infeliz em seu próprio reino quanto era bem-sucedido fora de sua pátria. Ele amava tão ardentemente Mariana que não se lê em história alguma que outro homem tenha sido mais arrebatado que ele por um amor ilegítimo a sua própria mulher. A princesa, não obstante ser extremamente sensata e muito casta, era de mau gênio e abusava de tal modo da paixão que ele sentia por ela que o tratava às vezes com desprezo, chegando mesmo a ofensas, sem teimem consideração o respeito que lhe era devido. Ele dissimulava, no entanto, e sofria mesmo as censuras que ela fazia a sua mãe e a sua irmã pela baixeza do nascimento delas, causa do ódio irreconciliável que as levou a usar de tantas acusações falsas para arruiná-la. E assim, os ânimos acirravam-se cada vez mais, e um ano passou-se desse modo depois que Herodes retornou da visita a Augusto. Mas, por fim, o desígnio que ele vinha alimentando desde muito tempo em seu espírito chegou ao seu termo, pelo motivo que passo a expor. Um dia, Herodes retirou-se para o seu quarto, a fim de descansar, pelo meio-dia, e mandou chamar Mariana, a quem ele não conseguia deixar de amar com paixão. Ela veio. No entanto, por mais instâncias que ele lhe fizesse, ela não quis aproximar-se dele e censurou-o ainda pela morte de seu pai e de seu irmão. Essas palavras ofensivas, bem como o desprezo dela, irritaram Herodes de tal modo que ele foi tentado a feri-la. Salomé, ao saber do que se passara, fez entrar no quarto um criado do príncipe. O homem, que ela havia subornado, instruído por ela disse que a rainha lhe oferecera uma grande recompensa para levar ao rei certa bebida. Herodes, perturbado por essas palavras, perguntou-lhe que bebida era. O criado respondeu-lhe que a rainha não lhe dera o que colocar dentro da taça, queria somente que a apresentasse. E, como ignorava a força daquela poção, julgara seu dever advertir sua majestade. Tal resposta aumentou ainda mais a perturbação de Herodes. Então ele mandou torturar um eunuco de Mariana, que ele sabia ser-lhe muito fiel, pois não duvidava de que ela lhe confiasse tudo. O homem nada confessou, mas deixou escapar dos lábios, no meio dos tormentos, que o ódio de Mariana provinha do que ela soubera por meio de Soeme. Diante dessas palavras, Herodes disse que Soeme, antes tão fiel, jamais lhe teria revelado o segredo se não tivesse abusado de Mariana e ao mesmo tempo mandou matar Soeme. Quanto à rainha, quis submetê-la a julgamento. Reuniu para isso os conselheiros nos quais ele mais confiava e ordenou a Mariana que se defendesse. Acusou-a do falso crime de tentar dar-lhe uma bebida para envenená-lo. E, em vez de se manter nos limites da moderação, como convém a um juiz, falou com tanta veemência e fúria que os outros juizes não tiveram dificuldade em lhe conhecer a intenção, e eles condenaram à morte a inocente princesa. No entanto julgaram — e ele também foi da mesma opinião — que não se devia apressar a execução, que era preferível aprisioná-la no palácio. Porém, Salomé e os de seu partido, não podendo tolerar qualquer demora, procuraram por todos os meios mudar essa deliberação, e uma das mais fortes razões de que-se serviram para persuadir Herodes foi o temor que ele devia ter de que o povo se sublevasse, caso viessem a saber que a rainha ainda estava viva. Assim, levaram-na imediatamente ao suplício. Alexandra, julgando que não seria tratada com mais benignidade que a filha, esqueceu, por vergonhosa mudança, a coragem de que até então sempre dera provas e mostrou-se tão fraca e covarde quanto antes fora altiva. Assim, para insinuar que não tivera parte no crime da filha, tratou-a ultrajosamente na presença de todos. Dizia que ela era má, ingrata e indigna do extremo amor que o rei lhe dedicara e sofria o que merecia tão grande crime. Falando assim, parecia querer ela mesma lançar-se sobre a filha e arrancar-lhe os cabelos. Não houve quem não condenasse essa covarde dissimulação. Mariana, mais que todos, com o seu silêncio, tampouco se comoveu com tais injúrias e nem se dignou responder-lhe, mas contentou-se em mostrar no rosto, com a coragem de costume, a vergonha que sentia por tal baixeza. E, sem demonstrar o menor medo, nem ao menos mudando de cor, manifestou até a morte a mesma coragem que havia demonstrado durante toda a sua vida. 656. Assim terminou a sua existência essa princesa tão casta e corajosa, porém muito altiva e de natureza muito áspera. Sobrepujava infinitamente em beleza, em majestade e em graça todas as outras mulheres de sua época, e tantas e tão raras qualidades foram a causa de sua infelicidade, pois, vendo o rei seu marido tão apaixonado por ela, julgou que nada tinha a temer, perdeu o respeito que lhe devia e não teve receio de confessar o ressentimento que conservava por ter ele mandado matar o seu pai e o seu irmão. Semelhante imprudência tornou também a mãe e a irmã do soberano adversárias suas e por fim obrigou ele mesmo a tornar-se também seu inimigo. 657. Por mais violenta que fosse a paixão de Herodes por Mariana durante a vida, e o que referimos nô-lo mostra suficientemente, ela aumentou após a sua morte. Ele não a amava como os outros maridos amam a suas esposas, mas chegava quase à loucura. E, por mais estranha a maneira como ambos viveram, ele não conseguia deixar de amá-la. Depois que ela já não era deste mundo, parecia-lhe que Deus exigia dele o sangue da mulher. Ele ouvia a todo instante pronunciarem o nome dela. Lamentava-se de maneira indigna da sua condição de rei e buscava em vão nos banquetes e nos outros divertimentos algum alívio para o seu sofrer. Chegou o seu penar a tal excesso que ele abandonou o cuidado do reino. E ordenava que fossem chamar Mariana como se ela ainda estivesse viva. Vivia ele nesse estado jjuando sobreveio uma horrível peste, que ceifou não somente grande parte do povo, mas várias pessoas da nobreza. Todos consideraram esse terrível mal uma justa vingança de Deus pelo crime cometido na injusta condenação de Mariana. Esse acréscimo de sofrimento acabou por abater completamente Herodes, que se abandonou ao desespero e foi esconder-se no deserto, sob o pretexto de ir à caça. Depois caiu doente, com uma inflamação e uma dor de cabeça tão violenta que lhe perturbou o juízo. Os remédios só serviam para aumentá-la, e os médicos, vendo a obstinação do mal, bem como a do doente, que queria governar-se por si mesmo, sem lhes permitir um tratamento segundo as regras da medicina, foram obrigados a abandoná-lo à sorte de sua enfermidade e quase perderam a esperança de lhe salvar a vida. Ele então estava em Samaria, que agora se chama Sebaste. 