terça-feira, 29 de julho de 2014

LIVRO HISTÓRIA DOS HEBREUS - 3ª PARTE


Livro Décimo Sexto CAPÍTULO 1 O REI HERODES ESTABELECE UMA LEI QUE O FAZ SER TIDO COMO TIRANO. VAI A ROMA E TRAZ DE VOLTA ALEXANDRE E ARISTÓBULO, SEUS FILHOS. SALOMÉ, SUA IRMÃ, E SEUS PARTIDÁRIOS PROCURAM TORNÁ-LOS ODIOSOS A ELE. 679. Como o rei Herodes estava persuadido de que um de seus principais cuidados no governo de seu território era impedir que se fizessem injustiças aos particulares, tanto em Jerusalém quanto nos campos, ele ordenou, por uma nova lei, que aquele que furasse a parede para entrar numa casa seria tratado como escravo e vendido fora do reino. Não o fazia, no entanto, para punir o crime, mas para abolir um costume observado havia muito tempo entre nós e se colocar assim acima das leis. Um castigo tão severo como o de viver escravo em terras estrangeiras, cuja maneira de viver é muito diferente da nossa, muito mais fere a religião que mantém a justiça, e as nossas antigas leis já haviam provido o suficiente quanto a isso, ordenando que aqueles que possuíam riquezas pagassem o quádruplo do que haviam roubado. Os que não tivessem seriam vendidos como escravos. Como, porém, as leis só permitiam que fossem vendidos aos de sua própria nação, a servidão não seria perpétua, porque no sétimo ano eles recobravam a liberdade. Assim, essa lei foi tida como muito injusta e considerada tirânica, porque o soberano, por um orgulho insuportável, julgava que lhe era permitido calcar aos pés as leis do reino e criar novas penas. Todos se queixavam em alta voz. Esse fato suscitou contra ele um ódio tal que não era possível dissimulá-lo. 680. Ele foi nessa mesma ocasião a Roma para visitar o imperador e ver os filhos, que lá se educavam e que já estavam suficientemente instruídos nas letras. Augusto recebeu-o com grandes demonstrações de honra e amizade e os entregou para que fossem trazidos de volta ao seu país. Os judeus receberam-nos com muita alegria, porque eles eram muito belos e de porte elegante. Tudo neles demonstrava majestade real. Esse afeto do povo causou muita inveja a Salomé, irmã do rei, bem como a todos os que com ela haviam causado, por suas calúnias, o fim trágico de Mariana. Temiam eles que esses príncipes logo que fossem elevados ao trono quisessem vingar a morte de sua mãe e resolveram usar contra eles dos mesmos artifícios de que se haviam servido contra aquela inocente e infeliz princesa, a fim de obrigar o pai deles a renunciar o afeto que lhes devotava. Depois dessa deliberação, fizeram correr a notícia de que aqueles príncipes não o estimavam, porque ainda o imaginavam com as mãos tintas com o sangue de sua mãe. Não ousavam, no entanto, falar disso ao rei. Mas não duvidavam de que tal notícia logo chegaria aos seus ouvidos, e o ódio que suscitaria em seu coração contra os filhos sufocaria os sentimentos da ternura paternal. CAPÍTULO 2 HERODES CASA ALEXANDRE E ARISTÓBULO, SEUS FILHOS, E RECEBE MAGNIFICAMENTE AGRIPA EM SEUS ESTADOS. 681. Essa conspiração de Salomé e dos outros autores da morte de Mariana contra os filhos dele não produzira ainda nenhum efeito no espírito de Herodes, que continuava a tratá-los como eles poderiam desejar. E, como estavam na idade de se casar, ele fez Alexandre desposar Glafira, filha de Arquelau, rei da Capadócia, e casou Aristóbulo com Berenice, filha de Salomé. 682. Nesse mesmo tempo, soube que Agripa navegava da Itália para a Ásia. Foi procurá-lo e convidou-o, pela amizade que havia entre eles, a visitar o seu reino. Agripa não pôde recusá-lo, e Herodes tudo fez para agradar a ele e aos seus amigos, tratando-os com toda a magnificência possível. Levou-o às novas cidades que havia construído, Sebaste e Cesaréia — onde mostrou-lhes o soberbo porto, às fortalezas de Alexandriom e Hircânia —, e depois a Jerusalém, onde todo o povo, vestido como em dia de festa, veio encontrá-lo com grandes aclamações. Agripa ofereceu a Deus em sacrifício uma hecatombe,* deu um banquete a todo o povo e ficou tão satisfeito com a maneira como foi recebido que manifestou o desejo de ficar ainda alguns dias. Todavia, como o inverno se aproximava e haveria perigo, caso se demorasse em pôr-se ao mar; foi obrigado a embarcar para a Jônia. Antes, porém, Herodes ofereceu-lhe magníficos presentes, bem como aos principais dentre os que o acompanhavam. ____________________ * Sacrifício de cem vítimas. CAPÍTULO 3 HERODES VAI PROCURAR AGRIPA NO PONTO COM UMA ESQUADRA, E COM ELA REFORÇA O EXÉRCITO ROMANO. AO RETORNAR COM ELE, FAZ BENEFÍCIOS A VÁRIAS CIDADES DURANTE O CAMINHO. 683. Quando chegou a primavera, Herodes soube que Agripa navegava com a sua esquadra para o Bósforo, e embarcou para encontrar-se com ele em Lesbos. Porém, depois de passar Rodes e Cós, um vento do norte impeliu-o para a ilha de Quios, onde foi obrigado a permanecer alguns dias. Muitos vieram cumprimentá-lo, e ele lhes deu magníficos presentes. Percebendo que os mercados da cidade, que eram muito grandes e belos, haviam sido destruídos durante a guerra de Mitridates e que os habitantes não tinham meios de os reconstruir, forneceu-lhes dinheiro mais que o necessário para as despesas e exortou-os a trabalhar prontamente para restituir à cidade a sua primitiva beleza. 684. Quando o vento mudou, ele tornou a embarcar. Aportou em Mitilene e depois em Bizâncio, onde soube que Agripa já passara os rochedos cianeanos. Seguiu-o rapidamente e o alcançou em Sinope, que é uma cidade do Ponto. Agripa ficou tão satisfeito quanto surpreso por vê-lo chegar com uma frota, quando menos esperava. Recebeu-o com as demonstrações de reconhecimento que merece tão grande prova de amizade, pois Herodes deixara o seu reino e os interesses de Estado para trazer-lhe um considerável auxílio. Esse fortalecimento de amizade uniu-os de tal modo que eles estavam sempre juntos, e Agripa nada fazia sem a participação de Herodes. Chamava-o a todos os conselhos, comunicava-lhe a execução de todas as suas empresas e, quando queria dar-se a algum divertimento para aliviar o espírito, ele era o único a quem convidava para lhe fazer companhia. E deu-lhe não somente provas de sua amizade nas coisas agradáveis, mas também de sua confiança nas ocasiões mais importantes e difíceis. Depois que esse general romano concluiu no Ponto os negócios que haviam sido o motivo de sua viagem, resolveu continuar a rota por terra. Atravessou a Paflagônia, a Capadócia e a Alta Frígia para chegar a Éfeso e depois tornou a embarcar para Samos. A magnificência e a generosidade de Herodes brilharam nessa viagem, pelo bem que ele fez a todas as cidades que sofriam por alguma necessidade. Ajudou-as não somente com o seu dinheiro, mas também com a sua recomendação e favor junto de Agripa, perante o qual ele tinha mais crédito que qualquer outro. Herodes achava aí tanto mais facilidade quanto esse grande homem tinha a alma nobre e elevada, estando sempre pronto a conceder o que lhe era pedido, contanto que não se fizesse injustiça a ninguém. E assim, Agripa concedia ainda mais do que Herodes podia desejar dele, tanto prazer sentia em servi-lo. Ante pedido seu, perdoou os ilíricos, contra os quais estava muito irritado. Herodes pagou ao tesoureiro do imperador o que os habitantes de Quios lhe deviam e ajudou todas as outras cidades em tudo o que elas necessitavam. CAPÍTULO 4 OS JUDEUS DAJÔNIA QUEIXAM-SE A AGRIPA, NA PRESENÇA DE HERODES, DE QUE OS GREGOS OS ESTÃO PREJUDICANDO EM SEUS PRIVILÉGIOS. 685. Apenas Agripa e Herodes chegaram à Jônia, um grande número de judeus moradores daquela província vieram queixar-se de que, com prejuízo dos privilégios a eles conferidos pelos romanos e da liberdade que estes lhes haviam concedido para viver segundo as suas próprias leis, estavam sendo obrigados a comparecer nos dias de festas diante dos juizes. Eram também obrigados a ir à guerra e forçados a contribuir para as despesas públicas. Isso os impedia de enviar a Jerusalém o dinheiro destinado às cerimônias sagradas. Herodes não quis perder essa ocasião de ajudar os judeus. E escolheu um amigo, de nome Nicolau, para defender a causa. Agripa então reuniu os principais romanos que estavam com ele, alguns reis e vários príncipes. Esse amigo de Herodes assim falou: "Grande e generoso Agripa. Não é de se admirar que pessoas oprimidas recorram àqueles cuja autoridade possa aliviá-los dos males que sofrem. E não duvidamos de que obteremos o que vos iremos pedir, pois não desejamos outra coisa senão sermos mantidos na mesma condição em que vos dignastes permitir-nos viver, mas da qual os nossos inimigos se esforçam por nos privar, embora não se possam opor à vossa vontade, sendo-vos tão sujeitos quanto nós. Que motivos eles podem ter? Se é grande a graça que nos fizestes, é porque nos julgastes dignos de recebê-la. E, se é pequena, ser-vos-ia vergonhoso não permitir que as desfrutem os que a receberam de vossa liberalidade. Assim, é evidente que a injúria que eles nos fazem recai sobre vós, pois desprezam o vosso desejo e tornam inúteis os vossos benefícios. Se lhes for perguntado o que preferem: perder a vida ou ser impedidos de observar as leis de seu país e as suas festas, cerimônias e sacrifícios, acaso não responderão que é preferível sofrer qualquer castigo a privar-se de todas essas coisas? Que guerras não empreenderão para se manter na posse de um bem tão precioso e tão caro a todas as nações? E, que há de mais doce, na paz que se desfruta sob o Império Romano, senão a liberdade de viver segundo as leis do próprio país? Mas esses bárbaros querem impor aos outros um jugo que não podem suportar, como se houvesse menos impiedade em nos impedir prestarmos a Deus o culto ao qual a nossa religião nos obriga que em faltarem eles mesmos aos deveres aos quais a sua os mantém sujeitos. E outra razão torna-os ainda mais inexcusáveis. Existe cidade ou povo, que, a menos que tenha perdido o juízo, não considere uma grande felicidade viver sob a dominação de tão poderoso império como o romano e queira dele ser privado? Pois é isso o que fazem os nossos inimigos quando se esforçam por nos privar do bem que recebemos de vossa bondade. Eles estão também renunciando ao direito de usufruir os benefícios de que vos são devedores e de que não podem assaz estimar. Pois, se considerarmos as outras nações, quase todas obedecem a reis e vivem numa feliz tranqüilidade, sob a proteção dos imperadores, não se julgando súditos, mas pessoas livres. E, por maior que seja a nossa felicidade em desfrutar a tranqüilidade que encontramos sob o vosso domínio, eles não têm o direito de a invejar, quando a única coisa que pedimos é não sermos perturbados no exercício de nossa religião. Pode-se com justiça no-lo recusar quando há vantagem em no-lo conceder? Porque Deus não somente honra aqueles que lhe prestam honra, mas também aqueles que permitem que elas sejam prestadas. Porventura existe em todas as nossas leis e costumes algo que se possa com razão criticar ou que não seja, ao contrário, pleno de justiça e de piedade? As nossas leis são tão puras e santas que não tememos que sejam conhecidas em todo o mundo. Empregamos o sétimo dia, que para nós é dia de descanso, em estudá-las e em aprendê-las e experimentamos o quanto são úteis para corrigir defeitos e nos levar à virtude. E, ainda que não fossem tão louváveis em si mesmas, não deveria a sua antigüidade, que alguns ousam vãmente contestar, torná-las ainda mais veneráveis, já que não se poderia sem impiedade abandonar leis consagradas pela aprovação de tantos séculos? Muitos motivos temos nós, portanto, de nos queixarmos daqueles que praticam contra nós tão grande injustiça, pois roubam, por um horrível sacrilégio, o dinheiro que ofertamos para ser empregado no serviço de Deus, fazem sobre nós imposições de que estamos isentos e nos obrigam, nos dias de nossas festas, a comparecer perante os juizes para tratar de negócios temporais, e isso somente para nos impedir o exercício de nossa religião. E nisso são tão injustos quanto conscientes de que não lhes damos nenhum motivo para que nos odeiem e não podem ignorar que a eqüidade de vosso governo tem por único objetivo unir os vossos súditos e impedir tudo o que possa vir a alterar-lhes a união. Livrai-nos, pois, senhor, de tal opressão, por vossa autoridade, fazendo com que não nos impeçam mais a observância de nossas leis e que aqueles que nos odeiam não tenham mais poder sobre nós, assim como não pretendemos dominar sobre eles. O que pedimos é justo, pois se trata da execução dó que já nos foi concedido, como se pode ver ainda hoje nos muitos decretos do senado, gravados sobre as tábuas de cobre do Capitólio. Não se pode também duvidar de que a nossa afeição e fidelidade ao povo romano não tenham sido causa de tantas demonstrações que ele nos deu de sua amizade. E, mesmo que não tivéssemos merecido esses privilégios, seria suficiente dizer que eles nos foram concedidos uma vez a fim de serem para sempre invioláveis, pois a vossa maneira de agir para com todas as outras nações é tão generosa que, em vez de diminuir os vossos benefícios, sentis prazer em aumentá-los além das esperanças dos que já vos são reconhecidos. Os favores que recebemos do Império Romano são tão numerosos que eu seria demasiado prolixo se os fosse enumerar. Para que não pareça que o meu testemunho acerca do nosso acatamento ao povo romano e de nossas benemerências seja pura vaidade e sem fundamento, não citarei os séculos passados. Contentar-me-ei em falar-vos«,do rei que agora nos governa e que vejo sentado junto de vós. Que demonstrações não vos deu ele de sua grande afeição? Que provas não recebestes de sua fidelidade? Que honras não vos prestou? Tivestes necessidade de algum auxílio que ele não tenha sido o primeiro a vo-lo conceder? Poderieis então recusar, diante de tantos méritos, o favor que vos pedimos? E, poderia eu passar em silêncio os grandes serviços de Antípatro, seu pai? Quem não sabe que ele, quando César estava empenhado na guerra contra o Egito, levou a esse rei dois mil homens e que nenhum outro obteve maior glória que ele pelo seu valor em todos os combates de terra e mar ou serviu mais proveitosamente ao império? Não precisamos de outra prova. Bastam os presentes que César lhe fez e as cartas que escreveu ao senado, plenas da estima e do afeto que lhe devotava, obtendo assim para ele grandes honras e a qualidade de cidadão romano. Seja essa única prova suficiente para mostrar que merecemos essas graças e que assim não temos razão para temer que recuseis confirmá-las. Esperamos mesmo que as aumenteis, pois vemos a amizade que dedicais ao nosso rei e sabemos das honras que prestastes a Deus em Jerusalém com os vossos sacrifícios e com os banquetes que oferecestes ao povo, da bondade com a qual recebestes deles presentes e do prazer que demonstrastes pela maneira como o nosso rei vos recebeu em seu reino e na sua capital. Que mais se poderia desejar, pois, para não haver dúvida de que sereis levados a reverenciar a nossa nação? Depois de tantas considerações, não temos como recear que venhais a permitir que a malícia de nossos inimigos nos impeça fruir os favores que recebemos de vossa generosidade". Nicolau assim falou pelos judeus, e nenhum dos gregos o contradisse, porque não era um assunto tratado diante dos juizes, mas uma intercessão que pretendia fazer cessar uma injustiça que sofriam. Os inimigos de nossa nação outra coisa não puderam alegar contra nós senão que éramos estrangeiros e que estávamos sob os seus cuidados. A isso os judeus responderam que não deviam passar por estrangeiros, pois eram cidadãos que viviam segundo as leis de seu país, sem fazer injustiça a ninguém. CAPÍTULO 5 AGRIPA CONCEDE AOS JUDEUS O QUE ELES PEDEM. HERODES VOLTA AO SEU REINO E PERDOA AOS SEUS SÚDITOS A QUARTA PARTE DO QUE ELES LHE PAGAM. 686. Agripa percebeu que os judeus estavam sendo violentamente oprimidos e lhes deu uma resposta. Disse que não somente a amizade pelo seu rei, mas também a justiça de seu pedido o levava a conceder o que pediam. E, se tivessem desejado dele mais alguma coisa, nada lhes teria recusado, desde que não fosse prejudicial ao império. Mas, como se tratava de confirmar favores já concedidos, ele o fazia de muito boa vontade, e daria ordem para que não fossem mais perturbados. Eles podiam continuar a observar os seus costumes, pois não sofreriam mais injúrias. Depois dessas palavras, ele dissolveu a assembléia, e Herodes agradeceu-lhe por essa resposta tão favorável. Os dois príncipes separaram-se em seguida, com grandes demonstrações de afeto e partiram de Lesbos. Herodes, tendo vento favorável, pôde chegar a Cesaréia e, poucos dias depois, a Jerusalém, onde reuniu todo o povo. Informou-os do que se passara na viagem e contou como conseguira fazer com que os judeus que moravam na Ásia vivessem em plena tranqüilidade, sem serem mais importunados. Ao falar da felicidade que desfrutava no seu reinado, afirmou que coisa alguma havia negligenciado em benefício deles e acrescentou que, para dar uma prova do que estava dizendo, dispensava-os da quarta parte dos impostos. Essas palavras, acompanhadas de tal favor, foram recebidas pelo povo com grandes demonstrações de regozijo, e eles desejaram ao rei toda sorte de prosperidade. CAPÍTULO 6 SALOMÉ, IRMÃ DE HERODES, PROCURA INDISPÔ-LO CONTRA ALEXANDRE E ARISTÓBULO, OS FILHOS QUE ELE TIVERA DE MARIANA. ELE MANDA ANTÍPATRO, QUE TIVERA DO PRIMEIRO MATRIMÔNIO, A ROMA. 687. Enquanto isso, a divisão na família de Herodes aumentava, pelo ódio irre-conciliável de Salomé contra Alexandre e Aristóbulo, porque eles se referiam a ela e a Feroras, seu irmão, de maneira muito ofensiva e porque temia que eles vingassem a morte de Mariana. Como já havia cumprido o detestável intento de eliminar a mãe, queria também agora fazer perecer os irmãos, filhos desta. Não lhe faltavam pretextos, porque os dois príncipes demonstravam pouco afeto pelo rei seu pai, quer pela lembrança da morte tão injusta de sua mãe, quer pelo desejo de reinar. Assim, o ódio era igual de parte a parte, mas eles agiam diferentemente. Os dois irmãos não dissimulavam o seu, tanto pela ousadia que dá a grandeza da origem quanto pela pouca experiência. Salomé e Feroras, ao contrário, para preparar o caminho às suas calúnias, irritavam a altivez dos dois pnncipes, a fim de levar o pai a crer que, estando eles persuadidos de que ele lhes matara a mãe injustamente e convictos da honra de terem nascido de tão grande princesa, poderiam vingar-lhe a morte com as próprias mãos. Já não se falava de outra coisa em toda a cidade, e, como acontece com os espectadores dos combates, quando as partes não são iguais, todos sentiam compaixão pelo perigo em que a imprudência dos jovens príncipes os lançaria. Salomé não perdia ocasião para daí tirar proveito, encobrindo com alguma aparência de verdade as falsas acusações de que se servia para arruiná-los. Estavam eles tão sentidos pela morte da mãe que não se contentavam em lamentá-la ou em manifestar o seu sofrimento: diziam também que se consideravam infelizes por serem obrigados a viver com aqueles que tinham as mãos manchadas com o sangue dela. 688. A confusão aumentava grandemente, e a ausência de Herodes contribuía para agravar a situação. Depois que ele regressou e falou ao povo da maneira que há pouco referimos, Feroras e Salomé falaram-lhe como se ele estivesse em grande perigo, dizendo que os jovens declaravam que haveriam de vingar a morte da mãe, acrescentando maliciosamente que eles esperavam, por meio de Arquelau, rei da Capadócia, comunicar-se com o imperador, para acusá-lo perante este. Herodes ficou impressionado com essas palavras porque outros também lhe davam o mesmo aviso. Ele repassava em sua memória as aflições passadas, que lhe haviam arrebatado os melhores amigos e uma mulher a quem amara com verdadeira paixão. O infeliz soberano, julgando do futuro pelo passado e temendo males ainda maiores que os que já lhe haviam acontecido, viu-se em aflitivo tormento. Podia-se dizer que ele era tão feliz fora da pátria, onde tudo lhe saía melhor do que ele esperava, quanto era infeliz em casa, além do que se poderia imaginar, devido às aflições domésticas. De sorte que, em tal excesso de bem e de mal, era difícil saber qual dos dois sobrepujava o outro, e se não lhe teria sido mais vantajoso passar a vida em descanso, privadamente, que usar uma coroa cuja grandeza e cujo brilho eram acompanhados de tantas dores e tormentos. 