658. Quando Alexandra, que estava em Jerusalém, soube que ele corria tão grande perigo, fez todos os esforços possíveis para se apoderar das duas fortalezas, uma das quais estava na cidade, e outra, perto do Templo. Porque, se conseguisse tomá-las, seria também, de certo modo, dona de todo o país, visto que não se poderia, sem o seu consentimento, oferecer sacrifícios a Deus, e os judeus são tão apegados à sua religião que preferem os deveres aos quais ela obriga à própria vida. Assim, Alexandra insistiu com os comandantes dessas fortalezas que as entregassem a ela e aos filhos de Herodes e Mariana. Disse-lhes que, se ele viesse a faltar, não era justo que elas caíssem em poder de outra família e, se ele sarasse, ninguém melhor para possuí-las que os seus próprios parentes. Mas essas razões não os convenceram, tanto porque havia muito tempo eram fiéis e bastante afeiçoados ao rei, não tendo perdido a esperança de sua saúde, quanto pelo ódio que sentiam por Alexandra. Um deles, de nome Aquiabe, que era sobrinho de Herodes, mandou com urgência avisar o rei das intenções de Alexandra, e este ordenou imediatamente que a matassem. 659. Por fim, o soberano, com grande dificuldade, restabeleceu-se de sua doença. Mas as forças refeitas do corpo e do espírito tornaram-no tão colérico e tão violento que não havia crueldade a que não fosse levado, pelo menor motivo. Não poupou nem mesmo os seus mais íntimos amigos: mandou matar Costobaro, Lisímaco, Gadias, cognominado Antípatro, e Doziteu, pelo motivo que vou dizer agora. Costobaro era oriundo de uma das mais importantes famílias da Iduméia, e os seus antepassados haviam sido sacerdotes de Cosas, que era o deus que esses povos adoravam com grande veneração, antes de Hircano obrigá-los receber a religião dos judeus. Herodes, logo que foi feito rei, deu a Costobaro o governo da Iduméia e de Gaza e o fez desposar Salomé, sua irmã, depois de haver matado José, seu primeiro marido, como dissemos. Quando se viu elevado a tamanha grandeza, a qual jamais ousaria pretender, Costobaro tornou-se tão altivo que não quis mais tolerar a submissão a Herodes, e julgava que era vergonhoso aos idumeus reconhecê-lo por rei, por terem as mesmas leis que os judeus. Assim, mandou dizer a Cleópatra que, tendo sido a Iduméia sempre sujeita aos seus predecessores, ela podia com justiça pedir a Antônio que desse a ele essa terra, e por isso estaria pronto a obedecer-lhe. Não que ele preferisse estar sob a dominação de Cleópatra, mas queria diminuir o poder de Herodes, para mais facilmente tornar-se senhor da Iduméia. Ele se comprazia na esperança de obtê-lo, tanto pelo esplendor de sua família quanto pelas suas grandes riquezas. Depois de fazer esses projetos, não houve meios baixos ou ignominiosos de que ele não se servisse para ajuntar dinheiro. Cleópatra fez todos os esforços possíveis junto de Antônio, mas inutilmente. Herodes teria logo mandado matar Costobaro, se os rogos de sua mãe e de sua irmã não o tivessem impedido. Contentou-se em não ter mais nenhuma confiança nele. Costobaro teve depois uma séria divergência com Salomé, sua mulher, e ela mandou-lhe o libelo do divórcio, contra o costume de nossas leis, que permitem esse ato somente aos maridos e não consentem nem mesmo às mulheres repudiadas tornar a casar-se sem a licença deles. Ela, porém, fez com a sua própria autoridade o que não tinha direito de fazer e foi em seguida procurar o rei seu irmão. Disse-lhe que o afeto por ele a obrigara a abandonar o marido, pois descobrira que conspirava contra ele, juntamente com Antipatro, Lisímaco e Doziteu. E, como prova do que dizia, acrescentou que ele retinha havia doze anos os filhos de Babas, a quem havia salvo a vida, o que era verdade. Essas palavras deixaram Herodes muito surpreendido porque outrora deliberara matá-los, como eternos inimigos, mas o tempo o fizera esquecer tudo. A causa desse ódio contra eles vinha desde quando ele sitiava Jerusalém, sob o reinado de Antígono. A maior parte do povo queria abrir-lhe as portas, cansados dos males que aqueles cercos os faziam sofrer. Os filhos de Babas, porém, que tinham muita autoridade e eram muito fiéis a Antígono, opuseram-se a isso, persuadidos de que era muito mais vantajoso para a nação ser governada por príncipes da família real que por Herodes. Depois que ele tomou a cidade, deu ordem a Costobaro para vigiar as saídas, a fim de impedir a fuga dos que lhe eram contrários. Mas Costobaro, conhecendo o prestígio dos filhos de Babas entre o povo, julgou muito útil conservá-los, para deles se servir, caso houvesse no futuro alguma mudança. Assim, deixou-os escapar, mandando-os para as suas terras. Herodes desconfiara disso, mas Costobaro declarou com tanta firmeza e com juramento não saber que fim haviam eles levado que a suspeita se dissipou de seu espírito. Depois, fez tudo para encontrá-los. Mandou publicar a som de trombetas que daria grande recompensa a quem lhe indicasse onde eles estavam, mas Costobaro nada confessou porque, tendo uma vez negado sabê-lo, foi obrigado a mantê-los escondidos, não tanto pelo afeto que lhes dedicava, mas por seu próprio interesse. Logo que Herodes veio a sabê-lo, por meio de sua irmã, mandou buscá-los onde estavam escondidos e mandou matar todos eles, bem como aos que ele julgava culpados do mesmo crime, a fim de que, não ficando nem um sequer da descendência de Hircano, ninguém mais ousasse resistir à sua vontade, por mais injusta que fosse. 660. Assim, Herodes, com poder absoluto e plena liberdade para fazer o que queria, não teve receio de se afastar cada vez mais das tradições de nossos antepassados. Aboliu os nossos antigos costumes, que lhe deveriam ser invioláveis, para introduzir outros, trazendo assim uma estranha mudança na disciplina que mantinha o povo no cumprimento do dever. Começou por instituir jogos, lutas e corridas, que se faziam cada cinco anos em honra de Augusto, e mandou construir para esse fim um circo em Jerusalém e um grande anfiteatro fora da cidade. Esses dois edifícios eram soberbos, mas contrários aos nossos costumes, que não nos permitem assistir a semelhantes espetáculos. Como ele queria tornar célebres esses jogos, mandou publicá-los não somente nas províncias vizinhas, mas também nos lugares mais afastados, com a promessa de grandes recompensas para os vencedores. Vieram então de todas as partes os candidatos à luta e às corridas, músicos tocadores de toda espécie de instrumentos, homens peritos em corridas de carros com uma parelha de cavalos, com duas, três e até quatro. Outros corriam em cavalos muito velozes. Nada se podia acrescentar à magnificência e aos cuidados que Herodes usava para tornar esses espetáculos os mais belos e agradáveis do mundo. O circo era rodeado de inscrições em louvor a Augusto e de troféus das nações que ele tinha vencido. Havia ouro e prata, ricos vestuários e pedras preciosas. Mandou também vir de todas as partes grande quantidade de animais ferozes, como leões e outros animais, cuja força extraordinária ou alguma qualidade rara suscitava admiração e curiosidade. Fazia-os lutar uns contra os outros e, às vezes, com homens condenados à morte. Tais espetáculos não causavam menos prazer que admiração aos estrangeiros. Mas os judeus o consideravam uma deturpação e uma corrupção da disciplina de seus antepassados. Nada lhes parecia mais ímpio que expor homens ao furor das feras por um prazer tão cruel ou abandonar os santos costumes para abraçar os de nações idolatras. Os troféus, que lhes pareciam cobrir figuras de homens, não lhes eram menos insuportáveis, porque violavam inteiramente as nossas leis. Herodes, vendo-os com esses sentimentos, julgou não dever usar de violência. Falou-lhes com muita afabilidade, procurando fazê-los compreender que aquele temor procedia apenas de uma vã superstição. Mas não conseguiu persuadi-los. Convictos de que ele cometia um gravíssimo pecado, declararam que, ainda que tolerassem o resto, não permitiriam jamais em suas cidades imagens ou figuras de homens, porque a sua religião o proibia expressamente. Herodes facilmente concluiu, por essas palavras, que o único meio de acalmá-los era livrá-los daquele engano. Levou alguns deles ao circo, mostrou-lhes vários troféus e perguntou-lhes o que pensavam que eram. Eles responderam que eram figuras de homens. Então ele mandou tirar todos os ornamentos, restando apenas os cabides sobre os quais estavam pendurados. Todos acharam graça, e o tumulto acalmou-se. Quase todos vieram a tolerar com facilidade o resto, mas alguns não mudaram os seus sentimentos nem a sua opinião. O horror que tinham aos costumes estrangeiros lhes fazia crer que não podiam ser introduzidos sem prejuízo das tradições de nossos antepassados e sem causar a ruína da nação. Assim, não consideraram mais Herodes seu rei, e sim um inimigo. E resolveram antes expor-se a qualquer coisa que tolerar tão grande mal. 661. Dez dentre eles, desprezando a gravidade do perigo, esconderam punhais sob as vestes e, fortalecidos em seu desígnio por um cego, que não podia ter parte na ação mas quisera expor-se ao risco que eles corriam, foram ao teatro, certos de que o rei não faltaria, pois de nada desconfiava, e eles o atacariam todos de uma vez. Se viessem a falhar, pelo menos matariam muitos dos que o acompanhavam e morreriam com a consolação de torná-lo odioso ao povo por ter violado as leis e de ao mesmo tempo mostrar a outros o caminho para a realização de uma justa empresa. Herodes, porém, tinha vários espiões, que tudo observavam, e um deles descobriu a trama. Ele acreditou nela facilmente, porque sabia do ódio que lhe votavam e do que este é capaz. Então retirou-se ao palácio e mandou prender os conjurados, que, não se podendo salvar, se entregaram sem resistência. A coragem deles tornou-lhes a morte gloriosa, pois não demonstraram o menor temor nem negaram o seu intento. Com rosto firme e tranqüilo, mostraram os punhais que haviam preparado para executar o crime e declararam que a piedade e o bem público os levara a empreendê-lo, para conservar as leis de seus antepassados, pois não há homem de bem que não deva preferi-las à própria vida. Depois de terem assim falado, morreram com a mesma firmeza, em meio aos tormentos que Herodes os fez sofrer. O ódio que o povo então concebeu contra o delator foi tão intenso que não se contentaram em matá-lo: picaram-no em pedaços e o deram a comer aos cães, sem que nenhum judeu fosse acusá-los. Herodes, após cuidadosa indagação, descobriu os autores por meio de mulheres — a violência dos tormentos obrigou-as a confessar. 662. Herodes mandou matá-lo*s, com suas famílias, mas vendo que o povo se obstinava cada vez mais em defender os seus costumes e as suas leis e que aquilo os levaria a uma revolta se ele não empregasse os meios mais violentos para reprimi-los, decidiu fazê-lo. Assim, além das duas fortalezas que havia em Jerusalém, uma no palácio real, onde ele morava, e outra de nome Antônia, que estava perto do Templo, ele mandou fortificar Samaria porque, estando longe de Jerusalém apenas um dia, podia impedir as rebeliões tanto na cidade quanto no campo. Fortificou também de tal modo a torre de Estratão, a que chamou de Cesaréia, que ela parecia dominar todo o país. Construiu um castelo no lugar chamado O Campo, onde colocou uma guar-nição de cavalaria, cujos soldados eram indicados por sorte. Construiu outro em Gabara da Galiléia e outro, de nome Estmonita, na Peréia. Essas fortalezas, dispostas nos lugares mais convenientes para os fins a que ele as destinava e nas quais colocou fortes guarnições, tiraram ao povo, tão inclinado à revolta, todos os meios de se sublevar, porque ao menor sinal de agitação aqueles que estavam encarregados de vigiar a impediam logo ou a sufocavam apenas iniciada. Como ele tinha intenção de reconstruir Samaria, cuja posição a fazia vantajosa e forte, porque estava sobre uma colina, mandou lá construir um Templo, colocou um grande corpo de tropas estrangeiras e das províncias vizinhas e mudou-lhe o nome para Sebaste. Dividiu entre os habitantes as terras da vizinhança, as quais eram muito férteis, a fim de logo deixá-los bem à vontade para que o lugar se povoasse rapidamente. Rodeou-a de fortes muralhas, e assim aumentou e lhe fortificou o perímetro, que era de vinte estádios, tornando-a comparável às maiores cidades. Fez no meio dela uma espaçosa praça, que media um estádio e meio, e construiu um Templo soberbo. Trabalhou continuamente e de todos os modos para tornar célebre a cidade, porque ele considerava a força necessária à segurança e à beleza, um monumento à sua grandeza e magnificência, que conservaria a memória de seu nome através dos séculos. CAPÍTULO 12 AJUDÉIA É AMARGURADA POR ENORMES MALES, PARTICULARMENTE POR UMA VIOLENTA PESTE E UMA GRANDE CARESTIA. CUIDADOS E LIBERALIDADES INCRÍVEIS DE HERODES PARA REMEDIAR OS GRAVES INCONVENIENTES. RECONQUISTA DESSE MODO Â AFETO DO POVO E RESTAURA A ABUNDÂNCIA. SOBERBO PALÁCIO QUE ELE CONSTRÓI EM JERUSALÉM. DESPOSA AFILHA DE SIMÃO, QUE ELE CONSTITUI SUMO SACERDOTE. OUTRO SOBERBO CASTELO QUE ELE CONSTRÓI NO LUGAR ONDE OUTRORA VENCERA OS JUDEUS. 