689. Por fim, após haver refletido, resolveu chamar o mais velho de seus filhos, de nome Antípatro, que ele havia feito educar privadamente, e iniciá-lo no governo. Não que tencionasse dar-lhe inteira autoridade, como o fez depois, mas para fazer oposição aos irmãos, a fim de lhes reprimir a insolência e para que se tornassem mais sensatos quando vissem que a sucessão ao trono não pertencia a eles somente. Então mandou vir Antípatro como para torná-lo participante de sua confiança e encarregá-lo de várias incumbências, mas na realidade com o propósito de rechaçar o orgulho dos outros dois, certo de que esse era o meio apropriado para isso. Aconteceu, porém, exatamente o contrário. Os dois príncipes sentiram-se muito ofendidos, e Antípatro, quando se viu revestido de uma autoridade que nunca imaginara merecer e à qual jamais havia aspirado, pensou em ocupar o primeiro lugar no afeto do rei seu pai. Como sabia que Herodes estava descontente com os dois irmãos e facilmente daria ouvidos a calúnias, tudo fez para aumentar ainda mais a sua aversão por eles e para torná-los odiosos a ele. Agiu com tanta habilidade que nenhuma suspeita o atingiu, pois, para prejudicá-los, valia-se de pessoas que eram amadas pelo rei e das quais este não podia desconfiar. Algumas delas já cultivavam a amizade de Antípatro, na esperança de obter por meio deste alguma vantagem. Assim, ele podia ter toda a confiança de que elas convenceriam Herodes de que lhe falavam daquele modo unicamente pelo interesse em seu bem-estar. Muitos agiam mesmo de comum acordo para destruir os jovens príncipes. Não perdiam oportunidade para acusá-los, e os dois irmãos davam eles próprios motivo para isso. Não podendo tolerar a maneira tão injuriosa como aqueles os tratavam, muitas vezes eram vistos banhados em lágrimas. Às vezes invocavam o nome de sua mãe e queixavam-se abertamente da injustiça de seu pai aos amigos. Os partidários de Antípatro observavam com grande cuidado todas essas coisas e não se contentavam em referi-las a Herodes, mas inventavam ainda outras, aumentando, por sua malícia, essa tão grande divisão. Esses artifícios e calúnias irritavam Herodes cada vez mais, e ele resolveu impor ainda maiores humilhações a Aristóbulo e Alexandre. Para esse fim, elevou Antípatro a novas honras e consentiu, em face dos instantes pedidos que ele lhe fazia, receber a sua mãe no palácio. Escreveu também diversas vezes a Augusto, recomendando-o com muito afeto. Quando ele embarcou para se encontrar com Agripa, que voltava para Roma após governar a Ásia por dez anos, Antípatro foi o único de seus filhos que o acompanhou. Herodes rogou a Agripa que admitisse o filho na viagem e o apresentasse a Augusto — ao qual mandava, por meio dele, valiosos presentes —, introduzindo-o em suas boas graças. Desse modo, ninguém mais duvidava de que Antípatro sucederia a Herodes no trono e que os seus irmãos estavam definitivamente rejeitados. CAPÍTULO 7 ANTÍPATRO INCITA DE TAL MODO O PAI CONTRA ALEXANDRE E ARISTÓBULO, SEUS IRMÃOS, QUE HERODES OS LEVA A ROMA E OS ACUSA PERANTE AUGUSTO DE HAVEREM ATENTADO CONTRA A SUA VIDA. 690. A viagem de Antípatro a Roma, com as cartas de recomendação do rei seu pai a todos os seus amigos, foi-lhe muito honrosa. Mas ele estava pesaroso, temendo que a sua ausência o impedisse de continuar a caluniar os irmãos e que Herodes retomasse para com eles sentimentos mais favoráveis. Assim, não deixava de incitá-lo com as suas cartas. Tomava como pretexto o cuidado pela sua conservação, mas na realidade pretendia chegar por esses meios perversos à realização de suas esperanças e à posse da coroa. E foi bem-sucedido em seu intento. Herodes perdeu todo o afeto que lhe restava pelos infelizes filhos da desventura-da Mariana e passou a considerá-los apenas inimigos. Para não parecer que ele, após se haver despojado de toda ternura paterna, agia contra eles por pura paixão, resolveu ir a Roma e acusá-los perante Augusto. Não o encontrou em Roma, mas em Aquiléia, e começou por lhe pedir que se compadecesse de sua infelicidade, pois lhe trazia os dois filhos para acusá-los de terem sido levados, devido à sua paixão pelo poder, à horrível impiedade de odiar o próprio pai e atentar contra a sua vida; que César antes lhe permitira escolher para sucessor o filho cujo caráter e virtude o tornasse digno disso; que aqueles estavam bem longe de possuir aquelas qualidades, pois o ódio que tinham por ele, que os havia posto no mundo, ultrapassava os limites, pois não se incomodavam em perder o trono ou mesmo a vida, contanto que pudessem matá-lo; que por muito tempo suportara aqueIa extrema aflição, mas agora era obrigado a denunciá-los e a importuná-lo com um discurso tão desagradável. E acrescentou: "Mereço eu que eles me tratem desse modo? Que motivos lhes dei para se queixarem? Em que se baseiam para afirmar não ser justo que eu, após conquistar o reino com tantos perigos e dificuldades, o possua e não possa escolher o filho que pela sua virtude e dedicação mais motivo me deu para estar satisfeito? Que há de mais apropriado para promover entre eles uma nobre emulação que propor a todos tal recompensa pelo mérito? Pode um filho, vivendo ainda o pai, pensar em apossar-se da coroa sem ao mesmo tempo lhe desejar a morte, já que não se sucede a um homem que ainda vive? Poderiam estes filhos desnaturados queixar-se de que não lhes dei tudo o que desejam os filhos dos reis, e não somente o necessário, mas também a magnificência e o prazer? Não os fiz casar, segundo a sua condição, um com a filha de Arquelau, rei da Capadócia, e outro com a filha de minha irmã? O que mostra claramente a minha moderação e paciência é que, em vez de usar o poder que tenho para castigá-los, quer como pai, porque faltaram aos de-veres da natureza, quer como rei, porque ousaram empreender um atentado contra a minha vida, eu os trago até vós, como a um benfeitor comum, para que sejais juiz entre mim e eles. Peço-vos somente que não os deixeis sem castigo, a fim de que eu não seja tão infeliz que tenha de passar o resto de meus dias em contínuo temor. Que não tenham eles o prazer de ver a luz do sol após terem calcado aos pés, por tão horrível atentado, os direitos mais invioláveis entre os homens". Herodes falou com muito ardor, e os dois jovens, que durante todo o discurso não haviam podido reter as lágrimas, desataram em pranto, porque, ainda que se sentissem inocentes, era para eles uma dor insuportável ver o próprio pai como acusador. O respeito que lhe deviam tirava-lhes a liberdade de responder, porém lhes importava acima de tudo não abandonar a justiça de sua causa. Assim, não sabendo que deliberação tomar, defendiam-se somente com suspiros e com lágrimas. Mas essa maneira de se justificar fazia-os temer que o seu silêncio fosse tomado como prova de culpa, embora fosse motivado apenas pela sua comoção e pouca experiência. Augusto compreendeu, por sua extrema prudência, os diversos sentimentos que agitavam os espíritos dos príncipes, e todos os presentes ficaram compadecidos. O próprio Herodes não pôde deixar de se mostrar impressionado. CAPÍTULO 8 ALEXANDRE JUSTIFICA-SE DE TAL MODO QUE AUGUSTO OS JULGA INOCENTES E RECONCILIA-OS COM O PAI. HERODES VOLTA ÀJUDÉIA COM OS TRÊS FILHOS. 691. Quando os dois irmãos perceberam que Augusto, os presentes e mesmo o seu pai tinham o coração enternecido pela compaixão de sua infelicidade e que alguns não podiam reter as lágrimas, Alexandre, o mais velho, tomou a palavra para se justificar dos crimes de que seu pai os acusava e disse, dirigindo-se a ele: "Não é necessária, senhor, outra prova de vossa bondade por nós senão o lugar em que nos encontramos, porque, se tivesseis querido destruir-nos, não nos teríeis trazido à presença deste grande príncipe, que deseja unicamente merecer o glorioso título de salvador, fazendo bem a todos. Poderíeis servir-vos contra nós do poder que vos dá a qualidade de rei e pai, mas, se a nossa vida não vos fosse cara, não nos teríeis feito vir a Roma, a fim de termos o imperador como juiz e testemunha de nossa morte. Pois não se levam aos lugares sagrados e aos Templos aqueles a quem se deliberou tirar a vida. Essa mesma bondade, de que temos motivos para nos gloriar, aumentaria ainda o nosso crime, se fôssemos culpados, pois ela nos obriga a reconhecer que não podemos, sem nos tornamos indignos de ver a luz do dia, faltar ao amor e ao respeito por tão bom pai. Ser-nos-ia muito mais vantajoso morrer inocentes que viver torturados pelas suspeitas de tão negra ingratidão. Se Deus nos ajudar em nossa defesa, de modo que vos possamos persuadir da verdade, não nos regozijaremos tanto por escapar de tão grande perigo quanto por sermos tidos como inocentes no vosso julgamento. Mas se as calúnias de que se servem para vos incitar contra nós prevalecerem no vosso espírito, inutilmente nos conservaríeis a vida, pois nos seria insuportável. Confessamos que a nossa idade, unida à infelicidade da rainha nossa mãe, pode tornar-nos suspeitos de aspirar ao trono. Considerai, porém, eu vos suplico, se não se poderia fazer a mesma acusação a todos os filhos de rei que já não tivessem mãe e se uma simples suspeita é bastante para convencer as pessoas de um crime tão detestável como o de atentar contra a vida do próprio pai a fim de reinar em seu lugar. Como a simples suspeita não basta, não temos razão em pedir que se apresentem provas dessa horrível acusação? Nada há que a calúnia não invente na corte dos reis. Poderá alguém dizer que preparamos veneno ou fizemos conjuração ou subornamos servidores domésticos ou escrevemos cartas contra o vosso governo? A esperança de reinar, que apresentastes como a recompensa pelo respeito e piedade dos filhos para com os pais, é muitas vezes causa de que maus espíritos cometam péssimas ações. E estamos certos de que não há absolutamente nenhuma de que nos possam culpar. Quanto às calúnias que vos incitaram contra nós, como poderíamos vos fazer conhecer a falsidade delas, se não nos quisestes escutar? Confessamos que fizemos queixas abertamente. Não de vós, o que nos teria feito culpados, mas daqueles que vos relatavam tais coisas. Reconhecemos também que choramos nossa mãe, mas as nossas lágrimas não procediam tanto de sua morte quanto da dor de ver que ainda há pessoas que procuram desonrar a sua memória. Dizem mesmo que nós, durante a vossa vida, aspiramos à coroa. Que probabilidade pode ter tal acusação? Se desfrutamos todas as honras que os vossos sucessores podem pretender, como de fato desfrutamos, que mais podemos desejar? E, se não as desfrutamos, não nos seria lícito esperá-lo? Ao passo que, cometendo um crime tão detestável como o de manchar as mãos no sangue daquele que nos deu a vida, não poderíamos esperar outra coisa senão que a terra se abrisse para nos tragar ou que o mar nos sepultasse em seus abismos. Poderia a santidade de nossa religião e a fidelidade de vossos súditos tolerar que reis parricidas entrassem no santo Templo, que construístes para honra de Deus? Ainda que não temêssemos tais castigos, acaso ficaríamos impunes enquanto vivesse um monarca tão justo quanto César? Se tendes em nós, senhor, os filhos mais indesejáveis no que convém à vossa tranqüilidade, sabei pelo menos que não somos ímpios nem desprovidos de juízo, como vos querem fazer crer. Estamos certos de que nada se encontrará de verdade em tudo quanto nos acusam. Com relação à morte de nossa mãe, a sua desgraça nos deve tornar mais sensatos, em vez de nos incitar contra vós. Eu poderia apresentar várias outras razões para a nossa defesa, se fosse necessário justificar aquilo que jamais foi cogitado. A única coisa que pedimos ao imperador, nosso soberano árbitro, se vos persuadirdes da verdade de nossa inocência e deixardes de suspeitar de nós, é que vivamos, ainda que infelizes, pois haveria maior desgraça que ser acusado falsamente do mais horrível de todos os crimes? Mas se continuais a desconfiar de nós, morramos então, pelo julgamento que trouxemos contra nós mesmos, sem que sejais acusado pela nossa condenação. A vida não nos é tão cara que a queiramos conservar à custa da reputação daquele de quem a recebemos". 692. Augusto, que desde o começo não pudera acreditar em tão estranhas acusações e que enquanto Alexandre falava e mantinha os olhos sobre Herodes percebeu que este ficava comovido com as palavras do filho, convenceu-se ainda mais da inocência dos dois irmãos. Além disso, os presentes sentiram tão grande compaixão e estavam tão ansiosos pelo final do julgamento, para ver o que aconteceria aos moços, que não podiam deixar de desejar mal a Herodes. Aquelas acusações pareciam-lhes incríveis, e a mocidade dos príncipes, unida à sua beleza, tornava-os tão sensíveis à sua infelicidade que estavam dispostos a prestar-lhes qualquer auxílio. Essa afeição aumentou quando eles viram Alexandre responder tão sabiamente às palavras do pai e com tanta moderação e modéstia. Depois de concluir a sua defesa, ele e o irmão continuaram com os olhos baixos, banhados em lágrimas. Surgiu então um vislumbre de esperança, pois se notava no rosto de Herodes que ele julgava ter agido erradamente e se desculpava pela maneira leviana como acreditara naquelas acusações sem provas. Augusto, depois de refletir por uns instantes, disse que julgava os príncipes inocentes dos crimes de que os acusavam, embora não se pudesse eximi-los de terem dado ao pai, com o seu proceder, motivo para que se aborrecesse. Em seguida, pediu a Herodes que os recebesse em suas boas graças e não alimentasse mais contra eles suspeita alguma, pois não era justo acatar semelhantes acusações contra os próprios filhos. Assim, tinha certeza de que eles lhe prestariam ainda bons serviços, que ele esqueceria o descontentamento que lhe haviam causado e retomaria para com eles a antiga afeição e que cada qual trabalharia para restabelecer a amizade e a confiança que deve existir entre parentes, e a união entre eles seria ainda maior que antes. Depois de assim falar, Augusto fez sinal aos príncipes, para que se caminhassem até o pai, ainda cheios de lágrimas, a fim de pedir-lhe perdão. Mas Herodes antecipou-se e os abraçou com tantas demonstrações de afeto e de ternura que todos ficaram comovidos. O pai e os filhos agradeceram efusivamente ao imperador, e Antípatro mostrou também estar satisfeito com a reconciliação de seus irmãos com o pai. 693. Alguns dias depois, Herodes presenteou Augusto com trezentos talentos, pois nessa época davam-se espetáculos e se faziam donativos ao povo romano. César, por sua vez, deu-lhe metade das rendas das minas da ilha de Chipre e a direção da outra metade, acrescentando, com grandes demonstrações de afeto, diversos outros presentes. Permitiu-lhe escolher para sucessor o filho que ele desejasse e até mesmo dividir o reino entre eles, embora não para desfrutarem isso enquanto ele vivesse, porque era justo que permanecesse como senhor de seu território e de seus filhos. 694. Herodes partiu depois com os três filhos para regressar à Judéia. E, durante a sua ausência, Traconites, que representava uma parte considerável de seus domínios, havia se revoltado, mas os comandantes das tropas a obrigaram a capitular. Quando ele passou por Eleusem, na Cilícia, que agora se chama Sebaste, Arquelau, rei da Capadócia, recebeu-o com grandes honras, bem como aos seus filhos, demonstrando alegria por terem os dois mais novos reconquistado as suas boas graças e porque Alexandre, seu genro, se havia justificado tão bem das acusações feitas contra eles. Os dois reis separaram-se depois de trocar magníficos presentes. Herodes, quando chegou a Jerusalém, mandou reunir o povo no Templo, falou-lhe de sua viagem, das honras que recebera de Augusto e de todas as outras coisas que julgou conveniente informá-los. No fim de seu discurso, para dar a seus filhos uma solene lição, exortou todos os de sua corte e da assembléia a viver unidos, declarando-Ihes que os filhos reinariam depois dele, a começar por Antípatro, continuando com Alexandre e Aristóbulo. Enquanto ele vivesse, porém, queria ser reconhecido como o único rei e senhor, porque, embora a idade fosse um impedimento para bem governar, ela o tornava ainda mais capacitado, quer pela longa experiência adquirida, quer pelas outras vantagens que ele tinha sobre os filhos, e assim eles e os soldados viveriam felizes enquanto obedecessem somente a ele. A assembléia, depois disso, dissolveu-se. A maior parte achou que ele havia falado bem. Alguns, porém, julgaram diferente, porque a esperança de reinar que ele dera aos filhos poderia causar entre estes muitas divergências e contestações, as quais seriam causa de grandes turbulências. CAPÍTULO 9 HERODES, DEPOIS DE CONSTRUIR CESARÉIA, CONSAGRA-A EM HONRA DE AUGUSTO E NELA PROMOVE ESPETÁCULOS DE INCRÍVEL MAGNIFICÊNCIA PARA O POVO. CONSTRÓI AINDA OUTRAS CIDADES E DIVERSOS EDIFÍCIOS. SUA EXTREMA LIBERALIDADE PARA COM OS ESTRANGEIROS E SEVERO RIGOR PARA COM OS SÚDITOS. 695. Nesse mesmo tempo, a cidade de Cesaréia, cujos alicerces tinham sido lançados havia dez anos, foi terminada, no ano vinte e oito do reinado de Herodes e na centésima nonagésima segunda Olimpíada. Ele quis celebrar a dedicação com toda a suntuosidade possível e imaginável. Mandou vir de todas as partes todos os que tinham fama de excelentes músicos, lutadores ou atletas de corridas e das outras espécies de exercícios. Reuniu um grande número de gladiadores, animais ferozes, cavalos rapidíssimos e tudo o que se usa nesses espetáculos tão apreciados pelos romanos e por outras nações. Consagrou todos esses jogos em honra de Augusto e ordenou que fossem repetidos cada cinco anos. A imperatriz Lívia quis contribuir para essa soberba festividade, em que Herodes não havia poupado despesa alguma. Mandou-lhe de Roma muitas coisas preciosas, cujo valor chegava a quinhentos talentos. Além de uma multidão enorme de povo que acorreu de toda as partes para ver tão grandiosa festa, vieram embaixadores de diversas nações, convidados por Herodes. Ele recebeu-os, alojou-os e os tratou com grande fidalguia. Dava-lhes todos os dias novos divertimentos e, quando a noite caía, reunia-os em grandes banquetes, dos quais eles não se cansavam de admirar a magnificência. Sentia tanto prazer em se distinguir que se esforçava para que o brilho das últimas ações superasse sempre o das anteriores. Afirmava-se que Augusto e Agripa disseram muitas vezes que a sua alma estava tão acima de sua coroa que ele teria merecido reinar sobre toda a Síria e todo o Egito. 696. Depois dessas festas e jogos celebrados com tanta pompa, ele construiu uma cidade no campo de Cafarbasa, num lugar em que as águas e os bosques a tornavam muito agradável. Era cercada por um rio e por uma grande floresta de árvores muito altas. Deu a essa cidade o nome de Antipátride, por causa de seu pai, Antípatro. Construiu, acima de Jerico, um castelo a que chamou Cipro, nome de sua mãe, e tornou-o tão ilustre pela força quanto pela beleza. Como não podia se esquecer de Fazael, seu irmão, a quem amara extremamente, erigiu vários e excelentes edifícios para honrar-lhe a memória. O primeiro foi uma torre em Jerusalém, que não era inferior à de Faraó. Chamou-a Fazaela, sendo uma das principais fortalezas da cidade. Construiu depois, no vale de Jerico, do lado do norte, uma cidade à qual deu o nome de Fazaela e que foi causa de que o território das redondezas, antes deserto e abandonado, fosse repovoado e recebesse também esse nome. Seria difícil enumerar os bens que Herodes proporcionou não somente a várias cidades da Síria e da Grécia, mas às de outros países por onde ele passava em suas viagens. Costumava ajudar parte delas com a construção de novas obras públicas ou fornecendo dinheiro para que concluíssem aquelas que, após começadas, haviam sido abandonadas pela falta de recursos dos moradores. Dentre as suas generosas doações, a mais digna de nota foi a do Templo de Apoio Pítio, em Rodes, que ele mandou reconstruir à sua custa, contribuindo também com vários talentos para que se restaurasse a frota da cidade. Ele também ajudou na construção de obras públicas em Nicópolis, erigida por Augusto depois da batalha de Accio. Ele ordenou ainda que se fizessem galerias dos dois lados da praça que atravessa Antioquia, importantíssima cidade, e mandou que lhe pavimentassem as ruas com pedra polida, tanto para embelezá-la quanto para a comodidade de seus habitantes. 697. Como os jogos olímpicos não correspondiam à sua fama, porque faltavam os recursos para cobrir as despesas, Herodes reservou para esse fim uma importância anual, de modo que pudessem ser celebrados, cuidando também da suntuosidade dos sacrifícios e dos ornamentos. Essa liberalidade tão extraordinária fez com que lhe concedessem a honra de superintendente perpétuo desses jogos. Alguns ficam admirados com as grandes contradições que se acham em Herodes. Quando consideramos a generosidade que ele dispensava com tanta profusão, somos obrigados a confessar que ele era caridoso por natureza. Quando se observa, no entanto, as crueldades e injustiças que ele cometia para com os seus súditos e até mesmo para com os mais próximos, não há como negar o seu gênio duro e o caráter violento e inexorável, que não conhecia limites. Embora essas qualidades sejam tão opostas que parece não poderem ser encontradas na mesma pessoa, é minha opinião que elas procedem de uma mesma causa. Como a ambição pela honra era a paixão dominante desse soberano, a glória e o desejo de merecer elogios durante toda a vida e imortalizar a sua memória levaram-no a ser tão munificente. Em contrapartida, os seus bens, por maiores que fossem, não bastavam a despesas tão desmedidas. Ele era então obrigado a tratar rudemente os seus súditos e receber assim, por meios indignos, o que a sua vaidade o levava a dissipar. Desse modo, como ele, para não empobrecer, tinha de insistir em fazer tais exações, que o tornavam odioso aos seu súditos e o impediam de conquistar-lhes o afeto, tirava então proveito desse ódio. Em vez de tentar acalmá-los, quando alguém não obedecia cegamente a tudo o que ele ordenava ou quando ele desconfiava de alguma intenção de mudança em seu governo, devido à dura servidão, ele os tratava com rigor semelhante ao que dispensaria aos piores inimigos. Não poupava nem os parentes nem aqueles a quem mais amava, porque exigia que todos lhe prestassem respeito e submissão absolutos, por mais injusto que fosse o seu governo. Não precisamos de prova melhor dessa paixão desmesurada pela glória pessoal que as honras excessivas que ele prestava a Augusto, a Agripa e aos seus amigos, pois o seu intento era mostrar, pelo exemplo, de que maneira ele gostaria de ser reverenciado. Como as nossas leis, todavia, têm por objetivo unicamente a justiça, e não a vaidade, elas não permitiam aos judeus ganhar o afeto dos príncipes levantando-lhes estátuas, consagrando-lhes Templos ou usando de bajulações para contentar a própria ambição. Essa seria a razão, julgo eu, pela qual Herodes era tão magnânimo para com os estrangeiros quanto era injusto e cruel para com os próprios súditos. CAPÍTULO 10 TESTEMUNHO DO AFETO QUE OS IMPERADORES ROMANOS TINHAM PELOS JUDEUS. 