663. Naquele mesmo ano, que era o décimo terceiro do reinado de Herodes, a Judéia foi torturada por grandíssimos males, por uma vingança de Deus ou por algum dos funestos acidentes que de tempos em tempos sucedem no mundo. Começou por uma prolongada seca, e a terra não dava mais os frutos que produz naturalmente, sem que se cultive. A necessidade obrigou o povo a sustentar a vida com um alimento que antes lhes era desconhecido, e contraíram assim graves doenças. E ainda, por uma concatenação de males que se sucediam uns aos outros, sobreveio uma violenta peste. Esse terrível flagelo aumentava, porque os que eram por ela atacados não tinham assistência nem alimento. Muitos morriam logo, e o desespero por não terem recursos e não poderem auxiliar os enfermos tirava aos que não haviam sido contaminados a coragem de prestar aos seus semelhantes cuidados que lhes seriam inúteis. Todos os frutos dos anos precedentes haviam sido consumidos. Naquele ano, nada se colhera, e inutilmente se teria semeado a terra, porque estava tão árida e seca que deixava morrer em seu seio as sementes lançadas. Como aquilo continuasse por mais de um ano, o mal crescia sempre, em vez de diminuir. Em tal desolação, a riqueza de Herodes, por maior que fosse, não seria bastante, pois a esterilidade da terra lhe impedia de receber os tributos, e ele havia empregado enormes somas na construção de cidades e fortalezas. Sem esperança de socorro, ele via unir-se a tantos males o ódio de seus súditos contra ele, porque é costume dos povos lançar sobre os governantes a culpa dos males que sofrem. Ele procurava sem cessar o remédio para aliviá-los, mas inutilmente, pois os vizinhos também estavam angustiados pela fome e não lhe podiam vender trigo. Ele tampouco tinha dinheiro suficiente para repartir com uma multidão tão grande e tão necessitada de auxílio. Por fim, convencido de que tinha de fazer algo em tal conjuntura, mandou fundir tudo o que havia de ouro e prata, sem mesmo poupar as obras dos mais célebres artistas. Com isso, reuniu uma grande soma e enviou-a ao Egito, onde Petrônio governava, no lugar de Augusto. O governador era solicitado com insistência por muitos outros, atingidos também por semelhante desgraça, que a ele recorriam. Mas, como era muito amigo de Herodes, concedeu-lhe, em consideração aos seus súditos, uma partida de trigo, dando-lhe preferência a todos os outros. Ele próprio ajudou-os a realizar a compra e o transporte e assim contribuiu mais do que ninguém para a salvação de nossa gente. A gratidão por se ver aliviado e socorrido em sua miséria pelos extremos cuidados do rei não somente fez o povo esquecer o ódio que lhe tinha, mas o levou a tecer os elogios que a sua bondade merecia. Ele distribuiu o trigo primeiro aos que podiam fazer o pão e enviou padeiros àqueles que, pela velhice ou pela doença, não o podiam fazer. Ajudou-os também contra o rigor do inverno, dando-lhes vestes, de que tinham também grande necessidade, pois o gado morrera quase todo, e eles não tinham lã nem outras coisas de que se servir. Depois de atender às necessidades de seus súditos, Herodes levou os seus cuidados às cidades da Síria, vizinhas da Judéia. Deu-lhes trigo para semear e não obteve para si menor vantagem que eles, pois a terra produziu em tal abundância o trigo semeado que a fartura voltou. E, quando veio o tempo da messe, ele enviou cinqüenta mil homens, aos quais salvara a vida, para fazer a ceifa. Assim, ele foi não só benfeitor de seu reino, pela sua vigilância e proceder, mas também de seus vizinhos, que não recorreram a ele inutilmente, mas receberam o que precisavam. Ele calculou haver fornecido aos estrangeiros dez mil coros de trigo, contendo cada coro dez medidas áticas. O que ele distribuiu no seu reino montava a oitenta mil coros. Tantos cuidados e favores realizados em favor do povo numa tão premente necessidade fizeram-no admirado por todo o mundo. Ele ganhou de tal modo o coração de todos que a gratidão pelos favores recentes os fez esquecer o ódio causado pelas modificações qtie ele havia introduzido no reino e na observância dos antigos costumes. Julgaram que aquele mal fora compensado pelos grandes bens que haviam recebido de sua maravilhosa liberalidade, no tempo em que ela lhes foi tão necessária. Não foi menor a glória que ele conquistou também perante os estrangeiros. Assim, tantos males só serviram para tornar o seu nome ainda mais ilustre. Os sofrimentos do povo aumentaram, em seu reino, a sua fama. A gratidão pelos benefícios e a extraordinária bondade que ele demonstrou em tão dura provação, mesmo para com os que não eram seus súditos, fizeram-no ser considerado no exterior não como antes, mas tal como o haviam conhecido naquela extrema necessidade. 664. O generoso soberano, ainda para demonstrar o seu afeto por Augusto, mandou ao mesmo tempo quinhentos dos mais valentes de seus guardas a Hélio Galo, ao qual prestaram grandes serviços na guerra que ele fazia na Arábia, perto do mar Vermelho. E, depois de haver restaurado a prosperidade em seu território, mandou construir no lugar mais elevado da cidade de Jerusalém um grande e soberbo palácio, resplandecente de ouro e de mármore, onde, entre os magníficos aposentos que lá se viam, havia um com o nome de Augusto e outro com o de Agripa. 665. Ele pensou então em casar-se novamente e, como não procurava prazer nesse ato, quis escolher uma pessoa em quem pudesse depositar todo o seu afeto. Assim, recebeu uma jovem apenas por amor, do modo que vou narrar. Simão, filho de Boeto, Alexandrino de família nobre e que era sacerdote, tinha uma filha de tão extraordinária beleza que só se falava disso em Jerusalém. A notícia chegou até Herodes, e ele quis vê-la. Jamais houve amor maior à primeira vista que o que ele sentiu por ela. Mas julgou que não devia usar de seu poder, tomando-a, como teria podido fazer, para não passar por tirano. Pensou que devia desposá-la. E, como Simão não era de posição bastante nobre para tal aliança e nem tampouco de condição desprezível, elevou-o então, para torná-lo mais ilustre: tirou o sumo sacerdócio de Jesus, filho de Fabete, e entregou-a a ele, desposando-lhe depois a filha. 666. Logo após as núpcias, ele construiu, a sessenta estádios de Jerusalém, um magnífico castelo, no lugar onde outrora tinha vencido os judeus, quando Antígono lhe fazia guerra. A localização era muito vantajosa, pois trata-se de um pequeno monte arredondado, muito forte e agradável. Ele embelezou-o e o fortificou ainda mais. O castelo era rodeado de torres às quais se subia por duzentos degraus de pedra. Havia no interior soberbos aposentos, porque Herodes não media despesas para unir a beleza à força. A seus pés, havia diversos e vistosos edifícios, particularmente ricos pela quantidade de lagos e de tanques, cujas águas eram trazidas de longe por aquedutos. Os campos das redondezas estavam tão cheios de casas que poderiam formar uma boa cidade, da qual aquele magnífico castelo construído sobre o monte seria a fortaleza, dominando tudo o mais. 667. Quando deu por terminadas todas essas obras, Herodes não teve mais receios de revoltas em seu território. O temor do castigo, do qual não excetuava ninguém, mantinha os súditos no cumprimento do dever. A liberalidade com que cuidava das necessidades públicas granjeava-lhe o afeto e a solicitude, os quais empregava para se fortificar cada vez mais. E, como a sua conservação particular fosse a mesma do reino, ela o punha em absoluta segurança. Ele tornou-se popular em todas as cidades, mostrando-lhes muita bondade. E, como era de alma elevada, sabia também ganhar-lhes a estima nas adversidades com a magnificência e o coração dos grandes. Assim, ele tornou-se querido a todos, e a sua prosperidade crescia cada vez mais. 668. A paixão de tornar célebre o seu nome e de cultivar a amizade de Augusto e dos romanos mais poderosos, porém, levou-o a se descuidar da observância dos nossos costumes e a violar em muitos pontos as nossas santas leis. Ele construiu em sua própria honra cidades e Templos, mas não na judéia, porque a nossa nação jamais o teria permitido, sendo coisa abominável entre nós reverenciar imagens e estátuas, como fazem os gregos. Ele alegava, como desculpa para essas obras sacrílegas, que não o fazia voluntariamente, mas para homenagear àqueles aos quais não podia desobedecer. Herodes ganhava por esse meio o afeto de Augusto e dos romanos, os quais viam que, para agradá-los, ele não temia contrariar os costumes de seu país. O benefício particular e o ardente desejo de eternizar a sua memória eram, contudo, o principal motivo de ele gastar tão prodigiosas somas na construção e embelezamento dessas cidades. CAPÍTULO 13 HERODES MANDA CONSTRUIR UMA SOBERBA CIDADE EM HONRA DE AUGUSTO, À QUAL DÁ O NOME DE CESARÉIA. ENVIA A AUGUSTO OS SEUS DOIS FILHOS, ALEXANDRE E ARISTÓBULO, QUE TIVERA DE MARIANA. AUGUSTO CONCEDE-LHE AINDA NOVOS FAVORES. CAUSA DO BOM TRATAMENTO QUE HERODES DISPENSAVA AOS ESSÊNIOS. 669. Herodes, tendo notado ao longo do mar a torre de Estratão, cuja situação era muito vantajosa, edificou ali uma cidade de forma e beleza admiráveis. Não somente os palácios eram magníficos, construídos de mármore branco, como também apresentavam belíssima arquitetura as casas dos particulares. E o porto, com dimensões semelhantes às do Pireu, onde os navios podiam ancorar em segurança, sobrepujava a tudo o mais. A estrutura era maravilhosa. Havia dentro grandes magazines para receber toda sorte de mercadoria e de objetos. Foi necessário, para levar a cabo tão grande obra, um trabalho extraordinário e uma despesa fabulosa, porque era preciso trazer de muito longe todo o material. Essa cidade está na Fenícia, situada no lugar onde se embarca para passar ao Egito, entre Jope e Adora, que são duas pequenas cidades marítimas. Os portos destas, porém, não são seguros, porque são batidos pelo vento áfrico, cuja impe-tuosidade levanta tão grande quantidade de areia contra a praia que os navios carregados de mercadorias aí não podem estar seguros, e os pilotos são obrigados a lançar as âncoras ao mar. Para remediar esse inconveniente, Herodes mandou construir o porto de Cesaréia em forma de crescente, capaz de conter um grande número de navios. E, como o mar mede ali vinte braças de profundidade, mandou lançar pedras de tamanho enorme, a maior das quais tinha cinqüenta pés de comprimento, dezoito de largura e nove de altura. E havia ainda maiores. A extensão do cais era de duzentos pés, cuja metade servia para quebrar a violência nas ondas, e construiu-se na outra metade um muro fortificado com torres, sendo que a maior e mais bela recebeu de Herodes o nome de Druso, filho da imperatriz Júlia,* mulher de Augusto, que morreu jovem. Havia ainda diversos arcos em forma de pórticos, para alojar os marinheiros. Uma descida muito suave e que poderia servir de belíssimo passeio rodeava todo o porto, cuja entrada estava exposta ao aquilão, que é o mais forte de todos os ventos. Havia do lado esquerdo, por onde se entrava no porto, uma torre construída sobre uma plataforma muito larga, feita para resistir à violência das vagas. Do lado direito, estavam duas colunas de pedra, tão grandes que superavam a altura da torre. Via-se ao redor do porto uma fileira de casas cujas pedras eram muito bem talhadas, e construiu-se sobre uma colina que está meio o Templo consagrado a Augusto. Os que navegam podem vê-lo de bem longe, e há duas estátuas, uma de Roma e outra desse príncipe, em honra do qual Herodes deu o nome de Cesaréia a essa cidade, não menos admirável pela riqueza de suas construções que pela magnificência de seus ornamentos. Fizeram-se em terra longos arcos, distantes igualmente uns dos outros, que se dirigiam todos para o mar, e havia um que os atravessava para levar até ele a água da chuva e as imundícies da cidade e receber ao mesmo tempo as águas do mar, quando este se achasse muito agitado, a fim de lavar assim a maior parte das ruas. Herodes mandou também construir um circo de pedra e, ao lado do porto que está voltado para o sul, um enorme anfiteatro, de onde se pode ver bem ao longe por sobre o mar. E, como ele não economizava nem trabalho nem dinheiro em tão grandes obras, empregou doze anos para fazê-la chegar à sua maior perfeição. _______________________ * Josefo chama-a Júlia, mas na verdade é a princesa Lívia. 670. Depois que construiu essas duas grandes cidades, Sebaste e Cesaréia, o magnífico monarca enviou a Roma Alexandre e Aristóbulo, filhos que tivera de Mariana, para que se fixassem na corte de Augusto. Poliom, que era seu íntimo amigo, preparou-lhes um belo alojamento, mas sem necessidade, porque Augusto quis hospedá-los no palácio real. Esse grande imperador recebeu-os com singular gentileza e demonstrações de afeto, deixando ao pai deles a liberdade de tomar por sucessor aquele que quisesse escolher para tal. Aumentou ainda o reino de Herodes em três províncias: Traconites, Batanéia e Auranite, pelo fato que vou narrar. 671. Zenodoro, que se havia apoderado dos bens de Lisânias, não se contentando com os rendimentos que deles podia tirar legitimamente, tentou aumentá-los, favorecendo os roubos pelos de Traconites, que costumavam assaltar os arredores de Damasco. Assim, em vez de se opor a eles, Zenodoro tinha parte no produto do roubo. Foram então queixar-se a Varo, governador da província, e ele escreveu a Augusto, que lhe ordenou destruir completamente os redutos desses salteadores e que desse o país a Herodes, a fim de que ele impedisse, com os seus cuidados, a continuação de tal desordem. Seria muito difícil remediá-la, pois os que viviam desses roubos não iam nem para as cidades nem para as aldeias, mas para as cavernas, onde viviam como animais. Fazendo provisões de víveres e de água, lá se escondiam quando eram atacados ou perseguidos. A entrada dessas cavernas é tão estreita que só é possível entrar uma pessoa por vez, porém no interior são muito espaçosas, mais do que se pode imaginar. A terra que as cobre é plana, mas tão pedregosa e áspera que dificilmente sexonsegue andar ali. Não se pode percorrer sem um guia as estradas que levam a essas cavernas, tão tortuosas e emaranhadas elas são. Aqueles homens eram ainda tão maus que quando não podiam roubar mais ninguém, roubavam uns aos outros. Logo que Herodes se tornou senhor dessas terras, pela doação de Augusto, ele conseguiu, valendo-se de bons guias, chegar até as cavernas e reprimir todos os assaltos, restituindo a calma a todos os países das redondezas. Zenodoro, abatido de dor pela perda de seus bens e pelo ódio contra Herodes, que os havia tirado, foi a Roma para queixar-se, mas inutilmente. 