698. Nesse mesmo tempo, os judeus que moravam na Ásia e na África, aos quais os reis haviam concedido o direito de burguesia, eram maltratados pelos gregos, que desviavam o dinheiro sagrado e lhes eram contrários em todas as coisas. Então enviaram embaixadores a Augusto, de modo que se pusesse um fim àquele bárbaro tratamento que recebiam. Esse príncipe escreveu às províncias, reafirmando a manutenção daqueles privilégios, como se poderá ver pela cópia da carta que julgo bem reproduzir, a fim de mostrar a afeição dos imperadores romanos para conosco. "César Augusto, sumo sacerdote e administrador da República, ordena o que se segue. Sendo a nação dos judeus, não somente no tempo presente, mas também no passado, sempre fiel e afeiçoada ao povo romano, particularmente ao imperador César, meu pai, quando Hircano era o seu sumo sacerdote, ordenamos, com o consentimento do senado, que os judeus vivam segundo as suas leis e costumes, tal como faziam no tempo de Hircano, sumo sacerdote do Deus Altíssimo; que os seus Templos desfrutem sempre o direito de asilo; que lhes seja permitido enviar a Jerusalém o dinheiro consagrado ao serviço de Deus; que não sejam obrigados a comparecer a julgamento no dia de sábado nem na vigília do sábado, após as nove horas; que seja punido como sacrílego e tenha os seus bens confiscados em proveito do povo romano aquele que roubar os seus livros santos ou o dinheiro destinado ao serviço de Deus. E, como desejamos, em todas as ocasiões, dar provas de nossa bondade para com todos os homens, é nosso desejo que o pedido apresentado por Caio Márcio Censorino em nome do ju-deus seja colocado com a presente ordem em um lugar eminente, no Templo de Ancira, o qual toda a Ásia consagrou ao nosso nome. E seja severamente castigado aquele que ousar desobedecer a estas ordens". Vê-se também o seguinte decreto gravado sobre uma coluna no Templo de Augusto: "César, a Norbano Flacco, saudação. Seja permitido aos judeus de algumas províncias, onde eles moram, enviar dinheiro a Jerusalém, como sempre o fizeram, para ser empregado no serviço de Deus, sem que isso lhes seja impedido". Agripa escreveu também em favor dos judeus, desta maneira: "Agripa, aos magistrados, ao senado e ao povo de Éfeso, saudação. Ordenamos que a guarda e o emprego do dinheiro sagrado que os judeus da Ásia enviam a Jerusalém, segundo o costume de sua nação, fique a cargo deles, e se alguém, tendo-o roubado, recorrer aos asilos para se salvar, seja de lá tirado e entregue aos judeus, para que o façam sofrer a pena que os sacrílegos merecem". O mesmo Agripa escreveu também ao governador Silvano, para impedir que se obrigassem os judeus a comparecer a julgamento em dia de sábado. "Marcos Agripa, aos magistrados e ao senado de Cirene, saudação. Os judeus que moram em Cirene fizeram-nos queixas de que, embora Augusto tenha ordenado a Flávio, governador da Líbia, e aos oficiais dessa província que lhes dessem plena liberdade para enviar o dinheiro sagrado a Jerusalém, como sempre fizeram, há pessoas maldosas que o querem impedir, sob pretexto de alguns tributos de que os judeus lhes seriam devedores, quando na verdade não devem. A esse respeito, ordenamos que eles sejam mantidos no usufruto de seus direitos, sem que os tais lhes sejam impedidos ou dificultados, por qualquer meio. E, se em alguma cidade o dinheiro sagrado for desviado, ele deverá ser restituído aos judeus por aqueles que forem nomeados para esse fim". "Caio Norbano Flacco, procônsul, aos magistrados de Sardes, saudação. César nos ordenou, por meio de cartas, impedirmos que se perturbe a liberdade que os judeus sempre tiveram de enviar a Jerusalém, segundo o costume de sua nação, o dinheiro que eles destinam para esse fim, o que me obriga a escrever-vos esta carta, a fim de vos informar da vontade do imperador e da nossa". Júlio Antônio, procônsul, escreveu também: "Júlio Antônio, procônsul, ao senado e ao povo de Éfeso, saudação. Quando eu administrava a justiça no décimo terceiro dia de fevereiro, os judeus que moram na Ásia disseram-me que César Augusto e Agripa lhes haviam permitido enviar com toda a liberdade a Jerusalém, conforme as suas leis e costumes, as primícias que cada qual desejasse oferecer livremente a Deus, por um sentimento de piedade. Eles rogaram-me que lhes confirmasse essa graça. Por isso, conforme o desejo de Augusto e de Agripa, faço-vos saber que permito aos judeus que nisso observem os seus costumes, e que ninguém ouse impedi-los". Como sei que esta história pode cair nas mãos dos gregos, julguei dever relatar todas essas provas, para mostrar-lhes que não é de hoje que os detentores da suprema autoridade nos permitem observar os costumes de nossos antepassados e servir a Deus da maneira como ordena a nossa religião. Julgo que devo repeti-lo muito, a fim de que as nações estrangeiras percam o ódio que sem motivo nutrem contra nós. O tempo causa mudanças nos costumes de todos os povos, e quase não há cidade onde isso não aconteça. Mas a justiça deve ser igualmente reverenciada por todos os homens. Assim, as nossas leis podem ser muito úteis, não somente aos gregos, mas também aos bárbaros, o que os obriga a ter afeto por nós, pois elas são inteiramente conformes à justiça, e nós as observamos fielmente. Por isso, rogo que nos não odeiem pela nossa maneira diferente de viver, mas que, como nós, amem a virtude, pois ela deve ser comum a todos os homens. Precisamos agora retomar a nossa história. CAPÍTULO 11 O REI HERODES MANDA ABRIR O SEPULCRO DE DAVI, PARA TIRAR DINHEIRO, E DEUS O CASTIGA. DIVISÕES E PERTURBAÇÕES NA FAMÍLIA. CRUELDADE DESSE SOBERANO CAUSADA POR SUAS DESCONFIANÇAS E PELA MALÍCIA DE ANTÍPATRO. MANDA METER ALEXANDRE, SEU FILHO, NA PRISÃO. 699. As excessivas despesas feitas por Herodes dentro e fora do reino haviam esgotado as suas finanças. Ele sabia que Hircano, seu predecessor, retirara três mil talentos de prata do sepulcro de Davi e imaginava que outros lá ainda restassem, em número suficiente para cobrir todas as suas necessidades. Havia muito tempo ele desejava recorrer a esse meio, e por fim o fez. Começou por usar de todas as precauções possíveis, para impedir que o povo descobrisse o seu intento. Mandou abrir o sepulcro à noite e lá entrou acompanhado somente pelos seus amigos mais fiéis. Não encontrou dinheiro em moedas, como Hircano, porém achou muitos vasos de ouro e outras preciosas dádivas que ali haviam sido colocadas. Mandou levar tudo, no entanto isso lhe fez desejar mais. Mandou então rebuscar até mesmo no ataúde onde estava o corpo de Davi e o de Salomão. Conta-se, porém, que de lá saiu uma chama, que matou dois de seus guardas. Esse fato prodigioso assustou-o e, para expiar tal sacrilégio, ele depois mandou construir à entrada do sepulcro um soberbo monumento de mármore branco. Nicolau, que escreveu a história dessa época, faz menção desse fato, mas não diz que Herodes entrou no sepulcro, porque julgava prejudicial à imagem do rei. Em seu livro, ele tem a mesma atitude com relação a muitas outras coisas referentes a esse soberano porque, tendo escrito essa história enquanto Herodes ainda vivia, o desejo de agradá-lo levou-o a falar somente o que lhe podia redundar em glória. Assim, ele registra, com grandes elogios, os seus belos feitos, mas suprime, tanto quanto possível, os seus crimes mais notórios, ou pelo menos procura disfarçá-los. Esforça-se mesmo por desculpar, com pretextos especiosos, a crueldade para com Mariana e os filhos desta. Ele assim procede em toda a sua obra, dirigindo pomposos encômios às suas justas ações, mas principalmente fazendo apologia de suas injustiças. Quanto a mim, que tenho a honra de descender dos asmoneus e ter o meu lugar entre os sacerdotes e que não ousaria pronunciar qualquer falsidade contra eles, narro as coisas sinceramente e não creio ofender aos reis descendentes de Herodes ao preferir a verdade, a qual em certos momentos pode lhes causar desgosto. 700. Desde o dia em que Herodes violou o respeito devido à santidade dos sepulcros, a agitação em sua família aumentou cada vez mais, fosse por uma vingança do céu, o que teria tornado essa chaga ainda mais dolorosa, fosse por ocorrer num tempo em que se podia vincular a causa a esse sacrilégio. Uma guerra civil não agitaria mais uma nação que as paixões dos diversos partidos da corte desse príncipe. Parecia que cada qual desejava superar os demais em calúnias. E era Antípatro quem sobrepujava a todos em artifícios para destruir os irmãos. Fazia com que fossem acusados de falsos crimes e ocultava a sua perigosa malícia tomando-lhes muitas vezes a defesa, a fim de poder, com esse amor aparente, oprimi-los sem muita dificuldade e enganar o rei seu pai, que pensava ser ele o único a se interessar pela sua conservação. Assim, Herodes ordenou a Ptolomeu, seu principal ministro, que nada fizesse no governo sem antes comunicar a Antipatro. Dava também à mãe dele participação em todas as coisas, e Antipatro servia-se dessa influência para insuflar o ódio na mente de todos os que julgava importante tornar inimigos do rei. Alexandre e Aristóbulo, por sua vez, cujo coração correspondia à grandeza de sua origem, não podiam tolerar um tratamento tão indigno da parte daqueles que lhes eram inferiores, e as suas mulheres eram do mesmo parecer. Glafira odiava Salomé mortalmente, tanto por causa do afeto que tinha por Alexandre, seu marido, quanto por não tolerar que ela fizesse prestar à filha, que desposara Aristóbulo, as mesmas honras que a ela mesma. Feroras contribuía para essa divisão, levando Herodes a desconfiar dele e a odiá-lo, porque recusara desposar a filha deste por causa de uma serviçal a quem amava perdidamente. Esse injurioso desprezo feriu Herodes profundamente, porque nada lhe podia ser mais doloroso que ver o irmão* a quem agraciara com tantos benefícios e que era quase associado ao governo pela autoridade que lhe concedera, corresponder tão pouco ao seu afeto. E, vendo que não conseguiria afastá-lo daquela loucura, deu essa princesa em casamento ao filho de Fazael, seu irmão mais velho. Mais tarde, quando julgou que Feroras, tendo já realizado os seus desejos, se havia tornado mais razoável, fez-lhe graves censuras pela maneira ofensiva como procedera para com ele e convidou-o ao mesmo tempo a desposar Cipro, sua outra filha. Ptolomeu repreendeu Feroras, dizendo que este ofendera gravemente o irmão ao se deixar conduzir daquele modo por uma tão vergonhosa paixão, podendo por isso ser privado da boa vontade do rei para com ele, que tivera a generosidade de perdoá-lo de sua primeira falta, e provocar o seu ódio e a própria desgraça, quando devia conservar aquela amizade. Feroras, persuadido por essas razões, despediu a mulher, de quem tivera um filho, e prometeu ao rei, com juramento, não vê-la mais e desposar a princesa dentro de um mês. Chegado esse tempo, no entanto, ele esqueceu todas as promessas, retomou aquela mulher e amou-a ainda mais ardentemente que antes. Herodes, ofendido com esse proceder, não pôde reter por mais tempo a sua cólera, e com freqüência escapavam-lhe palavras que traduziam toda a sua ira. Alguns, vendo-o daquela maneira indisposto contra Feroras, incitavam-no ainda mais por meio de calúnias. Não se passava um dia, ou mesmo uma hora, em que ele não recebesse novos motivos de desgosto por aquela cisão e pelas disputas contínuas entre os parentes e as pessoas que lhe eram muito queridas. O ódio de Salomé pelos filhos de Mariana era tão grande que ela não podia tolerar que a própria filha, que havia desposado Aristóbulo, vivesse em paz com o marido. Exigia dela que lhe referisse as coisas mais secretas que o casal tinha entre si e, se acontecia entre eles alguma pequena rusga, como é natural, em vez de lhe acalmar o espírito, irritava-a ainda mais com as suspeitas que lhe despertava. Obrigava-a também a revelar o que se passava entre os dois irmãos. A jovem princesa contou-lhe que, quando eles estavam sozinhos, faziam menção à rainha Mariana e à aversão que tinham pelo pai, dizendo que, se um dia chegassem ao trono, não dariam outro emprego aos filhos que Herodes tivera das outras mulheres senão o de tabeliães nas aldeias, pois, com a educação que haviam recebido, era o cargo que estavam aptos a exercer. E, se eles vissem as mulheres de Herodes se adornando com os trajes da rainha sua mãe, dar-lhes-iam por vestes apenas cilícios e as encerrariam em lugares onde jamais veriam a luz do sol. Salomé relatava todas essas coisas a Herodes. Ele as ouvia com pesar e procurava remediá-las, porque preferia corrigir os filhos a castigá-los. Assim, embora ele se tornasse cada dia mais triste e propenso a crer no que lhe contavam, contentou-se em repreender severamente os filhos e ficou satisfeito com as suas justificativas. Porém esse mal, que parecia curado, bem depressa se manifestou muito maior. Feroras disse a Alexandre ter sabido de Salomé que o rei concebia pela princesa Glafira — esposa de Alexandre — uma paixão tão forte que era impossível controlar. Essas palavras despertaram tal ciúme no príncipe que ele passou a enxergar com maldade qualquer demonstração de afeto da parte de Herodes pela nora. O seu penar foi tão intenso que, não o podendo mais suportar, foi falar com o rei seu pai. Narrou-lhe em lágrimas o que Feroras lhe dissera. Jamais Herodes tivera surpresa maior. Ele ficou tão chocado com aquela abominável acusação que começou a lamentar profundamente a horrível malícia de seus domésticos, os quais pagavam com a ingratidão os muitos benefícios de que lhe eram devedores. Mandou imediatamente chamar Feroras e disse-lhe, encolerizado: "Sois o pior de todos os homens! É assim que reconheceis tantos favores que de mim recebestes? Como podem penetrar em vosso espírito e sair de vossa boca pensamentos e palavras tão injuriosas contra a minha reputação e tão contrárias à verdade? Bem compreendo o vosso desígnio. Não foi somente para me ofender que falastes desse modo a meu filho, mas para o induzir a me envenenar, pois qual filho, mesmo possuindo um gênio pacífico, deixaria de vingar tamanho ultraje? Ou pensais que há grande diferença entre incentivar tal ciúme em seu espírito e pôr-lhe a espada na mão, para que me mate? Qual é o vosso desígnio, fingindo amar um irmão que sempre vos quis bem, quando na verdade me tendes ódio mortal e me acusais falsamente de praticar uma ação na qual não se pode sem impiedade nem mesmo pensar? Ide-vos, ingrato, que renunciastes a todos os sentimentos de humanidade por vosso benfeitor e irmão. Sejam as recriminações de vossa consciência o vosso carrasco pelo resto de vossa vida. Quanto a mim, para vos cobrir de confusão, contentar-me-ei em confundir a vossa malícia com a minha bondade, não vos castigando como mereceis, mas vos tratando com a mansidão de que vos tornastes indigno". Feroras, não podendo se desculpar de tamanho crime, de que se havia tão claramente culpado, lançou a culpa sobre Salomé, dizendo que aquilo partira dela. Aconteceu que ela estava presente, e, como era tão fingida quanto má, afirmou altivamente que nada havia de mais falso e exclamou que parecia que todos haviam conspirado para torná-la odiosa ao rei e levá-la a perder a vida, e que a sua preocupação pelo bem-estar de Herodes diante dos perigos que o ameaçavam era motivo para que a odiassem, e Feroras mais que todos, pois fora ela a causa de que ele despedisse a mulher que mantinha. Enquanto falava, arrancava os cabelos e batia no peito, mas ninguém deu crédito ao que ela dizia. Feroras, no entanto, ficou aflitíssimo, porque não podia negar ter dito aquelas palavras a Alexandre nem provar que as ouvira de Salomé. E ambos discutiram por muito tempo: ele para acusá-la e ela para se justificar. Herodes, cansado daquela discussão, mandou-os embora, louvando o filho pela sua moderação e por haver lhe manifestado o seu penar. Como já era tarde, foi pôr-se à mesa. Ninguém deu razão a Salomé, e não se duvidava de que fora ela quem inventara aquela calúnia. As mulheres do rei, que a odiavam por causa de seu mau humor e de sua inconstância nos afetos, difamavam-na continuamente perante Herodes. 701. Obodas reinava então na Arábia. Era um príncipe preguiçoso, que só amava a ociosidade. Sileu, que era hábil, bem apessoado e em plena mocidade, governava sob a sua autoridade. Veio ele falar com o rei Herodes sobre alguns negócios e, um dia, quando estava com o rei à mesa, Salomé, que também estava presente, caiu-lhe nas suas boas graças. Sabendo que ela era viúva, propôs-lhe casamento. Como Sileu também lhe agradasse e ela já não estivesse bem afinada com o espírito do rei seu irmão, não rejeitou a proposta. As mulheres do rei logo o foram informar dessa nova amizade, acrescentando os seus próprios comentários e críticas. Ele ordenou a Feroras que os observasse, e este disse-lhe que era fácil de se julgar, pelos olhares e pelos sinais que ambos trocavam, que estavam de acordo. Então Herodes não duvidou mais, e Sileu despediu-se. Dois ou três meses depois, ele veio pedir Salomé em casamento, declarando que tal união seria muito vantajosa a Herodes, por causa do comércio de seu reino com a Arábia, pois era ele, Sileu, quem a governava de fato no presente, e o reino com certeza, no futuro, lhe pertenceria. Herodes falou com a irmã. Ela deu-lhe voluntariamente o seu consentimento, e ele disse a Sileu que podia satis-fazer-lhe o pedido, contanto que abraçasse a religião dos judeus. O árabe respondeu-lhe que não o podia fazer, porque os de sua nação o apedrejariam. E assim, desfez-se o contrato. Feroras acusou Salomé de ter pouco cuidado com a sua reputação, e as mulheres do rei diziam abertamente que ela nada havia recusado àquele estrangeiro. 702. Algum tempo depois, Herodes deixou-se vencer pela importunação de Salomé e resolveu dar em casamento ao filho que ela tivera de Costobaro a princesa sua filha que Feroras, apaixonado pela serva, recusara desposar. Mas Feroras o fez mudar de idéia, dizendo que aquele moço jamais a amaria, por causa do ressentimento que conservava pela morte de seu pai. Se ele achasse melhor, que a desse ao seu filho, que tinha também a honra de ser seu sobrinho e deveria sucedê-lo na tetrarquia. Herodes aprovou a proposta, deu cem talentos à filha, como dote, e perdoou Feroras pelas faltas passadas. 703. As perturbações na família de Herodes não cessaram. Ao contrário, aumentaram com novos fatos, vergonhosos em seu início e funestos em suas conseqüências. O soberano tinha três eunucos aos quais muito estimava, porque eram muito belos. Um era o seu mordomo, o outro, o seu camareiro e o terceiro, o principal criado de quarto. O rei servia-se deles até mesmo nos negócios mais importantes. Mas lhe contaram que Alexandre, seu filho, os havia subornado com uma grande quantia de dinheiro. Herodes interrogou-os, e eles confessaram que era verdade; todavia, negaram que ele os houvesse induzido a empreender algo contra o rei. Torturaram-nos uma segunda vez e os trataram com tanta violência que eles, não podendo mais suportar, disseram que Alexandre ainda conservava no coração o ódio que sempre tivera pelo rei seu pai e os havia exortado a abandoná-lo, pois era um homem já inútil para tudo, por causa da velhice que ele se esforçava tanto para ocultar, fazendo pentear a barba e os cabelos, e que, se quisessem unir-se a ele, prometia elevá-los aos mais altos cargos quando viesse a reinar. E isso iria acontecer muito em breve, mesmo que o seu pai não o quisesse, pois, além de o reino lhe pertencer por direito de nascimento, estava tudo preparado para que logo o assumisse, e os seus amigos estavam dispostos a fazer qualquer coisa por amor a ele. Essas palavras suscitaram terrível cólera a Herodes, causando-lhe ao mesmo tempo um angustioso temor, pois não podia tolerar que o filho tivesse ousado falar a seu respeito de modo tão ultrajoso. Ele temia ainda não poder fugir de imediato ao perigo que o ameaçava. Julgou também que não era conveniente agir às claras para resolver aquele assunto. Era preferível empregar para isso, secretamente, pessoas de sua inteira confiança. No entanto, ele desconfiava de todos e, julgando que a sua segurança dependia dessa desconfiança, suspeitava de muitos que eram inocentes. Quanto mais íntimo lhe era alguém, mais ele o julgava capaz de conspirar contra ele. Quanto aos que não lhe eram próximos, bastava alguém acusá-los para que logo os mandasse matar. As coisas chegaram a tal ponto que os seus criados, convencidos de que só se poderiam salvar arruinando os outros por meio de calúnias, passaram a acusar os companheiros. Mas eram, por sua vez, acusados por outros, e assim recebiam também um justo castigo, sofrendo as mesmas penas que haviam causado aos inocentes e caindo em ciladas semelhantes às que preparavam para os outros. Herodes logo se arrependia de supliciar pessoas que não haviam cometido crime algum, mas isso não o impedia de insistir na prática dessa injustiça. Ele se contentava em impor aos delatores os mesmos suplícios sofridos pelos que haviam sido falsamente acusados por eles. Esse deplorável estado de coisas em que se encontrava a corte do soberano chegou a tal ponto que ele proibiu de comparecer à sua presença e de entrar no palácio vários dentre os que ele mais amava ou estimava por merecimento. Andrômaco e Gamelo estavam nesse número. Eram seus amigos de longa data e lhe haviam prestado grandes serviços com os seus conselhos e embaixadas nos mais importantes negócios do reino. Haviam cuidado da educação dos príncipes, e em ninguém tinha ele mais confiança. Mas ele afastou Andrômaco, porque o príncipe Alexandre era muito achegado a Demétrio, filho daquele, e a causa da aversão por Gamelo foi o afeto que ele nutria por esse mesmo príncipe, que fora seu discípulo e o acompanhara na viagem a Roma. Herodes com certeza os trataria mais rudemente se não lhes conhecesse os méritos, que eram notórios. Por isso, contentou-se em afastá-los e em lhes tirar toda a autoridade, a fim de que, não vivendo mais em sua presença, pudesse agir com inteira liberdade. Antipatro era a causa principal de todos esses males, pois, quando viu que o rei se deixava transportar facilmente a tantos temores e suspeitas, retomou com mais crueldade os seus propósitos anteriores, sugerindo-lhe, como se lhe prestasse um grande serviço, que mandasse matar todos os que estavam em condições de lhe resistir. Assim, Herodes, depois do afastamento de Andrômaco e de outros que lhe poderiam falar com liberdade, fez torturar os que eram fiéis a Alexandre, para obrigá-los a confessar qualquer participação em alguma conspiração contra o rei. Eles morriam nos tormentos afirmando que eram inocentes, mas isso o fazia obstinar-se ainda mais em torturar os suspeitos. E Antipatro era tão mau, que dizia que eles eram impedidos de confessar a verdade por causa de sua extrema fidelidade para com Alexandre. Com isso, um grande número de pessoas foi submetido a tormentos, a fim de se extrair delas o que o rei desejava saber. Um deles, sucumbindo ante a violência da dor, afirmou que ouvira Alexandre dizer diversas vezes, quando lhe louvavam a grandeza e a beleza do porte e a habilidade em atirar com o arco e em todas as outras espécies de exercícios, que tais virtudes, recebidas da natureza, eram mais desgraças que favores, porque causavam inveja ao rei seu pai, pois quando o acompanhava, era obrigado a se curvar para não parecer mais alto que ele e quando ia à caça, devia atirar mal, de propósito, porque o rei não podia tolerar que o louvassem. Quando ouviram o homem falar desse modo, deixaram de o atormentar, e ele, sentindo-se aliviado, acrescentou que Aristóbulo conspirava com o irmão para matar o rei quando este fosse à caça e que, se o plano fosse executado sem empecilhos, eles fugiram e iriam a Roma reivindicar o reino. Encontraram também cartas desse príncipe ao irmão, nas quais se queixava de Herodes haver concedido a Antipatro terras que podiam render anualmente duzentos talentos. Tudo isso fez Herodes crer que já havia o suficiente para um justo motivo de desconfiança dos filhos. 