672. Por esse mesmo tempo, Augusto enviou Agripa, a quem ele tinha uma estima muito particular, para governar a Ásia. Herodes foi procurá-lo em Mitilene e voltou depois a Jerusalém. Os habitantes de Cadara, querendo fazer queixas dele a Agripa, dirigiram-se para lá. Agripa, no entanto, não somente não os escutou como ainda os despediu acorrentados. 673. Então os árabes, que não toleravam o domínio de Herodes, procuravam havia muito oportunidade para se revoltar e julgaram ter encontrado uma ocasião favorável. Zenodoro, de quem acabamos de falar, vendo malparados os seus negócios, vendeu Auranite, que fazia parte do que ele antes possuía, por cinqüenta talentos. E, como estava compreendida na doação feita por Augusto a Herodes, os árabes julgaram que lhes estavam fazendo uma enorme injustiça e não iriam tolerá-la. Assim, esforçam-se de todos os modos para conservar a província, tanto afirmando o seu direito perante os juizes quanto pela força, servindo-se de alguns soldados que se compraziam em tomar parte em agitações. Herodes, para evitar que sucedesse alguma rebelião, julgou conveniente remediar esse mal mais pela conciliação que pela violência. No décimo sétimo ano de seu reinado, Augusto veio à Síria e ouviu ali muitas queixas contra Herodes, da parte dos habitantes de Gadara, que o acusavam de tirania. Zenodoro, principalmente, os levava a isso, prometendo-lhes com juramento jamais descansar até libertá-los da dominação de Herodes e trazê-los de volta à de Augusto. Mas o que os tornou ainda mais atrevidos em se rebelar contra Herodes foi o fato de este não castigar os que Agripa lhe mandara acorrentados, pois quanto ele era severo com os seus súditos tanto era afável com os estrangeiros. E atreveram-se ainda a acusá-lo de haver feito exações. Herodes, sem se comover, preparava-se para se justificar, mas Augusto o recebeu muito bem e demonstrou que de nenhum modo se deixara impressionar para aquelas queixas. Disse-lhe somente alguma coisa no primeiro dia e depois não tocou mais no assunto. Quando os habitantes viram que os sentimentos de Augusto e dos de sua maior confiança eram favoráveis a Herodes, o temor de serem abandonados à vontade dele levou alguns a cometer suicídio na noite seguinte, outros a se precipitar nos abismos e outros ainda a se afogar. Assim, tendo eles mesmos se condenado, Augusto não encontrou dificuldade em absolver Herodes. Aconteceu também a esse rei dos judeus outro fato auspicioso: Zenodoro morreu em Antioquia, por causa de uma disenteria, e Augusto deu-lhe então todos os outros bens que ele possuía na Galiléia e Traconites, que era muito extensa, porque compreendia Ulata, Paneada e as terras vizinhas. Augusto acrescentou-lhe ainda outro favor: ordenou aos governadores da Síria que nada fizessem sem ordem do rei da Judéia. Augusto reinava sobre quase toda a terra, e podia-se dizer que Agripa governava depois dele esse poderoso império. Nisso era grande a felicidade de Herodes, pois Augusto, depois de Agripa, não estimava ninguém como a ele, e Agripa não estimava ninguém mais que a Herodes, depois de Augusto. Dois apoios tão poderosos davam-lhe motivo de esperar todo poder, então ele pediu e obteve de Augusto para Feroras, seu irmão, a vice-govemança de todo o seu reino e recolheu imediatamente cem talentos de sua renda a fim de que o irmão tivesse com que viver depois de sua morte, sem depender dos filhos. Depois acompanhou Augusto até o embarque e construiu em sua honra, nas terras de Zenodoro, perto de Panio, um soberbo Templo de mármore branco. Panio é uma enorme caverna sob um monte muito agradável, onde nascem as águas do Jordão. Como esse lugar era já muito célebre, Herodes escolheu para lá consagrar esse Templo a Augusto. 674. Nesse mesmo tempo, Herodes dispensou os seus súditos da terça parte dos tributos, dizendo que o fazia para que se refizessem dos males causados pela carestia. Mas a verdadeira razão era que ele queria acalmar-lhes o espírito por aquelas grandes obras, tão contrárias à sua religião e pelas quais eles não dissimulavam o seu descontentamento. Temendo as conseqüências dessa indisposição, tudo ele fez para diminuí-la e mesmo impedi-la. Ordenou que cada qual se ocupasse apenas de seus assuntos particulares e proibiu, sob grandes castigos, as assembléias e os banquetes em Jerusalém. Prezava tanto a observância desse edito que havia guardas nas cidades e nos grandes caminhos para vigiar e prender os que desobedecessem, os quais eram secreta ou mesmo abertamente levados à fortaleza de Hrrcânia e ali castigados com rigor. Diz-se que ele próprio se disfarçava-eom freqüência e à noite misturava-se com o povo para auscultar-lhe os sentimentos com relação ao governo. E castigava sem misericórdia os que condenavam o seu proceder, obrigando os outros com juramento a jamais lhe faltar à fidelidade. Assim, a maior parte fazia por medo tudo o que ele ordenava, e não havia meios de que ele não se servisse para condenar os que, não suportando aquele tratamento, tinham a coragem de se queixar. Quis também obrigar Poliom Fariseu, Sameas e a maior parte de seus discípulos ao mesmo juramento. Porém, ainda que eles recusassem fazê-lo, não os castigou como aos demais, pelo respeito que tinha a Poliom, e dispensou também do juramento os que nós chamamos essênios, cujos sentimentos são semelhantes aos dos filósofos e aos quais os gregos chamam pitagóricos, como já dissemos alhures. Sobre isso, creio não me afastar do assunto de minha história se disser a razão que levou Herodes a ter deles uma opinião tão favorável. 675. Um essênio, de nome Manaém, que levava uma vida muito virtuosa e era louvado por todos, recebeu de Deus o dom de predizer o futuro. Tendo ele visto Herodes ainda bastante jovem estudar com as crianças de sua idade, disse-lhe que ele reinaria sobre os judeus. Herodes julgou que ele não o conhecia ou que estava zombando dele e por isso respondeu-lhe que bem via que ele desconhecia a sua origem e o seu nascimento, que não eram tão ilustres que o fizessem esperar tal honra. Manaém retrucou, sorrindo e dando-lhe uma palmadinha nas costas: "Eu vo-lo disse e vo-lo digo ainda que sereis rei e reinareis venturosamente, porque Deus assim o quer. Lembrai-vos então desta pancadinha que vos acabo de dar, para indicar as diversas mudanças de sorte, e nunca vos esqueçais de que um rei deve ter continuamente diante dos olhos a piedade que Deus lhe pede, a justiça que deve ministrar a todos e o amor que é obrigado a ter pelos seus súditos. Mas sei que não o fareis quando fordes elevado a tão alto grau de poder. Pois sereis feliz em tudo o mais e digno de glória imortal tanto quanto sereis infeliz por vossa impiedade para com Deus e vossa injustiça para com os homens. Mas não podereis escapar à vista desse Senhor soberano do universo. Ele penetrará os vossos pensamentos mais ocultos, e experimentareis no fim de vossa vida os efeitos de sua cólera". Herodes não deu então grande importância a essas palavras, mas quando se viu elevado ao trono e em tão grande prosperidade, mandou buscar Manaém e perguntou-lhe sobre a duração de seu reinado, se chegaria a dez anos. Ele respondeu: "De vinte a trinta", sem nada determinar de positivo. Herodes, muito satisfeito com essa resposta, despediu-o corwnuita gentileza e depois disso tratou sempre os essênios muito favoravelmente. Não duvido de que isso, para muitos, pareça inacreditável. No entanto, julguei dever relatá-lo, porque há vários dessa seita aos quais Deus se digna revelar os seus segredos, por causa da santidade de sua vida. CAPÍTULO 14 HERODES RECONSTRÓI INTEIRAMENTE O TEMPLO EM JERUSALÉM, PARA TORNÁ-LO AINDA MAIS BELO. 676. Depois de tantas e tão grandes realizações e de tão soberbos edifícios feitos por Herodes, ele imaginou, no décimo oitavo ano de seu reinado, um empreendimento que sobrepujava em muito todos os outros: construir um Templo a Deus, maior e mais alto que o que já existia, porque julgava, e com razão, que tudo o que fizera até então, por maior e mais brilhante que fosse, estava de tal modo abaixo de tão alta empresa que nada poderia contribuir mais para tornar a sua memória imortal. Como temia que o povo, espantado pela dificuldade de tal obra, tivesse dificuldade em iniciá-la, reuniu-o e falou: "Seria inútil falar-vos de todas as coisas que fiz após a minha ascensão ao trono, pois sendo mais úteis a vós que a mim mesmo, não poderieis ignorá-las. Sabeis que nas calamidades públicas esqueci os meus próprios interesses para vos ajudar, e não teríeis dificuldade em reconhecer que as muitas obras grandiosas que empreendi e concluí, com a ajuda de Deus, e nas quais não visava tanto a minha satisfação particular quanto as vantagens que disso poderieis receber elevaram a nossa nação a um grau de estima nunca antes alcançado. Seria inútil, pois, falar-vos das cidades que construí e das que embelezei na judéia e nas províncias que nos são tributárias. Mas quero propor-vos uma iniciativa muito maior e mais importante que todas as outras, pois se refere à nossa religião e ao culto que devemos prestar a Deus. Sabeis que o Templo que os nossos antepassados construíram depois de seu regresso do cativeiro da Babilônia mede em altura sessenta côvados a menos que o construído por Salomão, mas não devemos culpá-los, pois desejavam torná-lo mais suntuoso que o primeiro, porém, estando então sujeitos aos persas è depois aos macedônios, foram obrigados a seguir as medidas que lhes deram os reis Ciro e Dario, filho de Histapes. Agora que sou devedor a Deus da coroa que possuo e uso sobre minha cabeça, da paz de que desfrutamos, das riquezas que acumulei e, o mais importante, da amizade dos romanos, que hoje são senhores do mundo, esforçar-me-ei por demonstrar o meu reconhecimento por tantos favores, dando a essa obra a maior perfeição". 677. As palavras de Herodes surpreenderam a todos de modo extraordinário. A grandeza da idéia a fazia parecer inexeqüível. E, mesmo que não o fosse, eles temiam que, depois de demolido o Templo, não o pudessem reconstruir inteiramente, e assim achavam a empresa muito perigosa. Mas ele os tranqüilizou, prometendo não tocar no antigo edifício antes de preparar tudo o que fosse necessário para a construção do novo, e os fatos seguiram-se às palavras. Ele empregou mil carretas para trazer as pedras, reuniu todo o material, escolheu dez mil operários dos melhores e sobre eles constituiu mil sacerdotes, vestidos à sua custa, inteligentes e práticos nos trabalhos de pedreiro e de carpinteiro. Depois que tudo estava preparado, mandou demolir os antigos alicerces, para serem reconstruídos, e sobre eles ergueu-se o Templo, que media cem côvados de comprimento e cento e vinte de altura. Porém mais tarde os alicerces cederam, e essa altura ficou reduzida a cem côvados. Nossos antepassados quiseram, no reinado de Nero, levantar o Templo, para recuperar esses vinte côvados de rebaixamento. Esse trabalho foi realizado com pedras duras e muito brancas que mediam vinte e cinco côvados de comprimento por oito de altura e doze de largura. A frente desse soberbo edifício parecia a de um palácio real. As duas extremidades de cada frente eram mais baixas que o centro, e esse centro era tão alto que os que estavam em frente do Templo ou que para lá se dirigiam podiam vê-lo, ainda que estivessem muito longe, mesmo a vários estádios de distância. A arquitetura dos pórticos era quase semelhante ao resto. Viam-se estendidas tapeçarias de diversas cores adornadas com flores de púrpura, com colunas entre elas, nas cornijas, das quais pendiam ramos de videira feitos de ouro, com os cachos e as folhas tão bem trabalhados que nessas obras, tão ricas, a arte nada ficava a dever à natureza. Herodes mandou fazer galerias ao redor do Templo, tão largas e tão altas que correspondiam à magnificência de todo o resto, sobrepujando em beleza todas as que antes haviam sido vistas, de sorte que parecia que ninguém mais a não ser esse príncipe havia trabalhado para adornar o Templo. Duas dessas galerias eram sustentadas por muralhas fortes e espessas, e nada fora visto até então de mais belo que essa obra. Havia um outeiro pedregoso muito áspero e inclinado, mas que pendia em descida, mais suave, em direção a cidade, do lado do oriente, e Salomão foi o primeiro, por ordem de Deus, a rodear o seu vértice com muralhas. Herodes fez rodear com outro muro todo o sopé desse montículo, abaixo do qual, do lado sul, há um profundo vale. Esse muro, construído com grandes pedras ligadas com chumbo, ia até a extremidade embaixo do montículo e o rodeava por inteiro. Era de forma quadrangular e tão alto e forte que não se podia contemplá-lo sem admiração. As pedras, de tamanho extraordinário, faziam frente para fora e estavam ligadas entre si com ferro, por dentro, para que pudessem resistir a todas as injúrias do tempo. Depois que esse