704. Irritou-se então novamente contra Alexandre e o encerrou na prisão. Mas ele não estava convencido de todas aquelas acusações contra os príncipes, pois, ainda que ousassem atentar contra a sua vida, não havia probabilidade de que lhes tivesse ocorrido a idéia de ir a Roma após cometerem semelhante crime. Parecia-lhe mais verossímil ser aquilo fruto do descontentamento dos moços, pois possuíam uma grande ambição e tinham inveja de Antípatro. Assim, querendo maiores provas, para achá-los culpados e evitar que o acusassem de haver levianamente mandado prender o filho, mandou que se torturassem os principais amigos do príncipe e ordenou a morte de outros, ainda que nada tivessem confessado. A corte estava tão agitada e cheia de terror, que alguém anunciou que Alexandre havia preparado veneno em Asquelom e depois escrevera aos seus amigos em Roma para que comunicassem a Augusto que descobrira um plano contra ele: o rei seu pai deixara o partido dos romanos para unir-se a Mitridates, rei dos partos. Herodes prestou fé a essas acusações, e não faltaram aduladores que, para consolá-lo no seu sofrimento, diziam que era muito justo tudo o que ele havia feito. Todavia, por mais indagações que ele fizesse, esse pretenso veneno nunca foi encontrado. Alexandre, embora amargurado por tantos males, não se deixou abater. Manifestou mais coragem do que nunca em sua infelicidade: não se dignava defender-se. Em vez de se justificar, falava de uma maneira que irritava ainda mais o rei, de um lado cobrindo-o de confusão, pois deixava transparecer que era facilmente enganado pelas calúnias, e de outro pondo-o em amargura e o colocando em sérias dificuldades, caso prestasse fé ao que o filho dizia. Escreveu-lhe quatro cartas nas quais dizia que era inútil torturar tantas pessoas para saber se conspiravam contra ele, pois isso era coisa certa. Os seus amigos mais fiéis tomavam parte naquela conspiração, até mesmo Feroras. A própria Salomé viera, secretamente, à noite, deitar-se em seu leito. Assim, todos pensavam unicamente em tirá-lo deste mundo para depois viver com tranqüilidade. Por meio delas, apontava até mesmo a cumplicidade de Ptolomeu e Sapínio, em quem Herodes depositava toda a confiança. Parecia que todos estavam dominados pela raiva e que aqueles que outrora eram os melhores amigos se haviam tornado inimigos mortais. Não se escutavam as justificativas dos acusados, não se procurava esclarecer a verdade. O suplício precedia o julgamento, e a prisão de uns, a morte de outros e o desespero daqueles que não esperavam melhor tratamento enchiam o palácio de tal temor que não restava sequer um pequeno indício da felicidade passada. O próprio Herodes, em meio a tão grande perturbação, enfadara-se da vida. O temor contínuo pela sua vida e o desprazer de não poder confiar em ninguém mantinham-no em cruel e incessante tormento. Assim, como ele noite e dia não pensava em outra coisa, imaginava freqüentemente ver o filho vir a ele de espada em punho para matá-lo, e pouco faltou para que esse terror, que o agitava continuamente, não o fizesse perder o juízo. CAPÍTULO 12 ARQUELAU, REI DA CAPADÓCIA, RECONDUZ O PRÍNCIPE ALEXANDRE, SEU GENRO, ÀS BOAS GRAÇAS DE HERODES. 705. Quando Arqueiau, rei da Capadócia, soube que as coisas haviam chegado a esse extremo, o afeto pela filha e pelo príncipe Alexandre, seu genro, bem como a compaixão por ver Herodes, seu amigo, em tão deplorável estado, levaram-no a procurá-lo. Ele viu com os próprios olhos que o que lhe haviam relatado era verdade, mas julgou inconveniente censurar Herodes por haver acreditado em tudo e se guiado pela paixão, para não o irritar ainda mais, obrigando-o a se justificar. Como era muito sensato, tomou um caminho contrário para lhe acalmar o espírito. Disse-lhe que também estava muito irritado com o genro e aprovava o castigo que Herodes lhe aplicara. Afirmou ainda que estava pronto, se ele quisesse, a romper o casamento, retomar a filha e ainda castigá-la, se descobrisse que ela sabia da falta do marido e não tinha avisado o rei. Herodes ficou surpreso ao ver Arqueiau defendê-lo com tanto ardor, mostrando-se ainda mais irritado com Alexandre do que ele. Sentiu então amortecer o fogo de sua cólera e mostrou-se disposto a agir com plena justiça nesse particular. Retomou pouco a pouco pelo filho os sentimentos de ternura que a natureza depositou no coração dos pais. Antes não podia tolerar que alguém desculpasse o jovem, mas quando viu que Arqueiau, longe de absolvê-lo, ainda o acusava, ficou tão comovido que não pôde reter as lágrimas. Rogou-lhe que não se deixasse levar pelo desgosto para com o genro e não rompesse o casamento. Arqueiau, vendo-o mais calmo, começou a refutar as acusações feitas contra Alexandre, dizendo que com certeza foram os amigos do rei que, com o seu comportamento, lhe corromperam o espírito, tão desprovido de malícia, principalmente Feroras. Feroras, que já caíra no desagrado do rei de modo a não conseguir a reconciliação, julgou, ao saber disso, que ninguém, a não ser Arqueiau, seria capaz de reintegrá-lo às boas graças de Herodes. Então veio procurá-lo com vestes de luto e todos os outros sinais de dor que pode apresentar um homem que se crê à beira do abismo. Esse rei, tão prudente, julgou que podia aproveitara ocasião. Disse-lhe que o que ele desejava não era fácil, e o melhor conselho que lhe podia dar era que ele mesmo fosse procurar o rei seu irmão, confessasse ter sido causa de todo o mal e lhe pedisse perdão. Depois disso, se ele estivesse disposto a permitir que falassem em seu favor, tentaria prestar-lhe o auxílio que estava pedindo. Feroras seguiu o conselho e saiu-se tão bem que voltou às boas graças do rei. Alexandre, superando todas as expectativas, foi justificado de todos os crimes que lhe imputavam. Arqueiau, após restituir a paz a todos com o seu excelente modo de agir, conquistou o coração de Herodes, que começou a considerá-lo um de seus maiores amigos. Deu-lhe ricos presentes e, lembrando que escrevera a Augusto relatando o seu descontentamento com os filhos, julgou-se obrigado a lhe prestar contas do que se havia passado. Os dois reis decidiram que Herodes deveria ir a Roma para informá-lo de tudo. Arqueiau retornou em seguida para o seu reino. Herodes acompanhou-o até Antioquia e, depois de conversar com Tito, governador da Síria, voltou à Judéia. CAPÍTULO 13 HERODES INICIA UMA GUERRA CONTRA OS ÁRABES POR CAUSA DA PROTEÇÃO DESTES AOS LADRÕES DE TRACONITES. 706. Herodes, nesse mesmo tempo, viu-se obrigado a entrarem guerra com os árabes pelo motivo que passo a expor. Depois que Augusto tirou Traconites de Zenodoro para entregá-la a Herodes, os seus habitantes, não ousando continuar os assaltos que costumavam fazer, foram obrigados a se ocupar com o cultivo da terra. Embora esse trabalho fosse contrário à sua inclinação e a terra fosse muito estéril, de modo que pouco proveito dela tiravam, a vigilância de Herodes os impediu, durante algum tempo, de molestar os vizinhos, e nisso ele mereceu muitos elogios. Mas quando viajou a Roma para acusar Alexandre perante Augusto e recomendar-lhe Antípatro, correu a notícia de que ele havia morrido, e então eles retomaram o hábito de roubar os povos vizinhos, mas foram castigados pelos comandantes das tropas de Herodes. Os principais desses ladrões, surpresos com os infelizes resultados, fugiram para a Arábia, onde Sileu, irritado por Herodes lhe haver recusado a irmã, recebeu-os e deu-lhes asilo em um lugar defendido, de onde saíam para realizar assaltos na Judéia e na Baixa Síria e devastar os campos. Herodes, ao regressar de Roma, não conseguindo castigá-los como mereciam, porque eram protegidos pelos árabes, mas também não podendo admitir que tratassem daquele modo os seus súditos, entrou em Traconites e matou todos os que tinham parentesco com eles. Os outros ficaram furiosos e, obrigados por uma de suas leis, que os manda vingar a morte dos parentes, passaram a devastar, com impunidade, tudo o que encontravam nos domínios de Herodes, que então se dirigiu a Saturnino e a Volúmnio, constituídos por Augusto governadores daquelas províncias, pedindo-lhes que os castigassem. Essa queixa, todavia, em vez de atemorizar os ladrões, encolerizou-os ainda mais. Então, reuniram-se em grande número, cerca de mil homens, e intensificaram as incursões aos campos e aldeias, sem poupar nem um sequer dos que lhes caíam nas mãos. Já não se tratava mais de roubo ou depredação, mas de uma verdadeira guerra. Herodes pediu então insistentemente aos árabes que lhe entregassem aqueles ladrões e pagassem os seiscentos talentos que ele havia emprestado ao rei Obodas, por meio de Sileu, pois o prazo para o pagamento já se esgotara. Mas Sileu, que expulsara Obodas e se apoderara do reino, adiava sempre o reembolso e afirmava que os ladrões não se haviam retirado para a Arábia. Por fim, Saturnino e Volúmnio ordenaram-lhe que efetuasse o pagamento dentro de trinta dias e que cada qual entregasse os trânsfugas que estivesse acolhendo. Viu-se então a malícia dos árabes, pois não se encontrou ninguém dessa nação nas terras de Herodes, enquanto os ladrões se haviam retirado todos para a Arábia. CAPÍTULO 14 SILEU RECUSA-SE A CUMPRIR AS ORDENS DOS GOVERNADORES CONSTITUÍDOS POR AUGUSTO E VAI PROCURÁ-LO EM ROMA. HERODES ENTRA ARMADO NA ARÁBIA E TOMA O CASTELO EM QUE OS LADRÕES SE HAVIAM REFUGIADO. 707. Sileu recusou-se a fazer o que lhe havia sido ordenado e foi a Roma procurar Augusto. Herodes, então, entrou com um exército na Arábia. Marchou com tanta rapidez que percorreu em três dias de caminho o que se costuma fazer em sete e atacou os ladrões no castelo de Repta, para onde eles se haviam retirado. Ele tomou e destruiu o lugar, mas não causou nenhum mal aos habitantes do país. Nacebe, general das tropas dos árabes, marchou contra os soldados de Herodes, mas foi morto no combate, com vinte e cinco de seus homens. Os outros fugiram, e Herodes não perdeu nenhum homem. Assim, tendo castigado os ladrões, ele enviou três mil idumeus para Traconites, a fim de impedir que os assaltos continuassem, e escreveu aos chefes das tropas romanas na Fenícia, contando o que se havia passado e como se limitara a valer-se do poder que lhe fora concedido, sem nada mais empreender. Eles se informaram e constataram que era verdade. CAPÍTULO 15 SILEU INDISPÕE DE TAL MODO AUGUSTO COM HERODES QUE O IMPERADOR SE RECUSA A RECEBER OS SEUS EMBAIXADORES. NEGA-SE TAMBÉM A ESCUTAR OS EMBAIXADORES DEARETAS, REI DOS ÁRABES, QUE SUCEDERA A OBODAS, O QUAL SILEU MANDARA ENVENENAR PARA SE APODERAR DO REINO. HERODES ENVIA UMA TERCEIRA EMBAIXADA A AUGUSTO. 708. Os árabes enviaram com urgência emissários a Roma para contar a Sileu, de forma distorcida, o que acontecera. Quando lhe deram a notícia, ele passeava diante do palácio de Augusto, que já o conhecia. Tomou então uma veste de luto e foi procurar o imperador. Unindo lágrimas às queixas, contou-lhe que Herodes havia entrado com armas na Arábia e a destruíra completamente, matando dois mil e quinhentos dos principais dentre os árabes e Nacebe, seu parente, amigo e general do exército. Disse também que ele havia roubado grandes riquezas no castelo de Repta e que o desprezo de Herodes por Obodas — cuja negligência fora tão grande que nem se havia preparado para a guerra, faltando-lhe ainda um bom chefe —, na sua ausência, o havia levado a empreender uma guerra injusta. Acrescentou que, se não confiasse nos cuidados do imperador em manter todas as províncias em paz, não teria deixado o seu país para vir a Roma e, se lá tivesse ficado, jamais permitiria que Herodes saísse vencedor naquela guerra. Augusto, impressionado com essas palavras, limitou-se a indagar de alguns amigos de Herodes e uns romanos recém-chegados da Síria se era verdade que aquele príncipe havia entrado com armas na Arábia. E, como não podiam negá-lo, não se informou o motivo que a isso o havia obrigado. César ficou muito encolerizado e escreveu a Herodes uma carta cheia de ameaças, que dizia, entre outras coisas, que até então ele o considerara um amigo, mas que dali em diante o trataria como súdito. Sileu, por sua vez, escreveu à Arábia, do modo como bem se pode imaginar, e as suas cartas levantaram tanto o ânimo daquela nação que, vendo eles o imperador irritado contra Herodes, não restituíram os fugitivos e não pagaram o que deviam nem o que era de direito pelas pastagens que haviam arrendado. Os habitantes de Traconites também se aproveitaram da ocasião: rebelaram-se contra as guarnições iduméias enviadas por Herodes, uniram-se a outros ladrões árabes e saquearam o país, causando muitos outros males, não tanto para se aproveitar deles quanto pelo desejo de vingança. Herodes foi obrigado a suportá-los, porque nada ousava empreender, ao ver que Augusto, de tão enfurecido contra ele, nem se dignara escutar os primeiros embaixadores que lhe enviara, tampouco dar uma resposta aos que foram em seguida. A presença de Sileu em Roma aumentava ainda mais a angústia de Herodes, pois sabia que estavam dando crédito às palavras daquele impostor e que ele aspirava à coroa da Arábia. O rei Obodas morrera por aquele tempo, e Enéias, cognominado Aretas, o substituiu. Sileu valia-se de todas as calúnias que podia para forçar a sua destituição e usurpar o trono. Para isso, agradava com valiosos presentes os que desfrutavam prestígio perante Augusto, prometendo muitos mais ao imperador, esperando que ele os recebesse tão favoravelmente quanto estava indignado com Aretas, que se atrevera a apoderar-se do reino sem lhe pedir permissão. Esse novo rei, por fim, escreveu a Augusto e enviou-lhe, entre outros presentes, uma coroa de ouro de grande valor. Nas suas cartas, ele acusava Sileu de ser um pérfido, que envenenara o rei Obodas, seu senhor, e lhe usurpara o governo quando ele ainda vivia e que havia abusado insolentemente das mulheres dos árabes e emprestado grandes somas para abrir caminho à tirania. Mas Augusto não quis receber os presentes nem ouvir os embaixadores, e os despediu sem resposta. Assim, as coisas se indispunham cada vez mais entre os judeus e os árabes, e não havia ninguém capaz de apaziguar tamanha divergência. Aretas ainda não se havia consolidado no novo reino para poder reprimir as insolências de seus súditos, e Herodes, temeroso de irritar ainda mais o imperador, caso repelisse as injúrias que lhe faziam, era obrigado a suportá-los. Nessa aflição em se encontrava, resolveu enviar uma terceira embaixada para tentar, por intermédio de amigos, apaziguar os ânimos de César, e para isso escolheu Nicolau de Damasco. CAPÍTULO 16 HERODES, MAIS IRRITADO DO QUE NUNCA CONTRA ALEXANDRE E ARISTOBULO, POR CAUSA DE SUAS CALÚNIAS, MANDA-OS PARA A PRISÃO. AUGUSTO RECONHECE A MALDADE DE SILEU E O CONDENA À MORTE. CONFIRMA ARETAS NO REINO DA ARÁBIA E LASTIMA TER SE IRRITADO CONTRA HERODES. ACONSELHA-O A REUNIR UMA GRANDE ASSEMBLÉIA EM BERITO E LÁ JULGAR OS FILHOS. 709. A agitação na família de Herodes aumentava, pelo crescente ódio deste contra Alexandre e Aristobulo, seus filhos. A desconfiança, que é um mal muito perigoso para os reis, não tinha fim e fortaleceu-se ainda mais por este fato: um certo Euriclés, lacedemônio, nobre de nascimento, muito perverso, grande bajulador e extremamente astucioso, que usava de todos os meios para parecer o que de fato não era, veio procurar Herodes com presentes, recebendo também outros maiores. Ele se insinuou de tal modo nas boas graças do rei que este o recebeu no número dos seus principais amigos. Indo morar em casa de Antípatro, introduziu-se também na vida íntima de Alexandre e lhe fez crer que o rei Arqueriau, seu sogro, tinha um afeto particular por ele e lhe faria qualquer favor em consideração à princesa Glafira, sua filha. Como ele era bem recebido por toda parte e não demonstrava tendência a nenhum partido, era fácil para ele observar o que se dizia e disso se servir para caluniar quem quisesse, pois havia conquistado a todos de tal modo que cada qual julgava tê-lo por único amigo e que era apenas para servi-lo em seus interesses que mantinha relacionamento com os outros. Alexandre, que tinha pouca experiência, facilmente deixou-se envolver, a ponto não confiar em mais ninguém senão nele. Assim, o jovem príncipe abriu-lhe o coração e manifestou a sua dor pela distância que o rei seu pai mantinha dele e pela morte da rainha sua mãe. Queixou-se também de que Antipatro sozinho desfrutava todas as honras que o irmão e ele podiam pleitear e tinha poder sobre todas as coisas. Por fim, confessou que não podia mais suportar o excessivo ódio do pai contra ele e Aristobulo, que por isso não mais se dignava convidá-los para os banquetes e nem mesmo lhes dirigia a palavra. Esse traidor referiu tudo a Antipatro, dizendo que os favores que lhe devia o levavam a avisá-lo do perigo que o ameaçava, a fim de que ele ficasse alerta, pois Alexandre não dissimulava que podia passar das palavras aos fatos. Antipatro recebeu esse aviso com grandes demonstrações de gratidão para com Euriclés, deu-lhe ricos presentes e o incitou a dizer a mesma coisa ao rei. Ele o fez, e Herodes facilmente acreditou nas palavras ambíguas de que esse infeliz se servia para fazer aumentar as suspeitas e desconfianças. O ódio do rei por Alexandre tornou-se irreconciliável, e ele deu cinqüenta talentos a Euriclés. O traidor foi imediatamente procurar o rei Arquelau para elogiar o príncipe seu genro, dizendo que ele fora muito feliz em contribuir para a conciliação entre pai e filho. Deu ainda grandes presentes a Arquelau e voltou à Lacedemônia antes que pudessem descobrir as suas intrigas. Porém, como em seu país não vivia com mais probidade que entre os estrangeiros, foi expulso e mandado para o exílio. 710. Herodes já não se contentava, como antes, em prestar fé às calúnias que levantavam contra Alexandre e Aristobulo. O seu ódio por eles era tão grande que, ainda que pessoalmente não os acusasse, não deixava de os fazer vigiar e dava inteira liberdade para que falassem contra eles. E, como não escutava outra coisa com melhor disposição, contaram-lhe, entre outras histórias, que um certo Varate, de Cós, havia elaborado um plano de comum acordo com Alexandre. 711. Além dessas contínuas calúnias, que tantos levantavam tão obstinadamente contra os dois príncipes perante o rei, sob pretexto de cuidado pela sua conservação, aconteceu ainda um outro fato, que o prejudicou mais que todas as outras coisas. Entre os guardas de Herodes havia dois, chamados Jucundo e Tirano, aos quais ele muito estimava, por causa de sua estatura e força extraordinárias. Mas, por algum desprazer que lhe causaram, acabou afastando-os. Alexandre os recebeu em sua companhia de guardas e, como eram homens de muita habilidade nos exercícios, ele os agraciava com ouro e muitos presentes. O rei, logo que o soube, passou a suspeitar deles e mandou torturá-los. Eles suportaram o castigo durante longo tempo, mas por fim, não podendo resistir a tantas dores, confessaram que Alexandre os havia solicitado para matar o rei quando ele fosse a caça e lhes havia dito que seria fácil fazer acreditar que ele morrera vítima de suas próprias armas, caindo do cavalo, pois, algum tempo antes, pouco havia faltado para que aquilo lhe acontecesse de verdade. Acrescentaram que encontrariam dinheiro escondido na estrebaria do príncipe e acusaram o monteiro-mor de lhes ter dado, por ordem de Alexandre e de alguns que estavam sob o comando do príncipe, os dardos de que o rei se servia nas caçadas. 712. Herodes mandou também prender e torturar o governador de Alexandriom, porque o acusavam de haver prometido aos dois príncipes que os receberia e lhes entregaria o dinheiro que Herodes lá fazia conservar. Ele nada confessou, mas o seu filho disse que era verdade e trouxe algumas cartas, que pareciam escritas por Alexandre e diziam: "Logo que tivermos feito, com a ajuda de Deus, o que deliberamos, iremos procurá-lo e não duvidamos de que nos recebereis em vossa fortaleza, como me prometestes". Herodes, depois de ler as cartas, não duvidou mais de que seus filhos atentariam contra a sua vida. Mas Alexandre afirmou que o secretário Diofante havia falsificado a sua assinatura por ordem de Antipatro, que era o autor de toda a maldade. Diofante era deveras um grande falsificador e já havia sido castigado por um crime semelhante. 713. Herodes, que então estava em Jerico, mandou apresentar em público os que haviam sido torturados e tinham acusado os seus filhos. O povo os matou a pedradas e queria também apedrejar Alexandre. Mas Herodes destacou Ptolomeu e Feroras para impedi-lo e depois mandou-o para a prisão, juntamente com Aristóbulo. Eles eram rigorosamente vigiados, tanto que ninguém podia aproximar-se deles, e não somente se observavam as suas ações, mas até as mínimas palavras. Assim, já eram considerados mortos. Eles mesmos também assim pensavam. 714. Aristóbulo, para induzir Salomé, que era ao mesmo tempo sua tia e sua sogra, a ter compaixão de sua infelicidade e a conceber ódio pelo seu verdadeiro autor, disse-lhe: "Julgais vós mesma que estais em segurança depois de terem dito ao rei que é a esperança de desposar Sileu que vos faz avisá-lo de tudo o que se passa no reino?" Ela repetiu imediatamente essas palavras a Herodes. Ele ficou tão furioso que, não se podendo mais se conter, ordenou que atassem os dois irmãos em separado e os obrigassem a declarar por escrito tudo o que se havia passado naquele empreendimento contra ele. Em obediência à ordem, eles fizeram a declaração. Diziam que jamais haviam pensado em trair ou conspirar contra o rei, mas que pretendiam fugir, e que por causa do sofrimento que experimentavam a vida se lhes tornara incerta e tediosa. 715. Nesse mesmo tempo, Arquelau enviou como embaixador à Judéia um dos maiorais de sua corte, de nome Mela. Herodes, para mostrar que tinha grandes motivos de queixa contra Arquelau, mandou buscar Alexandre na prisão e perguntou-lhe na sua presença como e para que lugar ele havia deliberado fugir. Ele respondeu que iria procurar o rei seu sogro, o qual havia prometido mandá-lo a Roma, mas que não tivera a menor intenção de empreender algo contra o rei seu pai, que não havia uma só palavra verdadeira em tudo o que fora dito contra ele, que desejara que Tirano e seus companheiros tivessem sido mais particularmente interrogados e que, para impedir, pela morte deles, que se pudesse conhecer a verdade, Antípatro havia ordenado a alguns dos seus partidários que incitassem o povo a apedrejá-los. Em seguida, Herodes mandou que levassem no mesmo instante Alexandre e Mela à princesa Glafira e perguntassem diante deles se ela não sabia da conspiração contra ele. Quando a princesa viu o príncipe seu marido em cadeias, foi tomada de tão viva dor que dava pancadas na cabeça e fazia retinir o ar com os seus gemidos e soluços. Alexandre, por seu lado, derramava lágrimas. Esse triste espetáculo causou compaixão a todos os presentes, que ficaram muito tempo sem proferir uma só palavra e sem um único movimento. Por fim, Ptolomeu, a quem fora entregue a guarda do príncipe, ordenou a Alexandre que declarasse se a princesa sua esposa tinha ou não conhecimento dos seus atos. Ele respondeu: "Como não o saberia, se a amo mais que a minha vida e se ela me deu filhos que me são tão caros?" Ela então tomou a palavra e disse que estava inocente, mas que, se uma confissão de culpa pudesse contribuir para a salvação do marido, estava disposta a declarar-se culpada, por maiores que fossem os males que lhe pudessem acontecer. Alexandre disse-lhe em seguida: "É verdade que nem vós nem eu fizemos qualquer coisa de tudo o que nos acusam. Mas não ignorais que havíamos resolvido nos retirar para junto do rei vosso pai, para de lá irmos a Roma". Ela disse que sim, e Herodes julgou não ter mais necessidade de outra prova da má vontade de Arquelau. Enviou imediatamente Olímpio e Volúmnio até ele a fim de se queixarem de sua participação no mau desígnio dos filhos. Ordenou a esses enviados que desembarcassem em Eluza, que é uma cidade da Cilícia, e, depois de entregar as cartas, passassem além, para ir a Roma. Ou, caso soubessem que Nicolau fora bem-sucedido na sua embaixada, apresentassem a Augusto as cartas que então lhe escrevia e as memórias, para mostrar que seus filhos eram culpados. Arquelau respondeu que verdadeiramente prometera a Alexandre e a Aristóbulo recebê-los, porque julgava que aquilo lhes seria vantajoso, bem como ao rei seu pai, que teria podido com simples suspeitas deixar-se levar pela cólera, mas que não tinha nenhuma intenção de enviá-los a Roma nem de os conservar indispostos contra ele. 716. Olímpio e Volúmnio, chegando a Roma, não encontraram dificuldade para entregar as cartas a Augusto, porque Nicolau conseguira, pela maneira como vou dizer, tudo o que Herodes desejava. Sabedor de que havia divisão entre os árabes e informado por alguns deles dos crimes cometidos por Sileu e que os mesmos árabes estavam dispostos a ajudá-lo nas acusações e podiam provar, por meio de algumas cartas que haviam sido interceptadas, que Sileu mandara matar vários parentes do rei Obodas, Nicolau julgou ser aquela a ocasião mais propícia para reconduzir o seu senhor às boas graças de Augusto. Era muito melhor que combater com argumentos a grande aversão que o imperador demonstrava estar sentindo por aquele soberano, pois, se começasse por acusar Sileu, poderia encontrar uma oportunidade favorável para justificar Herodes. Quando chegou o dia de pleitear a causa diante de Augusto, Nicolau, ajudado pelos embaixadores do rei Aretas, acusou fortemente Sileu de haver matado o rei Obodas, seu senhor, e vários árabes, de pedir dinheiro emprestado para empregá-lo em perturbar a ordem do Estado e de cometer diversos adultérios, não somente na Arábia, mas também em Roma. E acrescentou que, além de todos esses crimes, ele ousara enganar o imperador com mentiras e falsidades, acusando Herodes de diversas coisas, das quais nem sequer uma era verdadeira. A essas palavras, Augusto o interrompeu. Ordenou que esquecesse o resto e declarasse se era verdade que Herodes havia entrado com um exército na Arábia, matado dois mil e quinhentos homens, levado um grande número de prisioneiros e saqueado o país. Nicolau garantiu-lhe que todas aquelas coisas eram pura invenção e que Herodes nada fizera que pudesse desagradá-lo. Augusto, surpreendido com essa resposta, continuou a escutá-lo, com maior atenção ainda, e ele disse que Herodes havia emprestado quinhentos talentos* e que o termo do empréstimo dizia expressamente que, se o tempo marcado para a restituição fosse ultrapassado, ele poderia reaver o dinheiro confiscando parte do país. E assim, não se podia dar o nome de exército aos soldados de que ele fora obrigado a se servir para esse fim. Eram apenas tropas executando uma ação judiciária. Disse também que a moderação de Herodes fora tamanha que, embora pudesse agir por si mesmo, pois estava fundado em seu direito, ele preferiu falar antes com Saturnino e Volúmnio, governadores da Síria; que Sileu, depois disso, jurara na presença deles, na cidade de Berito, pela saúde de César, pagar aquela soma em trinta dias e restituir os trânsfugas; que, tendo Sileu faltado à palavra, Herodes voltou a procurar esses mesmos governadores; que eles lhe permitiram usar do direito que lhe cabia, ou seja, de receber aquele pagamento pelas armas; e que fora esse o motivo de sua incursão na Arábia. Ele acrescentou: "Foi isso, ó poderoso príncipe, que eles chamaram guerra, e da qual se fala com tanto exagero. Mas como dar o nome de guerra ao que se fez com a permissão de vossos governadores, em virtude de uma obrigação e após tão grande perjúrio, pelo qual não se teve receio de violar o respeito devido aos deuses e ao vosso nome? Devo agora justificar o que se refere aos prisioneiros que Herodes levou consigo, e não me será difícil fazê-lo. Os ladrões que moravam em Traconites, que eram menos de quarenta no início, mas que depois tiveram o seu número aumentado, temendo que Herodes os castigasse, fugiram para a Arábia, onde Sileu não somente os recebeu como também, para praticar maldades por meio deles, lhes deu terras e compartilhava com eles o produto dos roubos, sem temor de violar o juramento que fizera de entregar esses criminosos a Herodes com o dinheiro que lhe era devido. Assim, como poderia ele provar que Herodes fizera outros prisioneiros além dos da Arábia, dos quais uma parte ainda escapou? Já houve, acaso, maior impostura? Mas esta não é menor, se não a sobrepujar ainda. Disseram-vos que Herodes havia matado dois mil e quinhentos homens, mas vos afirmo que nenhum de seus homens pôs mão à espada a não ser depois que Nacebe, com as forças que comandava, os atacou e matou alguns. Mas ele próprio depois foi morto, com vinte e cinco outros árabes. Vedes assim, ó poderoso príncipe, que esse número foi, por um estranho cálculo, multiplicado até dois mil e quinhentos". Essas palavras comoveram Augusto tão fortemente que ele, encolerizado, voltando-se para Sileu, perguntou-lhe quantos árabes haviam sido mortos naquele combate. Ele disse, não sabendo o que responder, que se enganara no número. Leram-se em seguida as cláusulas da obrigação do empréstimo, as ordens do governador e as cartas das cidades que se queixavam daqueles ladrões. Então Augusto, plenamente informado do assunto, ficou sentido por se haver deixado levar pelas mentiras daquele impostor e por escrever tão rudemente a Herodes. Então condenou Sileu à morte, censurando-o por suas calúnias, pois haviam sido a causa daquela indisposição contra o seu amigo. Ordenou depois que ele fosse reconduzido à Arábia, para acertar-se com os credores antes de ser executado. Quanto a Aretas, não conseguia perdoá-lo pelo fato de ele haver se apoderado do reino sem a sua licença. Ele desejava entregar a Arábia a Herodes, mas as cartas deste o fizeram mudar de idéia, porque, não contendo elas outra coisa senão acusações contra os próprios filhos, julgou não ser conveniente acrescentar os cuidados de um outro reino a um velho afligido por tantas amarguras domésticas. Assim, permitiu aos embaixadores de Aretas que viessem saudá-lo e, depois de repreender severamente aquele rei pelo atrevimento de colocar a coroa na própria cabeça sem a ter recebido de suas mãos, aceitou os presentes e confirmou-o no reino. Escreveu depois a Herodes, lastimando que os filhos lhe causassem tanta dor. E, se eles eram tão desnaturados a ponto de tramar contra a sua vida, era justo tratá-los como parricidas, e assim, sobre esse assunto, dava-lhe plena liberdade. Todavia, se o único desígnio deles era fugir, a piedade paterna o obrigava a se contentar com um ligeiro castigo. Por fim, aconselhava-o a reunir uma assembléia em Berito, onde havia um grande número de romanos, a fim de que lá, com os governadores das províncias vizinhas, Arquelau, rei da Capadocia, e outras pessoas de sua confiança, tanto por sua posição quanto pelo afeto que lhe dedicavam, decidisse esse assunto. ________________________ * Não parece, pelo que precede, que Herodes tenha emprestado tão grande soma. CAPÍTULO 17 HERODES ACUSA ALEXANDRE E ARISTÓBULO NUMA GRANDE ASSEMBLÉIA REUNIDA EM BERITO E OS CONDENA À MORTE. 717. Essa carta de Augusto deu grande alegria a Herodes, tanto por lhe mostrar que estavam reconciliados quanto pela inteira liberdade que lhe concedia para agir com os filhos. Não sei como chegou a tal excesso, o de querer matá-los e de tratar o caso com tal precipitação, porque, embora ele demonstrasse muita severidade para com os filhos no tempo de sua prosperidade, isso nunca havia acontecido. Agora não tinha medidas o seu ódio, ainda que os negócios estivessem em tão boa situação que ele não poderia desejar melhor. Enviou convites a todas as partes, para que todos os que Augusto havia julgado conveniente se reunissem em Berito, exceto Arqueiau, porque o odiava e por temer que ele se opusesse ao seu desígnio. Os governadores das províncias e as personagens mais importantes de diversas cidades para lá se dirigiram, mas ele não quis que os filhos estivessem presentes e mandou-os para uma aldeia dos sidônios, chamada Platana, próxima daquela cidade e de onde podiam ser levados, caso fosse necessário. Ele adentrou sozinho a assembléia, que constava de cento e cinqüenta pessoas, e a maneira como acusou os filhos, em vez de despertar compaixão pela sua infelicidade e persuadir os presentes da necessidade que o obrigava a chegar a tão grandes extremos, pareceu, ao invés, muito inconveniente na boca de um pai. Ele falou com muita veemência, perturbado pela cólera, esforçando-se para mostrar a verdade dos crimes de que os jovens eram acusados, e não trouxe nenhuma prova daquelas acusações. Via-se, enfim, um pai que, longe de instruir os juizes, não tinha vergonha de tentar convencê-los a se unir a ele no litígio contra os filhos. Leu as cartas deles, mas nada continham que demonstrasse algum plano organizado contra ele ou que se tivessem deixado levar a alguma impiedade. Pareciam confirmar somente que haviam decidido fugir, além de algumas palavras pelas quais expressavam o descontentamento que sentiam contra ele. Nesse ponto das cartas, ele exclamou, como se tais palavras fossem uma clara confissão, que eles haviam atentado contra a sua vida e jurou que elas lhe eram mais insuportáveis que a morte. Acrescentou que a natureza e Augusto lhe davam pleno poder sobre os filhos e que uma das leis de sua nação era clara a esse respeito, pois ordenava que, quando um pai ou uma mãe acusassem os filhos e pusessem a mão sobre a cabeça deles, os que estivessem presentes eram obrigados a apedrejá-los. Assim, ele teria podido, sem outra forma de processo, condenar à morte os seus filhos em seu país e no seu reino, mas desejara ouvir o parecer daquela ilustre assembléia. Não os reunira, portanto, como juizes, pois o crime deles era manifesto, porém somente por formalidade, a fim de que participassem de seu justo ressentimento e para que a posteridade soubesse, pelos seus sufrágios, quão importante é não tolerar tão horríveis atentados como o dos filhos contra aqueles que lhes deram a vida. Herodes assim falou e, como não havia trazido os filhos para que se defendessem, a assembléia não teve dificuldade em constatar que não havia mais probabilidade de reconciliação e confirmou-lhe o poder que Augusto lhe dera para dispor dele como quisesse. Saturnino, que havia sido cônsul e desempenhara cargos honrosos, opinou primeiro, com muita moderação. Ele disse que era de opinião que fossem castigados, não, porém, com a morte. Porque, sendo ele pai, não podia ter sentimentos tão cruéis nem crer que se deveria acrescentar à infelicidade de Herodes aquela nova aflição, que seria o cúmulo de todas as outras. Os três filhos dele, que eram os seus lugar-tenentes, opinaram em seguida e foram do mesmo parecer. Volúmnio, ao contrário, achou melhor sentenciá-los a morte. Os que falaram depois dele foram, em sua maioria, da mesma opinião, e assim não restou mais esperança aos dois príncipes. 718. Herodes partiu imediatamente para Tiro e levou também os filhos. Nicolau, que voltava de Roma, encontrou-o lá, e Herodes contou-lhe o que se havia passado em Berito e depois perguntou qual era em Roma a opinião de seus amigos com respeito aos filhos. Ele respondeu que a maior parte os condenava, julgando que ele devia encerrá-los na prisão para fazê-los morrer, se o achasse justo, mas somente depois de madura reflexão, a fim de que não parecesse que, em assuntos tão delicados, ele agia mais pela cólera que pela razão. Ou então, para não se envolver numa aflição sem remédio, devia absolvê-los e pô-los em liberdade. Herodes, ouvindo-o falar assim, ficou muito tempo pensativo, sem dizer palavra. Ordenou em seguida que subisse com ele ao navio, e partiram para Cesaréia. Esse estado de coisas tornou-se o motivo de todas as conversas; não se falava de outra coisa. A infelicidade dos dois príncipes e o ódio que o pai nutria por eles havia tanto tempo criou uma imensa expectativa quando ao que iria acontecer com os jovens. Mas, na inquietação em que o reino se encontrava, era perigoso expressar ou dar ouvidos a qualquer coisa que lhes fosse favorável. Era preciso esconder no coração a compaixão que se tinha deles e dissimular a dor, sem ousar manifestá-la. 719. Apenas Tirom, um velho e corajoso cavalheiro, cujo filho era da idade de Alexandre e muito afeiçoado ao príncipe, não ficou calado e ousou dizer o que os outros somente pensavam. Não temia mesmo dizer em voz alta e publicamente que não havia mais verdade nem justiça entre os homens, que a mentira e a malícia reinavam nos corações e que a cegueira era tal que, por maiores que fossem as suas faltas, eles não as reconheciam. Tinha-se prazer em ouvi-lo falar com aquela perigosa liberdade, e ninguém podia condenar a sua ousadia. Porém todos se mantinham em silêncio, pois não queriam se arriscar, embora a apreensão pelo destino dos infelizes príncipes bem podia ter incentivados outros a imitá-lo. Ele atreveu-se mesmo a pedir uma audiência com o rei, para conversar a sós com ele. Herodes concedeu-a, e então ele lhe disse: "Majestade! Eu não poderia deixar de falar-vos com esta liberdade, que me pode ser perigosa, mas também pode ser muito útil a vós, para que reflitais no que vou dizer. Em que estais pensando, majestade? Onde está agora aquela extraordinária sagacidade com que tratáveis os assuntos mais complicados, e que é feito de vossos amigos e parentes? Poder-se-ia incluir nesse número os que não se preocupam em resolver um assunto que põe em grave perturbação uma corte tão feliz quanto a vossa? Não percebeis o que se passa? Estaríeis desejando a morte desses dois príncipes, oriundos de tão digna rainha — nobres, portanto, de nascimento —, para vos colocardes, na idade em que estais, nas mãos de um filho que concebeu esperanças criminosas e para vos entregardes aos vossos parentes, que tantas vezes julgastes indignos de viver? Não percebeis que o silêncio do povo condena o vosso proceder, achando-o abominável? Não vos ocorre que os vossos soldados, particularmente os oficiais, sentem compaixão pela infelicidade desses dois príncipes e horror pelos que os puseram em tal desgraça?" Como o rei se achava muito sensibilizado em sua aflição e bem convencido da maldade de seus parentes, não reprovou, de início, as palavras de Tirom. Mas, vendo que ele o apertava com brutal liberdade, sem se impor nenhum limite, começou a se inquietar. E, considerando o que ele lhe dizia mais como censura que como advertência, que a preocupação pelo bem-estar do rei o levava a dizer, perguntou quem eram os oficiais e os soldados que condenavam o seu proceder. Quando tomou conhecimento dos nomes, mandou colocar todos eles na prisão. Um certo Trifom, que era barbeiro de Herodes, veio contar em seguida que Tirom lhe havia pedido várias vezes para que cortasse a garganta do rei com a navalha quando lhe fizesse a barba, garantindo que ele seria muito bem recompensado e que poderia esperar, depois disso, qualquer favor da parte de Alexandre. Herodes imediatamente ordenou que prendessem o barbeiro e o mandou torturar, bem como a Tirom e seu filho, o qual, vendo o pai padecer os tormentos sem nada confessar e percebendo que a crueldade do rei não dava esperança alguma de que os aliviassem para ele também, disse que declararia toda a verdade contanto que os deixassem de torturar. Herodes prometeu que o faria, e ele contou que o pai, tendo obtido a liberdade de falar a sós com o rei, havia resolvido matá-lo e se expor a todas as conseqüências, tal o seu afeto por Alexandre. Essa declaração livrou Tirom dos tormentos, mas não se sabe se era essa a verdade ou se o filho falara daquele modo apenas para poupar o pai e a si mesmo de tantas dores. 720. Herodes baniu então de seu espírito qualquer compaixão que lhe viesse impedir de ordenar a morte dos dois filhos. E, não querendo dar lugar ao arrependimento, apressou-se em realizar a execução. Mandou então apresentar em público os trezentos oficiais do exército cujos nomes haviam sido citados, bem como a Tirom, o filho deste e o barbeiro, e os acusou diante do povo, que se lançou imediatamente sobre eles e os matou. Quanto a Alexandre e Aristóbulo, o impiedoso pai os enviou a Sebaste, onde, por sua ordem, foram estrangulados. Os corpos foram levados a Alexandriom, ao túmulo de seu avô materno, onde vários de seus antepassados estavam sepultados. 