muro foi erguido, tão alto quanto o vértice do montículo, encheu-se todo o vazio que havia dentro dele. Formou-se assim uma plataforma, cujo perímetro era de quatro estádios, pois cada uma das frentes tinha um estádio de comprimento, e havia um grande pórtico, colocado no meio dos dois ângulos. Fez-se nesse quadrado um outro muro, também de pedra, para rodear o vértice do montículo, cujo lado, oposto ao oriente, tinha um duplo pórtico, que estava em frente à entrada do Templo, a qual estava construída no meio, e vários de nossos reis adornaram e enriqueceram muito essa entrada. Todo o perímetro do Templo estava cheio de despojos, obtidos sobre os nossos inimigos, e Herodes consagrou-os de novo, depois de acrescentar-lhes os troféus conquistados aos árabes. Do lado do norte, havia uma torre bastante forte e bem municiada, que fora construída pelos reis da família dos asmoneus, os quais detinham ao mesmo tempo a soberana autoridade e o sumo sacerdócio. Eles haviam dado a essa torre o nome de Baris, porque aí se conservava o veste de que o sumo sacerdote se revestia somente quando oferecia sacrifícios a Deus, e Herodes ordenou que ali se colocasse essa vestimenta sagrada. Depois da morte de Herodes, os romanos tiveram-no em seu poder até os tempos do imperador Tibério. Mas quando, durante o seu reinado, Vitélio veio tomar posse do governo da Síria, os habitantes de Jerusalém o receberam com tanta honra que este, para lhes demonstrar a sua satisfação, obteve de Tibério para eles, ante os reiterados pedidos que lhe faziam, outra vez a guarda desse santo depósito. Eles desfrutaram essa graça até depois da morte do rei Agripa, o Grande. Então Cássio Longino, governador da Síria, e Cúspio Fado, governador da Judéia, ordenaram aos judeus que o colocassem na torre Antônia, a fim de niiP PIP firassp ramo antes, em Dosse dos romanos. Os judeus, a esse respeito, enviaram embaixadores ao imperador Cláudio. Mas o jovem rei Agripa, que estava em Roma, pediu para ter a posse dele, o que lhe foi concedido, sendo a ordem comunicada a Vitélio. Era assim que se fazia outrora: a preciosa veste era guardada sob o selo do sumo sacerdote e dos tesoureiros do Templo. Na vigília das festas solenes, eles iam procurar o comandante na torre dos romanos, onde, após a confirmação de que o selo estava intacto, recebiam de suas mãos essa veste e a devolviam, selada como antes, depois de terminada a festa. Essa torre já era forte, mas Herodes a fortificou muito mais ainda, a fim de fortalecer também o Templo, e a chamou Antônia, para honrar a memória de Antônio, que lhe havia demonstrado tanta amizade. 678. Do lado do ocidente, havia quatro portas. Por uma delas, ia-se ao palácio real, atravessando-se um vale que estava entre eles. Pelas outras duas, ia-se aos arrabaldes e, pela quarta, à cidade. Mas era preciso, para isso, descer vários degraus até o fundo do vale e tornar a subir por outros tantos, pois a cidade, em forma de circo, está situada em frente ao Templo e termina naquele vale do lado do sul. E, desse mesmo lado, à frente do quadrado, havia no meio uma outra porta igualmente distante dos dois ângulos e uma tríplice e soberba galeria, que se estendia desde o vale que estava do lado do oriente até o que estava do lado do ocidente. Essa galeria não podia ser mais longa porque compreendia todo esse espaço. Tal obra era uma das mais admiráveis que o sol jamais iluminou. O vale era tão profundo e tão alta a cúpula elevada acima da galeria que não se podia contemplá-la do fundo do vale, porque a vista não alcançava tão longe sem se obscurecer e turbar. Essas galerias eram sustentadas por quatro séries de colunas igualmente distantes, e um muro de pedra preenchia os espaços entre as colunas da quarta fileira. Essas colunas eram tão grossas que eram necessários três homens para abraçar uma delas. Tinham vinte e sete pés de circunferência, e a sua base media o dobro. Havia ao todo cento e sessenta e duas. Eram de estilo coríntio e tão artisticamente trabalhadas que causavam admiração. Entre essas quatro fileiras de colunas, estavam três galerias, cada uma medindo trinta pés de largura, mais de cinqüenta pés de altura e um estádio de comprimento. Mas a do meio era uma vez e meia mais larga e duas vezes mais alta que as outras. Viam-se nos forros dessas galerias diversas figuras, muito bem talhadas. A arcada da galeria do meio, que superava as outras, apoiava-se sobre cornijas de pedra, tão bem talhadas e entremeadas de colunas e feitas com tanta arte que as junturas não eram percebidas a olho nu — poder-se-ia pensar que toda a obra era feita de um único bloco de pedra. Assim estava construído esse primeiro recinto. Havia um segundo, feito com um muro de pedra e que estava a pouca distância. A ele se subia por alguns degraus, e havia uma inscrição que proibia aos estrangeiros lá entrar, sob pena de morte. Esse recinto interior tinha três portas do lado do sul e três do lado norte, igualmente distantes, e uma grande do lado do oriente, pela qual os que estavam purificados entravam com as suas mulheres, mas a estas era proibido transpô-la. Somente os sacerdotes podiam adentrar o espaço que ficava entre esses dois recintos, porque ali estava construído o Templo, e era onde também se localizava o altar sobre o qual se ofereciam os sacrifícios a Deus. Assim, nem mesmo Herodes ousava entrar ali, porque não era sacerdote. Por isso deixou aos sacerdotes o cuidado dessa obra. Eles a concluíram em dezoito meses. Para tudo o mais, haviam-se empregado oito anos. Não se pode descrever a alegria do povo ao ver tão grandiosa obra terminada em tão pouco tempo. Começaram por dar ações de graças a Deus e em seguida fizeram também elogios ao rei, pois o seu zelo bem os merecia. Depois, promoveram uma grande festa para celebrar a memória da nova construção. Herodes ofereceu a Deus trezentos bois como sacrifício, e os outros também ofereceram vítimas, segundo as suas posses. O número delas foi tão grande que se pode dizer incalculável, e a festa realizou-se no mesmo dia do início do reinado de Herodes e que ele solenizava todos os anos com grande pompa. Esse grande príncipe mandou fazer um subterrâneo, que ia desde a torre Antônia até a porta oriental do Templo, perto da qual mandou construir outra torre, a fim de que ele e os outros reis lá pudessem refugiar-se em caso de rebelião. Diz-se que durante todo o tempo em que se trabalhou para a reconstrução do Templo choveu somente à noite, para que os trabalhos dessa santa obra não fossem retardados. Esse pormenor veio por tradição de nossos antepassados até nós, mas não devemos ter dificuldade em lhe prestar fé, quando se apresentam aos nossos olhos tantas graças e favores recebidos da mão liberal e onipotente de Deus.