721. Não é de admirar, talvez, que um ódio alimentado por tanto tempo tenha crescido até esse ponto, conseguindo afogar no espírito de Herodes todos os sentimentos da natureza. Pode-se duvidar, todavia, e com razão, se foi justa a condenação desses dois príncipes, os quais, tendo continuamente irritado o pai, obrigaram-nos por fim a considerá-los mortais inimigos, ou se não deveríamos atribuí-la à dureza de Herodes e à sua violenta paixão pelo poder, pois ele, quando se tratava de conservar a sua absoluta autoridade, não tolerava a mínima resistência e se achava no direito de não poupar ninguém. Talvez se possa ainda atribuí-la à sorte, que é mais poderosa que todos os sentimentos humanos e pode levar os homens a tais resoluções. Quanto a mim, estou convencido de que todas as nossas ações são preordenadas por uma inevitável necessidade a que chamamos destino, sem cuja ordem nada se faz no mundo. Mas é suficiente havermos tocado nisso de passagem, isto é, acerca do destino, que é muito mais elevado que o raciocínio pelo qual busquei a causa da morte dos príncipes — se ocorreu pela imprudência deles ou pela crueldade de Herodes. Todavia, como se pode julgar pelo que encontramos escrito a esse respeito nos livros da nossa Lei, não se deve crer que essa doutrina nos isente de qualquer participação nos acontecimentos ou nivele de tal modo os diferentes costumes dos homens que exima de toda culpa os maus e os criminosos. Mas, voltando às duas primeiras causas de tão trágico e deplorável acontecimento, é verdade que se pode acusar os dois príncipe da ousadia que é comum aos de sua idade, ainda mais quando herdeiros do fausto de um nascimento real; de haverem escutado demais as palavras dos que falavam em desabono de seu pai; de julgarem sem eqüidade as suas ações; de suspeitarem dele injustamente; de falarem com excessiva liberdade; de terem eles mesmos dado motivo para calúnias aos que observavam as suas mínimas palavras com o propósito ganhar a estima do rei. Quanto a Herodes, como se poderá perdoar uma ação tão desumana e desnaturada como a de matar os próprios filhos sem ter conseguido provar que eles haviam atentado contra a sua vida, privando assim a nação de dois príncipes tão formosos, hábeis em todos os exercícios, capazes de ser valorosos na guerra e que falavam com tanta graça — particularmente Alexandre — que não eram somente queridos de todo o povo judeu, mas também dos estrangeiros? E, mesmo que os tivesse julgado culpados, por que não se contentou em mantê-los numa prisão ou em bani-los do reino, uma vez que nada tinha a temer, nem dentro nem fora, garantido como estava pela poderosa proteção dos romanos? Que maior prova poderia ele dar senão a de se ter deixado governar pela paixão, demonstrando, ao ordenar a morte dos filhos, uma insuperável impiedade? O que aumenta a sua culpa é o fato de que ele estava já numa idade em que jamais poderia alegar pouca experiência para deixar ir tão longe uma questão. Sua falta teria sido menor se a surpresa de um atentado contra a sua vida o tivesse impelido imediatamente cometer aquela ação, ainda que tão cruel. Porém, agir depois de tão grande demora e após tantas deliberações é indício de uma alma sanguinária e endurecida pelo mal, como o provaram os fatos seguintes, pois ele não perdoou nem mesmo aqueles a quem antes demonstrara amar sinceramente, embora pouco se tenha a lamentar por causa deles, porque eram culpados. Mas nisso se vê também a grande crueldade de Herodes. Livro Décimo Sétimo CAPÍTULO 1 ANTÍPATRO QUER ANTECIPAR A MORTE DO REI HERODES, SEU PAI, PARA REINAR EM SEU LUGAR. FILHOS QUE HERODES TEVE DE SUAS NOVE MULHERES. 722. Embora Antípatro tivesse, pela morte de seus irmãos, feito um grande progresso em seu abominável desígnio, de atentar contra a vida de seu pai, sua impaciência por reinar era tão grande, que ele não podia suportar os outros obstáculos que retardavam a realização de suas esperanças. Livre do temor de que seus irmãos viessem a dividir com eles o governo, ele se encontrava, no entanto, numa ansiedade maior ainda, pelo ódio que todo o povo lhe votava e pela versão que tinham por ele os mesmos soldados, que são os únicos que podem sustentar o trono dos reis, quando sobrevêm os acontecimentos e as revoluções; ele não podia atribuir senão a si mesmo toda a culpa dessa aversão geral por ele, pois ele mesmo a havia atraído sobre si, procurando a ruína de seus irmãos. Não deixava, porém, de governar todo o reino com seu pai, como se já estivesse de posse do trono, porque Herodes tinha nele a máxima confiança e em vez de sentir horror pela sua traição para com seus irmãos, ele se lhe mostrava agradecido, na persuasão de que não era o ódio que ele lhes tinha, que o havia levado a agir assim, mas seu afeto por ele e o interesse que tinha pela sua conservação, embora a verdade fosse que se insurgia contra ele com tal furor, que não odiava somente suas pessoas, mas também por causa de seu pai, porque ele temia todos os que podiam descobrir-lhe a traição e opor-se ao desígnio que ele tinha formado de tirá-lo do mundo, para tomar o seu lugar. Mas como esse mesmo temor de ser descoberto e de não ter então maior inimigo do que seu pai, não podia acabar, enquanto ele vivesse, ele se apressava de levar a cabo a sua detestável empresa. Assim, tudo ele fazia com esse objetivo, para conquistar por ótimos presentes os principais amigos de seu pai e principalmente os que ele tinha em Roma, e mais que qualquer outro, a Saturnino, governador da Síria e seu irmão. Esperava também conquistar para o seu partido Salomé, sua tia, que então tinha desposado um dos maiores amigos de Herodes; pois não havia homem mais fingido e mais astucioso do que Antípatro, nem capaz de enganar com pretexto de amizade. Mas como Salomé conhecia perfeitamente o seu espírito, foi-lhe impossível surpreendê-la, embora ele tivesse encontrado o meio de fazer que sua filha, viúva de Aristóbulo, tivesse desposado seu tio materno. Quanto à outra filha, tinha desposado Calleas e ela mesma, continuando sua paixão por Silleu, queria ainda desposá-lo; mas Herodes a obrigou a se casar com Alexas e empregou para decidi-la a isso o auxílio da imperatriz, que a fez saber, que o rei, seu irmão, tendo jurado não amá-la nunca, se recusasse esse partido, ela não poderia tomar uma melhor resolução, do que dobrar-se ao seu desejo. 723. Nesse mesmo tempo, Herodes mandou a princesa Glafira, viúva de Alexandre, de volta a Arquelau, seu pai, pagando de seus bens, o que ela tinha trazido ao casamento, para eliminar todo pretexto de queixa. Ficavam dois filhos daquele casamento e Aristóbulo tinha deixado três de Berenice e duas filhas. Herodes tudo fez para bem educá-las, recomendava-as freqüentemente aos amigos, deplorava a infelicidade de seus filhos, rogava a Deus que seus netos fossem mais felizes e crescendo em virtude bem como em idade, eles lhe agradecessem o cuidado que tomava de sua educação. Deu como esposa ao filho mais velho de Alexandre a filha de Feroras, seu irmão; ao filho mais velho de Aristóbulo, a filha de Antípatro, ao filho do mesmo Antípatro, uma das filhas de Aristóbulo e a Herodes, seu filho, que ele tivera da filha do sumo sacerdote, com a permissão que nossas leis nos dão, de ter várias mulheres, a outra filha de Aristóbulo. Seu principal intento nessas alianças era levar Antípatro a ter compaixão e ternura para com esses órfãos; mas ele não os odiava menos do que havia odiado seus pais; e o afeto do rei por eles, em vez de lho causar, punha-o, ao invés, em grave tristeza. Ele temia que, quando fossem adiantados em anos, se opusessem ao seu poder, com o auxílio de Arquelau, seu avô, e do tetrarca Feroras, do qual, se o projeto se realizasse, o filho teria desposado uma das filhas de Aristóbulo. Seu temor aumentava ainda, pela compaixão que o povo demonstrava por esses jovens príncipes, pelo ódio que ele sabia que lhe tinham, por ter sido a causa da sua infelicidade e pela disposição em que ele o via de manifestar ao rei sua maldade, quando se apresentasse a ocasião e de lhe relatarem as astúcias e artifícios de que ele se servia para arruinar seus irmãos. Assim, para impedir que seus sobrinhos pudessem dividir um dia com ele a autoridade, nada havia que ele não fizesse, para mudar a resolução tomada por Herodes, com relação aos casamentos e por fim ele obteve com seus rogos que lhe permitisse desposar a filha de Aristobulo e que seu filho desposasse a filha de Feroras. 724. Herodes tinha então nove mulheres, a primeira das quais era a mãe de Antipatro. A segunda era filha do sumo sacerdote Simão e dela tivera um filho de nome Herodes, como ele. A terceira era filha de seu irmão. A quarta era sua prima-irmã e não tivera filhos nem de uma nem de outra. A quinta era samaritana e dela tivera dois filhos, Arqueiau e Antipas, e uma filha de nome Olímpia, que José seu cunhado desposou depois; Arqueiau e Antipas tinham sido educados em Roma, por um de seus amigos. A sexta, chamada Cleópatra, era de Jerusalém e dela tivera dois filhos, Herodes e Filipe, o último dos quais também tinha sido educado em Roma. A sétima chamava-se Padas; dela tivera um filho de nome Fazael. A oitava chamava-se Fedra e dela tivera uma filha de nome Roxana. A nova chamava-se Elpídia, da qual tivera uma filha chamada Salomé. Quanto às suas duas filhas, irmãs de Alexandre e de Aristobulo, que tivera de Mariana e que Feroras tinha recusado desposar, uma, ele havia casado Antipatro, filho de Salomé, sua irmã, e a outra, com o filho de seu irmão Fazael, como dissemos há pouco. CAPÍTULO 2 SOBRE UM CERTO ZAMARIAS, JUDEU, QUE ERA UM HOMEM DE GRANDE VIRTUDE. 725. Herodes para poder estabelecer inteira segurança na Traconítida, fortificou uma aldeia que estava no meio país, tornou-a tão grande como uma cidade, lá colocou uma guarnição que fazia incursões sobre os inimigos. Em seguida, tendo sabido que um judeu, chamado Zamaris, que tinha vindo de Babilônia, com quinhentos cavaleiros, armados de aljavas e de flechas e quase todos seus parentes, se tinha estabelecido, com a permissão de Saturnino, governador da Síria, num castelo de nome Valate, perto de Antioquia, mandou chamá-lo com todos os seus, prometeu-lhe dar terras no território de Batanéia, que está na fronteira da Traconítida e isentá-lo de todos os impostos, com a condição de que ele se opusesse às incursões que se poderiam fazer contra o país. Zamaris aceitou o oferecimento e construiu castelos e uma aldeia, a que chamou Batira. Assim ele defendia o país contra os ataques dos traconítas e preservava de seus roubos os judeus, que vinham de Babilônia a Jerusalém, para lá oferecer sacrifícios. Muitos daqueles que observavam religiosamente as leis dos nossos antepassados uniram-se a ele, e esse país povoou-se rapidamente, por causa das imuni-dades concedidas por Herodes e das quais gozaram durante todo o seu reinado. Mas Filipe, seu filho, tendo-o substituído no reino, tirou alguma coisa deles, pouco, na verdade, e durante pouco tempo. Agripa, o Grande, e seu filho, que tinha o mesmo nome, fizeram sobre eles grandes imposições, mas deixaram-nos gozar de sua liberdade, e os romanos agiram do mesmo modo, como diremos a seu tempo. Zamaris que era um homem muito virtuoso, deixou filhos semelhantes a ele, e dentre outros, um de nome jacim que, de tal modo se distinguiu pelo seu valor, que acompanhava sempre os reis, com um grupo dos seus. Morreu muito idoso e deixou um filho de nome Filipe, de virtude tão elevada e de tantos méritos, que o rei Agripa não somente teve por ele uma afeição muito particular, mas o fez general de seu exército. CAPÍTULO 3 CABALA DE ANTÍPATRO, DE FERORAS E DE SUA MULHER CONTRA HERODES. SALOMÉ AVISA-O. ELE MANDA MATAR FARISEUS QUE ERAM DESSA CONJURAÇÃO E QUER OBRIGAR FERORAS A REPUDIAR SUA MULHER, MAS ELE NÃO PODE DECIDIR-SE A ISSO. 726. Estando as coisas neste estado e Herodes, que se julgava muito querido de Antípatro, tinha tanta confiança nele, que lhe dava plena autoridade e a ambição desmesurada desse filho desnaturado faziam-no abusar do poder. Mas ele ocultava sua malícia com tanta habilidade que seu pai não o percebia e ele tornava-se assim, cada vez mais temível a todos, pela sua maldade e pelo seu poder. Prestava grandes serviços a Feroras, e este, por sua vez, sendo enganado pelas mulheres que favoreciam Antípatro, lhe fazia a Vorte, porque ele não ousava desgostar sua mulher, nem sua sogra e sua irmã, embora as odiasse, por causa dos maus tratos que infligiam às filhas, que ainda não eram casadas, mas ele era obrigado a suportá-las, para não aborrecê-las, porque elas sabiam muito dos seus planos, sendo assaz inteligentes e Antípatro tinha uma estreita união com elas, por si mesmo e por sua mãe; essas quatro mulheres estavam de acordo em tudo. Feroras e Antípatro tiveram, porém, uma séria divergência por alguns motivos, aliás leves, à qual foram impelidos pela habilidade de Salomé que, observando cuidadosamente todas as coisas, tinha descoberto que eles conspiravam juntos contra o rei e estava prestes a avisá-lo. Mas isso chegou ao seu conhecimento e eles resolveram não mais entreter-se publicamente; fingiram estar antipatizados um com o outro, falavam mal um do outro, principalmente na presença do rei, ou daqueles que lho podiam relatar, e em segredo, mantinham relações e conversas, mais que nunca. Todavia, eles nada puderam fazer para que Salomé, que tinha os olhos abertos sobre todas as suas ações, não os descobrisse. Ela foi imediatamente contar ao rei que eles ceavam juntos, sem que ninguém soubesse, que armavam planos de rebelião para matá-lo, se ele não desse imediatamente um remédio ao caso, que fingiam, na sua presença e na dos demais, estar em inimizade, usando palavras ofensivas, mas em particular, tinham mais amizade do que nunca, não se podia duvidar de que eles conspiravam contra aqueles aos quais tinham tanto cuidado em ocultar as suas relações. Herodes já sabia algo, pois tinham desconfiado; mas ia com precaução, porque conhecia o caráter de sua irmã, que não tinha escrúpulos em inventar calúnias, e sabia que ela e todas as outras mulheres de que falamos eram muito afeiçoadas a uma seita de homens que querem que os julguemos mais instruídos que os outros na religião, que eles são tão queridos de Deus, que Ele se lhes comunica e dá-lhes o conhecimento das coisas futuras. São chamados fariseus. Eles são muito astuciosos e atrevidos, não temendo, nem mesmo às vezes, erguer-se contra os reis e atacá-los abertamente. Assim, toda a nação dos judeus obrigou-se por juramento a ser fiel ao rei e ao imperador; mais de seis mil deles, porém, recusaram-se a fazer esse juramento. Herodes condenou-os a uma multa e a mulher de Feroras pagou-a por eles. Para agradecer esse favor, eles disseram-lhe que a vontade de Deus era que se tirasse o reino a Herodes e aos seus descendentes para dá-lo a Feroras, seu marido, e aos filhos que tivesse dele. Salomé descobriu ainda essa conjuração e disse que alguns da corte a ela haviam sido conquistados, por meio de presentes. Ela avisou ao rei e ele mandou matar os fariseus que foram descobertos como principais autores da trama, como também o eunuco Bagoas Caro que ele amava pela sua extrema beleza e, em geral, todos os seus domésticos que eles acusaram de ter aderido àquela conspiração. Os fariseus tinham feito Bagoas crer que não somente o novo rei, cuja grandeza prediziam, considerá-lo-ia como seu benfeitor e como seu pai, mas ele mesmo casar-se-ia e poderia ainda gerar filhos. 727. Depois que Herodes fez morrer os fariseus, reuniu seus amigos e disse-lhes que a mulher de Feroras, que estava presente, tinha sido a causa da injúria que ele lhe tinha feito de recusar desposar as princesas suas filhas; que ela nada tinha esquecido naquela ocasião e em todas as outras, para ajuntá-los; que ela tinha pago a multa à qual ele tinha condenado os fariseus rebeldes, e que ela era culpada daquela última conspiração. E assim, Feroras não devia esperar que ele lhe rogasse, para repudiar uma pessoa que só procurava lançar a divisão entre eles, pois não podia conservá-la sem romper com ele. Feroras, embora muito impressionado com estas palavras, disse, depois de ter protestado, que ele conservaria sempre muito religiosamente o afeto e a fidelidade que era obrigado a conservar pelo rei, seu irmão, que não podia resolver-se a repudiar sua mulher, pois a amava tanto que a morte lhe seria mais suave, do que a separação. Herodes ficou muito ofendido com essa resposta, não lhe manifestou, porém, sua cólera; contentou-se em proibir a Antipatro e à sua mãe, que se comunicassem com ele, nem tivessem relação alguma com as rainhas, suas esposas. Eles prometeram-lhe, mas não deixavam, todavia, quando podiam encontrar a ocasião, de cear secretamente, juntos, principalmente Feroras e Antipatro, que se julgava estarem de combinação com sua mulher e que a mãe de Antipatro era sua confidente. CAPÍTULO 4 HERODES MANDA ANTIPATRO PROCURAR AUGUSTO COM SEU TESTEMUNHO PELO QUAL ELE O DECLARAVA SEU SUCESSOR. SILLEU SUBORNA UM DOS GUARDAS DE HERODES, PARA QUE O ASSASSINE, MAS A TRAMA É DESCOBERTA. 728. Como Antípatro temia que a ira do rei caísse, por fim, sobre ele, escreveu aos amigos que tinha em Roma, para rogá-los que obtivessem, com suas cartas, quanto antes, que ele pudesse ir ter com Augusto. Fizeram eles o seu desejo e Herodes mandou-o grandes presentes e seu testamento, pelo qual o declarava seu sucessor, se ele o sobrevivesse; no caso de que ele morresse antes, escolheria para sucedê-lo a Herodes, outro seu filho, que ele tivera da filha do sumo sacerdote. 729. Por esse mesmo tempo, Silleu foi também a Roma, sem ter cumprido o que Augusto ordenara. Antípatro acusou-o perante o imperador, dos mesmos crimes de que Nicolau o havia acusado e Aretas fê-lo acusar também, de ter, contra sua intenção, feito morrer em Petra, várias pessoas ilustres, particularmente Soeme, que era um homem muito virtuoso. A isso ele acrescentava, que ele tinha mandado matar um dos servidores de Augusto, de nome Sábado, pelo motivo que vou relatar. Havia entre os guardas de Herodes um coríntio em quem muito ele confiava. Silleu subornou-o com uma grande soma de dinheiro e fê-lo prometer matar o rei, seu amo. Sábado soube-o da própria boca de Silleu, e avisou imediatamente a Herodes que mandou prender o coríntio e fê-lo torturar. Ele confessou tudo e acusou dois árabes, dos quais um era um grande senhor e o outro, um amigo particular de Silleu. Herodes fê-los também torturar e eles confessaram que tinham vindo expressamente para obrigar o coríntio a fazer o que tinha prometido e ajudá-lo na execução, se fosse necessário. Herodes mandou-os com informações a Saturnino, que os mandou levar a Roma, para se instaurar o processo. CAPÍTULO 5 MORTE DE FERORAS, IRMÃO DE HERODES. 730. Quando Herodes viu que Feroras se obstinava em conservar sua mulher, ordenou-lhe que se retirasse para o seu tetrarcado. Não somente ele obedeceu de boa vontade, mas fez o juramento de jamais voltar à corte, durante sua vida, o que cumpriu. Herodes depois caiu enfermo e mandou chamá-lo, porque queria antes de morrer, dar-lhe ordens secretas e importantes, e ele respondeu que não podia violar seu juramento. Herodes, porém, não procedeu do mesmo modo, pois em nada diminuiu o afeto que lhe consagrava; tendo sabido depois, que ele estava doente, foram procurá-lo sem que ele tivesse rogado. Ele morreu dessa doença e foi enterrado em Jerusalém onde se lhe prestaram honras fúnebres e luto em sua memória. Essa morte foi o começo da infelicidade de Antípatro, que então estava em Roma, pois Deus queria assim castigá-lo por ter sido tão mau, causando a morte de seus irmãos. Relatarei em particular, tudo isso, a fim de mostrar a todos com esse exemplo, como é importante ter-se por regra de suas ações a justiça e a virtude, e jamais fazer algo que lhes seja contrário. CAPÍTULO 6 HERODES DESCOBRE A CONSPIRAÇÃO FEITA POR ANTÍPATRO, SEU FILHO, PARA ENVENENÁ-LO. 731. Dois traconítidas, libertos de Feroras, aos quais muito ele estimava, foram depois de sua morte procurar Herodes, para rogar-lhe que não a deixasse impune, mas fizesse uma cuidadosa indagação, para descobrir quem lhe era o causador e o culpado. Herodes escutou-os atentamente e mostrou acreditar em suas palavras; eles disseram-lhe que seu amo tinha ceado em casa de sua mulher, no dia em que a doença se manifestou, pois tinha-lhe dado veneno, misturando com certa bebida, que, apenas ele sorveu, sentiu-se mal; esse veneno tinha sido levado por uma mulher árabe, que dissera não ter ele outro efeito, que despertar o amor, embora fosse, ao contrário, um poderoso veneno; entre aquelas mulheres árabes, que são grandes envenenadoras, principalmente a que era acusada, tinha grande familiaridade com a mulher que Silleu mantinha. A mãe e a irmã da mulher de Feroras, tinham ido procurar essa mulher, para comprar-lhe aquele veneno e haviam-no trazido no dia anterior, ao em que fizeram Feroras beber aquele líquido mortal. Esta comunicação despertou tão grande cólera em Herodes, que ele mandou torturar as mulheres, tanto escravas como livres, da mãe e da irmã da mulher de Feroras. Nada elas confessaram; uma delas, porém, por fim, vencida pela violência das dores, disse que rogava a Deus que a mãe de Antípatro sofresse os mesmos tormentos, pois ela era causa dos que todas sofriam. Esta confissão fez Herodes empregar indagações ainda mais cuidadosas, para descobrir a verdade. Tanto fez atormentar aquelas mulheres, que soube delas tudo o que se havia passado: as refeições, as reuniões secretas, e as coisas mesmo que ele havia dito somente a Antipatro e que Antipatro tinha confiado àquelas mulheres. Elas acrescentaram que ele lhes havia dado cem talentos, para não falarem a Feroras, das obras que ele tinha recebido do rei, seu pai; que tinha por ele um grande ódio, que ele se queixava freqüentemente à sua mãe, por ele viver tanto tempo, pois ele mesmo estava ficando velho, e herdaria tão tarde a coroa, que muito mal poderia dela gozar; que seu pai tinha outros filhos e netos, que ele não podia mesmo esperar ter o reino com plena segurança; e se ele viesse a faltar, não seria seu filho, mas um de seus irmãos, que Herodes teria destinado para sucedê-lo. Essas mulheres disseram também que ele falava freqüentemente da crueldade de Herodes, dizendo que ele não tinha poupado nem mesmo seus próprios filhos, e que aquilo o fizera ir a Roma, e Feroras retirar-se à sua tetrarquia. Como todas essas coisas se referiam aos avisos que Herodes tinha recebido de Salomé, ele não pôs dificuldade em prestar-lhes inteira fé. Prendeu Doris, mãe de Antipatro, como culpada de ter tido parte nessa conjuração, tirou-lhe todas as jóias e pedras preciosas de grandíssimo valor, que lhe havia dado e a expulsou do palácio. Quanto às outras mulheres que eram da família de Herodes, acalmou-se e não as castigou porque confessaram tudo. Nada, porém, o irritou tanto contra Antipatro, como o que ele soube de um samaritano, seu intendente, que também se chamava Antipatro. Esse homem confessou, entre outras coisas, à tortura, que seu amo havia entregado a Feroras um veneno mortal, para dá-lo de presente ao rei, em sua ausência, a fim de que não o pudessem acusar. Que aquele veneno tinha sido trazido do Egito por AntiFílon, amigo de Antipatro, e que Teudiom, seu tio, irmão de Doris, sua mãe, tinha trazido a Feroras, que o havia confiado à sua mulher, para guardá-lo. Herodes mandou imediatamente interrogar a viúva de Feroras, sobre estas informações. Ela confessou que tinha o veneno e correu, como para ir buscá-lo. Mas em vez trazê-lo ela atirou-se de uma janela alta, de uma galeria do palácio; no entanto, não morreu, porque caiu de pé. Depois de ter voltado a si, o rei prometeu perdoá-la, e a toda família, contanto que lhe declarasse a verdade; e ameaçou-a, ao contrário, fazê-la sofrer toda sorte de tormentos se se obstinasse em ocultar-lhe o que sabia. Ela protestou com juramento que nada lhe esconderia, e a persuasão comum foi que ela procedeu sinceramente: "AntiFílon", disse ela, "Majestade, trouxe este veneno do Egito, onde ele foi preparado por seu irmão, que é médico; Antipatro, filho de vossa majestade, comprou para dele se servir contra vossa majestade e Teudiom levou-oa Feroras, que me deu para guardá-lo. Meu marido, depois, caiudoente, ficou tão comovido com a afeição que vossa majestade lhe demonstrava, vindo vê-lo, que me mandou chamar e me disse: Minha esposa, eu me deixei enganar por Antípatro, quando ele me confiou seu desígnio, de envenenar seu pai. Mas agora que eu vejo que o rei nada diminui no afeto fraterno, que sempre me demonstrou e como se aproxima o fim de minha vida, não quero levar para o outro mundo a alma manchada pelo crime de ter tomado parte numa conspiração, de fazer morrer o rei, meu irmão. Por isso rogo-te que queimes esse veneno, na minha presença. Assim ele me falou e eu fui logo buscar o veneno e o queimei na sua presença, com exceção de uma pequena parte, que eu guardei pra me servir dele se depois de sua morte vossa majestade me quisesse tratar com o mesmo rigor." Dizendo isso mostrou a Herodes o resto do veneno e a caixa na qual estava guardado. O irmão de AntiFílon e sua mãe confessaram, ante os tormen-tos, a mesma coisa e reconheceram a caixa. Acusaram também uma das mulheres do rei, filha do sumo sacerdote, de ter tomado parte nesta conspiração, mas ela nada confessou. Herodes repudiou-a, riscou do seu testamento a Herodes, o filho que dela tivera e que tinha citado como seu sucessor ao trono, no caso de Antípatro morrer antes dele, tirou o sumo sacerdócio de Simão, seu pai e seu sogro e confiou Matias, filho de TeóFílon. No entanto, Batilo, liberto de Antípatro, veio de Roma e o submeteram ao interrogatório com torturas; ele confessou que tinha levado veneno para entregá-lo à mãe de Antípatro e a Feroras, a fim de que, se o primeiro que se desse ao rei não surtisse efeito, ministrassem-lhe o segundo. Entregaram ao mesmo tempo a Herodes umas cartas que seus amigos, que estavam em Roma, lhe haviam escrito a pedido de Antípatro, que os havia ganho por grandes presentes. Essas cartas diziam quer Arquelau e Filipe, seus filhos, acusavam-no freqüentemente da morte de Alexandre e de Aristóbulo, seus irmãos; de que eles mostravam estar sensivelmente tristes e que eles julgavam que não os mandariam voltar de Roma para a Judéia, para tratá-los como os outros haviam sido tratados. Antípatro, por seu lado, escreveu ao rei sobre seu assunto, como para desculpá-los, dizendo que se devia perdoar à sua mocidade e durante sua permanência junto de Augusto, ele continuou sempre a trabalhar para ganhar o afeto dos mais ilustres da sua corte, aos quais deu presentes, para mais de duzentos talentos. A esse respeito parece que há motivo de se admirar, de que durante sete meses em que ele ficou em Roma, nada soubesse do que se passava na judéia. Mas além de se guardarem cuidadosamente todas as passagens para impedir que ele pudesse saber notícias, o ódio que lhe votavam era tão grande, que não havia ninguém que quisesse se arriscar por amor dele. CAPÍTULO 7 ANTÍPATRO VOLTA DE ROMA PARA AJUDÉIA E É ACUSADO NA PRESENÇA DE VARO, GOVERNADOR DA SÍRIA, DE TER QUERIDO ENVENENAR O REI, SEU PAI. HERODES FÁ-LO PÔR NUMA PRISÃO E ESCREVE A AUGUSTO A ESSE RESPEITO. 732. Herodes dissimulava sua cólera contra Antípatro e escreveu-lhe que logo que tivesse terminado os negócios que o retinham em Roma, viesse procurá-lo o mais depressa possível, a fim de que sua ausência não lhe fosse prejudicial. Fazia-lhe somente algumas leves queixas de sua mãe, com promessa de logo que tivesse regressado ele esquecer-se-ia do descontentamento que lhe havia dado e dava-lhe todas as demonstrações de afeto que ele pudesse desejar, porque temia que ele suspeitasse de que não voltaria e urdisse alguma trama contra ele. Antípatro recebeu essas cartas na Cilícia, quando já estava de regresso. Já tinha recebido outras, antes, em Tarento, que lhe comunicavam a morte de Feroras, com o que ficaria muito sentido, não pelo afeto que lhe dedicava, mas porque ele não tinha envenenado seu pai, como lhe tinha prometido. Quando chegou a Celenderis, cidade da Cilícia, começou a hesitar, se continuaria a viagem. Ele não podia suportar o castigo imposto à sua mãe, que fora expulsa do palácio e as opiniões de seus amigos estavam divididas. Uns eram de parecer que se esperasse em algum lugar, para ver o que aconteceria; outros, aconselhavam-no a se apressar, a fim de dissipar, com sua presença, a idéia de que sua ausência suscitava aos seus inimigos a ousadia de agir contra ele. Ele tomou este último partido, continuou a viagem e chegou ao porto de Sebaste, que Herodes tinha feito construir com tantas despesas, dando-lhe esse nome em honra de Augusto. Não mais se duvidou então, da ruína de Antípatro. Em vez de, como, quando do seu embarque para Roma, ser ele rodeado e assediado pela multidão dos que o acompanharam, formulando-lhe votos de prosperidade, ao contrário, à sua volta, não somente não o saudaram nem dele se aproximaram, mas fizeram até imprecações, contra ele, implorando a vingança de Deus, para castigá-lo e exigir-lhe o sangue de seus irmãos. Aconteceu, que nesse mesmo tempo, quando ele se dirigia para Jerusalém, Quintílio Varo que tinha sucedido a Saturnino no governo da Síria, tinha vindo visitar Herodes e eles haviam se reunido em conselho. Como Antipatro ainda nada sabia do que se passava apresentou-se à porta do palácio, vestido de púrpura, como de costume; abriram-lhe a porta, mas fecharam-na ao seu séquito. Ele não teve então dificuldade em avaliar o grave perigo em que se encontrava, e viu-o ainda melhor, quando Herodes, em vez de abraçá-lo, repeliu-o, censurou-o pela morte de seus irmãos e disse que ele lhe queria ainda acrescentar um parricídio; que teria, no dia seguinte, a Varo por juiz. Tão imprevista desgraça tombou sobre ele como um raio. Atônito, retirou-se, e sua mãe e sua irmã, filha de Antígono, que havia reinado antes de Herodes, foram também informados de todas estas coisas; ele preparou-se para o julgamento. 733. No dia seguinte, convocou Herodes uma grande assembléia que Varo presidiu; seus amigos lá estavam com os parentes de Herodes; Salomé, sua irmã, também. Mandaram chamar os que haviam descoberto a conspiração, os que tinham sido submetidos à tortura e algumas criadas da mãe de Antipatro, que tendo sido presas um pouco antes de seu regresso, tinham em seu poder cartas que falavam de que sua conspiração tinha sido descoberta e que ele não voltasse, para não cair nas mãos do rei, seu pai, e que a única esperança de salvação que lhe restava era recorrer à proteção de Augusto. Antipatro lançou-se aos pés de Herodes, para rogar-lhe que não o condenasse antes de escutá-lo, mas lhe permitisse antes justificar-se. Herodes ordenou-lhe que se erguesse, e disse em seguida que bem infeliz ele se julgava por ter tido semelhantes filhos, por ter caído nos seus últimos dias nas mãos de Antipatro; que não havia cuidados que ele não tivesse tido de sua educação, que o tinha cumulado de benefícios, mas que tantasprovas de afeto e de bondade não tinham podido impedir que ele tentasse contra sua vida, para obter antes do tempo, com um crime horrível, um reino que ele poderia possuir legitimamente, quer pelo direito da natureza, quer pela vontade de seu pai, que ele não podia compreender que vantagem ele tinha imaginado encontrar na execução de um intento tão detestável; pois ele já o havia declarado seu sucessor, no testamento e que mesmo durante sua vida ele já compartilhava de toda sua autoridade, que ele lhe dava todos os anos cinqüenta talentos para suas despesas e lhe havia dado trezentos, para sua viagem a Roma. Cervsurou-lhe em seguida a morte de seus irmãos, dos quais tinha sido o acusador e o imitador; se eles fossem inocentes, pois não tinha encontrado outras provas contra eles senão as que ele havia alegado e os havia condenado por sua insinuação. Mas que agora ele os justificava, sendo ele mesmo culpado do assassínio de que os acusava. Herodes assim falava e as lágrimas corriam-lhe dos olhos em tão grande abundância, que ele não pôde continuar. Rogou a Nicolau de Damasco, por quem tinha não menor amizade do que confiança, que estava bem a par do assunto, que referisse o que continham as deposições das testemunhas que serviam de provas da culpabilidade de seu filho. Mas Antípatro antecipou-se e defendeu ele mesmo a causa. Empregou para sua defesa as mesmas razões de que Herodes se servira contra ele, dizendo que aquela extrema aflição de seu pai era uma recompensa de sua piedade e um sinal de que ele não havia faltado a nenhum dos deveres que lhe devia prestar; que não havia possibilidade de que, depois de o ter defendido nas tentativas feitas contra sua vida, ele tivesse querido cometer semelhante crime e enxovalhar com tal mancha a sua reputação; que não havia nenhum motivo para isso, porque seu pai o tinha declarado seu sucessor e tornado participante de todo poder e de todos as honras anexas à coroa, ele não tinha somente a probabilidade de ser rei, mas podia-se dizer que de fato ele já o era, sem que ninguém se opusesse a isso; que assim não havia o mínimo motivo de crer que a esperança incerta de conquistar a inteira posse de um reino, de que já gozava pacificamente, de uma parte de sua virtude, ele se tivesse metido em semelhante perigo e em tal crime; que o castigo sofrido por dois de seus irmãos, por terem tentado semelhante ação tornava a coisa ainda mais verossímil; que não era necessária melhor prova de seu ardente amor por seu pai, do que ele mesmo ter sido delator deles e que não estava arrependido disso, porque não podia melhor demonstrar sua piedade para com ele do que se tornando o vingador de sua impiedade, que ele tinha por testemunha de todas as suas ações em Roma, o mesmo Augusto, ao qual não se podia enganar bem como a Deus, que ele podia apresentar suas cartas às quais se devia prestar incomparavelmente mais crédito do que às calúnias de seus inimigos, que não tinham maior desejo do que pôr a divisão na família real e aos quais sua ausência tinha dado os meios para isso e a comodidade também; quanto às deposições das testemunhas, não era justo que lhas prestassem fé, pois haviam sido extorquidas pela violência das dores e que por fim ele mesmo se oferecia a ser torturado e interrogado sem que o poupassem. Assim falando, Antípatro tinha o rosto cheio de lágrimas, batia com força no rosto, de tal modo que causava compaixão aos seus mesmos inimigos, e também comoveu de algum modo os presentes; Herodes mesmo estava comovido, embora fizesse todo o possível para não demonstrá-lo. Nicolau, então, tomou a palavra para continuar a acusação que o rei tinha começado. Ele estendia-se em cada artigo: trouxe como prova dos crimes, o testemunho dos que tinham sido torturados. Estendeu-se muito sobre a bondade extrema que o rei havia demonstrado por seus filhos, pelo cuidado que tivera de sua educação, de que tinha sido tão mal recompensado; disse que por maior que tivesse sido a culpa de Alexandre e Aristóbulo não havia tanto motivo de se admirar de que, sendo jovens e mal aconselhados, eles se tivessem deixado levar mais pela ambição de reinar do que pelo desejo de enriquecer. Mas que nada era tão horrível como o crime de Antípatro, o qual, mais cruel do que os animais mais cruéis, que se amansam e se mostram reconhecidos para com aqueles, dos quais receberam algum benefício, não tinha ele se comovido, com tantos favores que recebera do rei, seu pai, e, em vez de considerar a infelicidade em que seus irmãos tinham caído, por seu mau proceder, não tivera medo de os imitar. "Pois não fostes vós mesmo", acrescentou ele, dirigindo sua palavra a Antípatro, "o primeiro a acusá-los? Não fostes vós que vos empenhastes em provar-lhe a culpabilidade? Não fostes vós que os fizestes castigar? Não é, porém, disso que eu vos censuro; vosso ódio por eles era justo. Mas, pode-se assaz admirar de que não tenhais temido atrair sobre vós coisa semelhante? Pois, não é fácil julgar que o que fizestes contra eles não foi por amor a vosso pai, mas para poderdes mais facilmente executar o abominável desígnio, que tínheis já formulado contra ele, parecendo ser tão zeloso pela sua conservação e ter tanto horror por seu crime, como as conseqüências no-lo fizeram ver? Pois, querendo a morte de vossos irmãos, poupastes seus cúmplices; demonstrastes assim suficientemente, que estáveis de combinação còm eles e que vossa intenção era servir-vos deles para tentardes contra a vida de vosso pai. Sentíeis assim uma dupla alegria: parecer aos olhos dos homens ter feito uma ação digna de louvor, como teria sido mesmo, se vossos irmãos, sendo culpados, não tivésseis vos declarado contra eles, como inimigos, para salvar vosso pai e a outra, secreta, oculta, no vosso coração, achando por esse meio mais facilidade em fazer perecer, à traição, por um crime ainda maior que o deles, aquele mesmo por quem parecíeis sentir um amor tão cheio de piedade. Mas se verdadeiramente tivésseis tido horror ao detestável desígnio de que vossos irmãos eram acusados e que lhes custou a vida, teríeis tido coragem para imitá-los? Não é evidente que não tínheis outro objetivo que perder por vossa astúcia os que vos poderiam disputar o reino, como sendo muito mais dignos do que vós, de possuí-lo e atirar todo ódio sobre vosso pai, de vos pordes em condições de não poder ser castigado, acrescentando a esse fatricídio, um parricídio, tão horrível, que nenhum século ainda viu outro semelhante? Pois não é de um pai qualquer que resolvestes eliminar a vida, mas de um pai que vos amava com paixão, que vos cumulou de benefícios, que compartilhou convosco a sua autoridade, que vos declarou seu sucessor, que vos fez gozar crescentemente do prazer de reinar, que vos tinha garantido a coroa por meio de seu testamento. Mas essa excessiva bondade não causou impressão, em tão mau espírito como o vosso. Em vez de considerá-lo como benfeitor, vos considerastes apenas a vós mesmos; vossa paixão desmesurada de dominar não pôde tolerar ter como companheiro vosso próprio pai, a quem sois devedor de tantos benefícios e ao mesmo tempo que vossas palavras demonstravam um ardor tão violento pela sua conservação, todas as vossas ações tendiam à sua ruína. Vós não vos contentaste de ser mau, procurastes tornar vossa mãe tão má quanto vós, fazendo-a cúmplice do vosso crime; irritastes o espírito de vossos irmãos e tivestes a insolência de ultrajar a vosso pai, chamando-o de animal, vós, cujo coração está mais cheio de veneno do que os mais venenosos animais, as serpentes, e de que vos servistes contra os mais próximos e as quais devíeis maiores favores: e vós, enfim, que em vez de ajudar vosso pai na sua velhice, não vos contentastes unicamente com a vossa malícia para fazê-lo sentir os efeitos da vossa ira, mas vos fizestes acompanhar por guardas e conquistastes o maior número possível de pessoas, a fim de juntar os seus artifícios aos vossos para o aniquilar. Agora, depois de tantos depoimentos, tanto de pessoas livres como de escravas, às quais fostes causa de serem torturadas, depois de provas tão claras do vosso crime, ousais negar a verdade; não vos é suficiente terdes renunciado aos sentimentos mais ternos da natureza, esforçando-vos por tirar a vida a vosso próprio pai, quereis também subverter as leis estabelecidas contra vós e vossos semelhantes, para surpreender a eqüidade de Varo e para abolir tudo o que há de justiça no mundo. Dizeis que não se devem dar valor a depoimentos extorquidos por meio de torturas, que salvaram a vida ao vosso pai e pretendeis, ao mesmo tempo, que se deva crer no que direis, sofrendo também a tortura." "Mas, Senhor", acrescentou Nicolau, dirigindo então a palavra a Varo, "nós livrareis nosso rei dos detestáveis empreendimentos movidos contra ele, pelos seus parentes mais próximos? Não mandareis ao suplício esse cruel animal, que depois de se ter servido de uma falsa aparência de afeto para com seu pai, para perder seus próprios irmãos tudo fez para perdê-lo a ele também, a fim de reinar sozinho? Sabeis que o parricídio não deve ser considerado como um crime particular, mas como público, porque é um ultraje feito à natureza e ataca o princípio da vida. Vós sabeis que nesse caso o simples pensamento merece ser castigado como o mesmo fato e que não se deve deixar de castigá-lo, sem se pecar contra essa mesma natureza, que é a mãe comum de todos os homens." Nicolau referiu em seguida diversas coisas, que a mãe de Antípatro, impelida pelo prazer que as mulheres têm de falar, não tinha podido deixar de dizer, isto é, que ela tinha consultado adivinhos e oferecido sacrifícios para saber o que aconteceria a Herodes. Não esqueceu também as desordens, tanto por causa do vinho como das mulheres, causadas por Antípatro, na família de Feroras e citou o grande número de depoimentos feitos contra ele, uns voluntários, outros obtidos pela tortura e que se podiam ter como os mais certos, porque aqueles, que antes o temor de Antípatro levava a calar o que sabiam contra ele, vendo que a mudança da sorte dava a todos a liberdade de falar e de acusá-lo, diziam então com franqueza o que seu ódio por ele já lhes não permitia ocultar. 734. Nada, porém, aniquilava tanto a Antípatro, como as recriminações de sua consciência, que lhe atirava continuamente diante dos olhos, seus horríveis crimes, contra seu pai, o sangue de seus irmãos derramado por seus criminosos manejos e a perturbação que ele havia suscitado em toda a família real. Havia-se mesmo notado há muito tempo que jamais ele tinha ódios justos, nem amizades fiéis: mas o interesse era sua única regra de conduta. Assim, mais se amava a virtude e a justiça, mais ela era tida em horror e apenas houve segurança, começou-se a clamar contra ele e a se dizer à porfia todo o mal que ele havia feito e de que se tinha conhecimento. Vários acusaram-no de diversos crimes; e havia motivo para se crer em tudo como verdade, porque parecia que não era para agradar ao rei, nem o temor do perigo que os obrigava a ocultar alguma coisa. Parecia, ao contrário, que eles eram levados a falar daquele modo porque detestavam sua maldade e desejavam sua morte não só para garantir a vida de Herodes, como para evitar de cair sob o domínio de tão perverso príncipe, como Antípatro. Não eram, porém, somente os interrogados que assim falavam; havia muitos que depunham voluntariamente contra ele, e embora ele fosse um dos mais astuciosos dos mais desavergonhados dos homens, não ousava abrir a boca para responder. 735. Varo, então, tomou a palavra e disse que lhe dava toda a liberdade de falar, se tivesse alguma coisa a alegar em sua defesa e que o rei, seu pai e ele, só desejavam que ele fosse inocente. Antípatro, em vez de responder, lançou-se de rosto em terra, rogando a Deus que fizesse saber por meio de algum sinal a sua inocência e quanto ele estava longe de jamais ter tido o pensamento de empreender algo contra seu pai. É assim que os maus costumam agir. Quando enveredam pelo caminho do crime, abandonam-se às suas paixões, sem se lembrar de que há um Deus; quando se encontram, porém, no perigo de serem castigados, eles o invocam, tomam-no como testemunha da sua inocência e dizem que se abandonam inteiramente à sua vontade. Foi o que sucedeu a Antípatro. Antes, em todas as coisas, ele procedia como se Deus não existisse, mas quando se viu prestes a receber o castigo que merecia, ele se atreveu a dizer que Deus o tinha conservado para velar por seu pai. Varo, vendo que ele não respondia às perguntas que lhe eram feitas e que ele continuava somente a invocar a Deus, ordenou que trouxessem o veneno, de que se havia falado no processo para que dele se experimentasse a força. Trouxeram-no e ele o fez beber a um homem condenado à morte, o qual apenas o sorveu, caiu morto. Dissolveu então a assembléia e no dia seguinte voltou a Antioquia onde costumava permanecer, porque era a cidade onde os reis da Síria tinham habitualmente sua corte. 736. Herodes mandou no mesmo instante meter Antípatro numa prisão, sem que se soubesse que a resolução ia tomar ou já tomara, com Varo, sobre aquele assunto, mas a maior parte julgava que ele nada faria, sem seu parecer. Escreveu em seguida a Augusto e ordenou aos que lhe deviam apresentar as cartas, que hoje o informassem à viva voz dos crimes cometidos por seu filho. Nesse mesmo tempo, interceptou-se uma carta que AntiFílon escrevia do Egito a Antípatro. Herodes mandou abri-la e encontrou estas palavras: "Eu vos mandei uma carta de Acmé, em que vai a minha vida, pois não duvideis de que se fosse conhecida eu atrairia sobre mim um ódio mortal de duas mui poderosas famílias. Toca a vós dar ordem para que o negócio tenha bom êxito". Herodes leu esta carta, mandou procurar a outra de que falava, mas não a pôde encontrar e o servidor de AntiFílon afirmava não ter trazido outra que não aquela que eles tinham em mãos. Enquanto estavam assim, nessa ansiedade, um dos amigos do rei descobriu uma costura na túnica do servo e pensou que ali poderia estar escondida a carta. Sua suposição não o enganou; acharam-na e assim estava redigida: Acmé a Antípatro: "Escrevi ao rei, vosso pai, do modo como desejáveis e incluí uma cópia da carta suposta de ter sido escrita à imperatriz, minha senhora, por Salomé. Estou certo de que apenas ele ler castigá-la-á como culpada, por ter tentado contra sua vida." O conteúdo da carta, falsamente atribuída a Salomé, tinha sido imaginado por Antipatro, mas ele tinha deixado a Acmé para que exprimisse o seu pensamento com sua maneira ordinária de escrever. Quanto à carta de Acmé a Herodes, assim estava escrita: "Tendo, Majestade, encontrado uma carta, escrita por Salomé à imperatriz, minha senhora, pela qual ela a suplicava de fazer de modo que ela possa desposar Silleu, o cuidado, que eu sou obrigado a ter no que respeita o vosso serviço, fez-me copiá-la e vo-la enviar. Far-me-eis o favor de queimá-la, porque corre perigo minha vida." Assim, a carta. Mas o que Acmé escrevia a Antipatro desvendava toda a trama, porque pareceria que ele nada tinha feito que por sua ordem e para perder Salomé. Acmé, que era judeu de nascimento, estava a serviço da imperatriz e tinha vendido muito caro a Antipatro a sua mediação. Herodes soube assim de toda a maldade de seu filho, que chegava a tal excesso, pois não se contentando, de atentar contra a vida de seu pai, de ter querido também perder à sua tia Salomé, de ter enchido toda a família de confusão e perturbação, tinha mesmo levado a corrupção até a corte de Augusto. Tantos crimes juntos causaram-lhe tal horror, que pouco faltou que ele não morresse naquele mesmo instante. Salomé excitava-o e clamava, batendo no peito, que estava pronta a sofrer a morte, se ele julgava que ela lhe tinha faltado à fidelidade. Herodes mandou chamar Antipatro e ordenou-lhe que dissesse sem temor, se tinha alguma coisa a alegar em sua defesa. Ele nada respondeu e então ele pediu-lhe, que, pelo menos declarasse que eram seus cúmplices. Ele falou de AntiFílon somente. Veio então a Herodes o pensamento de mandá-lo a Roma para ser julgado por Augusto, mas teve receio de que os amigos de Antipatro o salvassem pelo caminho. Assim, tornou a enviá-lo à prisão, atado como estava e escreveu a Augusto para informá-lo do seu crime, encarregando seus embaixadores de lhe contar como ele havia conquistado Acmé e de lhe mostrar as cópias das cartas que ele tinha escrito. CAPÍTULO 8 ARRANCA-SE UMA ÁGUIA DE OURO QUE HERODES TINHA CONSAGRADO NO PORTAL DO TEMPLO. SEVERO CASTIGO QUE ELE IMPÕE. HORRÍVEL ENFERMIDADE DESSE PRÍNCIPE E ORDENS CRUÉIS QUE ELE DÁ A SALOMÉ, SUA IRMÃ, E A SEU MARIDO. 737. Enquanto os embaixadores de Herodes estavam a caminho de Roma, com as ordens que lhes havia dado, ele caiu doente, fez seu testamento e nomeou seu sucessor no reino a Antipas, o mais novo de seus filhos, porque Antípatro o havia irritado com suas calúnias contra Arquelau e contra Filipe. Legou mil talentos a Augusto, quinhentos talentos à imperatriz, sua esposa, aos seus filhos, aos amigos e aos libertos. Dividiu o resto do seu dinheiro, suas terras e seus rendimentos, entre os filhos e netos, enriqueceu Salomé, sua irmã, como agradecimento pela amizade que ela lhe tinha constantemente demonstrado. Como não tinha esperança de salvar-se daquela doença, pois já tinha perto de setenta anos, ficou tão triste e tão irritado, que não podia tolerar nem a si mesmo. A opinião que ele tinha de que seus súditos o desprezavam e se regozijavam com sua desgraça era a causa principal disso e uma sedição suscitada por pessoas muito consideradas pelo povo, confirmou-lhe ainda mais essa suposição. O que aconteceu deste modo: 738. Judas, filho de Sarifeu e Matias, filha de Margalote, eram assaz queridos do povo, porque, além de serem os mais eloqüentes dos judeus e os mais sábios na interpretação das leis, eles educavam a juventude e tudo faziam para encaminhá-la à virtude. Quando esses dois homens souberam que a doença do rei era incurável, exortaram a estes moços que os reverenciavam como a.seus mestres, que destruíssem as obras que ele tinha feito, como desprezo dos costumes de seus antepassados; disseram-lhes que nada lhes poderia ser mais glorioso, do que se declararem defensores da religião e que tantas desgraças, que afligiam a família de Herodes eram sem dúvida causadas por ter ele ousado burlar as leis, que deviam ser invioláveis e calcar aos pés as antigas determinações, para estabelecer novas obras. Esses doutores, assim falando, nada diziam que não tivessem deveras no coração. Entre essas obras profanas de Herodes ele tinha feito colocar e consagrar sobre o portal do Templo, uma águia de ouro, de tamanho extraordinário e de muito valor, embora as nossas leis proíbam expressamente fazer figuras de animais. Assim, esses dois homens, zelosos da observância da disciplina de nossos antepassados, excitaram seus discípulos a arrancar aquela águia; disseram-lhe que embora a empresa fosse perigosa, nela não deviam empregar menos entusiasmo, pois uma morte honrosa deve ser preferível à vida, embora suave e tranqüila, quando se trata de manter as leis do país e de conseguir uma reputação imortal. Os covardes morrem, bem como os generosos, e assim a morte, sendo inevitável para todos os homens, os que terminam sua vida com grandes feitos, tem a consolação de deixar à posteridade uma glória imperecível. Estas palavras animaram de tal modo os moços que a notícia se espalhou logo; ao mesmo tempo dizia-se que o rei tinha morrido e eles então, em pleno dia, subiram ao lugar onde estava a águia, arrancaram-na, atiraram-na por terra e a fizeram em pedaços a golpes de machado, diante de grande multidão de povo, que estava reunido no Templo. O que comandava as tropas do rei, apenas soube do que se passava, temendo aquilo fosse o princípio de uma conspiração, correu para lá, com um grande número de soldados e encontrando apenas uma multidão confusa que se tinha reunido, dissipou-a sem dificuldade. Mais ou menos uns quarenta daqueles moços foram os únicos que ousaram resistir. Ele os prendeu e os enviou ao rei, com judas e Matias, que julgaram ser-lhes-ia vergonhoso fugir. Herodes perguntou-lhes quem os havia feito tão ousados, arrancando do lugar um objeto que ele havia feito consagrar. Responderam-lhe: "Há muito havíamos tomado essa resolução e não teríamos podido, sem faltar à coragem, não tê-la executado. Vingamos o ultraje feito a Deus e mantivemos a honra da lei de que somos discípulos. Achais estranho que tendo-a recebido das mãos de Moisés a quem Deus mesmo a deus, nós a tenhamos preferido às vossas ordens? Julgais que tememos, nos façais sofrer a mesma morte, que em vez de ser um castigo de um crime, será a recompensa da nossa virtude e de nossa piedade?" Eles pronunciaram estas palavras com tanta firmeza, que não se podia duvidar de que sua coragem correspondia às suas palavras e de que eles não teriam menor valor em sofrer, do que havia tido coragem em agir. Herodes mandou-os acorrentados a Jerico, fez reunir os mais ilustres dos judeus e foi levado para lá em liteira por causa de sua debilidade. Falou-lhes das dificuldades suportadas pelo bem público, disse que ele tinha para a glória de Deus, reconstruído o Templo, com despesas, o que todos os reis asmoneus juntamente, não tinham podido fazer durante cento e vinte e cinco anos, em que haviam reinado e tinha adornado com ricos presentes, que ali havia consagrado; que ele tinha esperado que lhe agradecessem, mesmo depois de sua morte e que prestassem honrar à sua memória. Mas, por um horrível atentado, em ver da gratidão que ele devia esperar, não se havia receado, estando ainda vivo, fazer-lhe tão grande ultraje, como em pleno dia, à vista de todo o povo, arrancar uma coisa que ele tinha consagrado a Deus, o qual com aquele ato tinha sido ainda mais ofendido do que ele. Os maiorais da assembléia, ouvindo o rei falar desse modo e temendo que no furor de que estava ele possuído, não viesse a descarregar sobre eles a sua cólera, disseram que em nada haviam contribuído para o fato que sucedera, e que julgavam que aquela ação devia ser castigada. Estas palavras acalmaram-no e ele não investiu mais contra os outros; contentou-se de tirar o sumo sacerdócio de Matias, que ele pensava tinha tomado parte naquela depredação e a deu a Joazar, seu cunhado. Durante o tempo em que Matias exercia o sumo sacerdócio, sonhava certa noite, na qual se devia celebrar um jejum, que estivera na companhia de sua esposa e que assim não estava em condições de atender ao serviço divino; José, filho de Eli, que era seu parente foi encarregado de oficiar naquele dia, em seu lugar. Herodes, assim, depois de tê-lo privado do cargo de sumo sacerdote, mandou queimar vivo este outro Matias, autor da sedição, e todos os que tinham sido aprisionados com ele e naquela mesma noite sobreveio um eclipse da lua. 739. Deus queria que Herodes sofresse o castigo de sua impiedade; sua doença agravava-se cada vez mais. Uma febre lenta, que não transparecia exteriormente, queimava-o e o devorava por dentro; ele tinha uma fome tão violenta, que nada era capaz de saciá-lo; seus intestinos estavam cheios de úlceras; violentas eólicas faziam-no sofrer dores horríveis, seus pés estavam inchados e lívidos, suas virilhas também, as partes do corpo que se escondem com o maior cuidado, estavam tão corrompidas que já eram devoradas por vermes; seus nervos estavam frouxos; ele respirava com dificuldade e seu hálito era tão mau, que ninguém queria estar perto dele. Todos os que consideravam com espírito de piedade o estado em que se achava esse infeliz príncipe, estavam de acordo em admitir que tudo aquilo era um castigo visível de Deus, para puni-lo por sua crueldade. Mas embora ninguém acreditasse que ele poderia, ainda, escapar daquela doença, ele não deixava de esperá-lo. Mandou vir médicos de todos os países e, a conselho deles, foi para além do Jordão, às águas cálidas de Caliroé, que se despejam num lago cheio de betume e não somente a medicinais, mas também agradáveis para se beber. Meteram-no numa tina cheia de óleo e ele sentiu-se tão mal, que se pensou que ele ia morrer. Os gritos e as lágrimas de seus domésticos, fizeram-no voltar a si e então viram que seu mal era incurável. Ele mandou que se distribuísse a todos os seus soldados, cinqüenta draemas por cabeça, deu grandes presentes aos seus chefes e aos seus amigos e se fez reconduzir a Jerico onde sua crueldade aumentou ainda, de tal modo, que o fez tomar as mais horríveis deliberações, como jamais o espírito humano pôde conceber. Ordenou por um edito a todos os judeus mais ilustres, que fossem a Jerico, sob pena de morte para os que faltassem e, quando todos chegaram, ele os fez encerrar no hipódromo, sem indagar se eles eram culpados ou inocentes. Mandou depois vir Salomé, sua irmã, e Alexas, marido dela, e disse-lhes que ele sofria tantas dores que via bem que o fim de sua vida estava próximo e que ele não se podia queixar, pois era um tributo que uma lei comum a todos os homens, o obrigava a pagar à natureza. Mas que ele não podia tolerar ser privado da honra que é devida a todos os reis, por um luto público. Que ele sabia, entretanto, que o ódio que os judeus lhe tinham era grande, que eles com sua morte teriam se rejubilado, pois mesmo durante sua vida eles não tinham temido revoltar-se contra ele e ofendê-lo. Que ele esperava de duas pessoas muito próximas do seu afeto e de seu dever, que o consolassem em tão sensível desprazer e poderiam fazê-lo, cumprindo o que lhes ia dizer, tornando assim seus funerais mais magníficos e mais agradáveis às suas cinzas que o de qualquer outro rei, porque não haveria uma só pessoa em todo o reino, que não derramasse lágrimas de verdade; que para executar essa incumbência, logo que ele tivesse exalado o último suspiro, fizessem rodear o hipódromo de soldados, sem lhes falar de sua morte e ordenassem aos mesmos de sua parte, que matassem a flechadas todos os que lá estavam encerrados. Se eles executassem essa ordem, ele lhes deveria um duplo favor: um, por ter satisfeito ao seu pedido e o outro, por ter tornado o luto de suas exéquias mais célebre do que qualquer outro. Este cruel soberano acompanhava as palavras com lágrimas; rogou-lhes pelo afeto que lhe tinham e por tudo o que tinham de mais santo, que não permitissem que se deixasse de prestar aquelas últimas honras à sua memória e eles prometeram-lhe executar pontualmente suas ordens. Se alguém quisesse desculpar a Herodes as crueldades praticadas em pessoas, que lhe eram parentes, pela razão de que se tratava de garantir a sua vida, esta última ação, o obrigaria a confessar, que jamais se viu tão espantosa desumani-dade em querer que, estando ele para deixar a vida, todas as famílias e mesmo amigos ilustres, sofressem também um luto, por sua ordem, a fim de que todo o reino padecesse ao mesmo tempo absoluta tristeza, pela morte de alguém, sem perdoar nem mesmo aos que nunca o haviam ofendido e de que jamais tivera motivo de queixa, quando, por pouca bondade que se tenha, costuma-se perdoar aos mesmos inimigos, reduzidos a esse estado. CAPÍTULO 9 AUGUSTO MANDA DIZER A HERODES QUE FAÇA O QUE QUISER COM ANTÍPATRO. AS DORES DE HERODES AUMENTAM E ELE QUER MATAR-SE. AQUIABE, UM DE SEUS NETOS, IMPEDE-O. CORRE A NOTÍCIA DE QUE ELE HAVIA MORRIDO. ANTÍPATRO PROCURA EM VÃO SUBORNAR AQUELE QUE O VIGIAVA PARA PÔ-LO EM LIBERDADE. HERODES SABE-O E MANDA MATÁ-LO. 740. Depois que Herodes deu estas ordens cruéis à sua irmã e ao cunhado, soube por cartas de seus embaixadores em Roma, que Augusto tinha mandado matar Acmé, por se ter deixado subornar por Antípatro e que deixava inteiramente à sua vontade castigar como quisesse aquele pérfido filho, quer exilando-o, quer condenando-o à morte; estas notícias fizeram-no regozijar-se: mas as dores voltaram e tomado de ardente fome, pediu uma maçã e uma faca, pois ele tinha o costume de descascá-la ele mesmo, de cortá-la em pedaços e comê-la. Mas como queria matar-se com aquela faca, olhou para todos os lados e teria executado o seu desígnio se Aquiabe, seu neto, não o tivesse percebido e não lhe tivesse segurado o braço, soltando ainda um grito. Todo o palácio encheu-se então, uma segunda vez, de espanto e de agitação, supondo que o rei tinha morrido. A notícia espalhou-se logo e chegou até Antípatro. Ele acreditou facilmente e não somente sentiu a esperança de se libertar da prisão; chegou a julgar que ainda haveria de reinar, e tudo prometeu ao que o vigiava, para que o pusesse em liberdade. Mas, muito longe de poder suborná-lo, esse homem foi imediatamente avisar ao rei. Herodes, que já tinha tanta aversão por Antípatro, gritou, deu pancadas na cabeça e embora tão fraco como estava, ergueu-se no leito e ordenou a um dos seus guardas que fosse imediatamente matá-lo e que lhe enterrasse o corpo sem cerimônia alguma, no castelo de Hircano. CAPÍTULO 10 HERODES MUDA SEU TESTAMENTO E DECLARA ARQUELAU SEU SUCESSOR. MORRE CINCO DIAS DEPOIS DE ANTÍPATRO. SOBERBOS FUNERAIS FEITO POR ARQUELAU A HERODES. GRANDES ACLAMAÇÕES DO POVO EM FAVOR DE ARQUELAU. 741. Herodes mudou imediatamente o seu testamento. Em lugar do precedente, em que tinha nomeado Antipas, seu sucessor, contentou-se neste em nomeá-lo, tetrarca da Galiléia e da Peréia; deu o reino a Arquelau; a Filipe seu irmão, a Traconítida, a Gaulanita e a Batanéia, que erigiu em tetrarquia; a Salomé, sua irmã, jamnia, Azoto e Fazaelite, com cinqüenta mil peças de prata. Deu ainda grandes presentes a todos os outros parentes, quer em dinheiro quer em rendimentos anuais: deu a Augusto, além de sua baixela de ouro e de prata, grande quantidade de móveis e objetos preciosos, dez milhões de peças de prata e cinco milhões idênticas, à imperatriz e a alguns de seus amigos. Ele sobreviveu a Antipatro, apenas cinco dias, e morreu trinta e quatro anos depois de ter expulso Antígono do reino e trinta e sete, depois de ter sido declarado rei, em Roma. Não houve jamais príncipe mais colérico, mais injusto, mais cruel e mais favorecido pela sorte. Pois, tendo nascido em condição humilde, chegou a subir ao trono, venceu perigos sem conta e viveu muitos anos. Quanto aos seus dissabores domésticos, embora as tentativas de seus filhos contra ele o tivessem tornado muito infeliz, segundo meu parecer, ele foi mesmo feliz nisso, segundo o juízo que disso ele fazia, porque não os considerando mais como seus filhos, mas como inimigos, ele os castigou e vingou-se deles. 742. Antes que a notícia de sua morte fosse divulgada, Salomé e Alexas puseram em liberdade todos aqueles judeus ilustres que estavam encerrados no hipódromo e disseram que o faziam por ordem do rei e nisto merecem os agradecimentos de nossa nação; quando a morte de Herodes se tornou conhecida, eles fizeram reunir no anfiteatro de jerico todos os soldados, para entregar-lhes uma carta que o príncipe lhes havia escrito. Ela foi lida publicamente e dizia que lhes agradecia o afeto e a fidelidade que sempre lhe haviam demonstrado e rogava que continuassem a servir a Arquelau, que ele tinha nomeado seu sucessor no reino. Ptolomeu, a quem ele tinha confiado o seu selo, leu também seu testamento que dizia expressamente que isso só se poderia fazer, depois de Augusto o tivesse confirmado. Ouviu-se então um clamor, enchendo os ares: "Viva o rei Arquelau!" Os soldados e os chefes prometeram servi-lo com a mesma fidelidade com que tinham servido ao rei, seu pai, e desejavam-lhe um longo e feliz reinado. 743. O novo príncipe pensou então em organizar soberbos funerais para o rei, seu pai, e quis mesmo estar presente à cerimônia. O corpo adornado com as insígnias reais tinha uma coroa de ouro na cabeça e um cetro na mão, era levado numa liteira de ouro, enriquecida com pedras preciosas. Os filhos do falecido e seus parentes próximos seguiam a liteira, todos os soldados marchavam perto, separados por nações. Os trácios, os alemães e os gauleses vinham na frente; os outros, seguiam-nos; todos com seus comandantes, armados como para um combate. Quinhentos oficiais domésticos do falecido rei traziam perfumes e encerravam o magnífico cortejo. Marcharam nessa ordem, por oito estádios, desde jerico até o castelo de Herodiom, onde o enterraram, como ele tinha determinado. 744. Depois que o novo rei celebrou, segundo o costume do país, o luto de seu pai, deu um banquete ao povo e subiu ao Templo. Clamava-se viva o rei, por toda parte por onde ele passava e depois que ele se sentou sobre o trono de ouro, os clamores aumentaram, com votos pela prosperidade do seu reinado. Ele a todos recebeu com muita bondade e testemunhou-lhes sua gratidão, por nada ter diminuído de seu afeto por ele, com a recordação da severidade com que seu pai os havia tratado; afirmou-lhes que lhes daria provas do seu reconhecimento, disse-lhes que não tomaria ainda o nome de rei, até que Augusto tivesse confirmado o testamento de seu pai e que ele tinha recusado, por essa mesma razão, receber o diadema que todo o exército lhe havia oferecido em jerico. Mas logo que o tivesse recebido de Augusto, que somente tinha o poder de dar-lho, ele mostraria por suas ações, que tinham razão de amá-lo e esforçar-se-ia para torná-los mais felizes do que haviam sido durante o reinado de seu pai. Como é costume do povo, persuadir-se de que os príncipes, ao seu advento ao trono agem com muita sinceridade, estas palavras de Arquelau que lhe eram tão favoráveis, fez redobrar as aclamações: acrescentaram ainda outros louvores, maiores e mais entusiastas e tomaram a liberdade de lhe pedir diversas graças: uns, a diminuição dos tributos, outros, a libertação de vários prisioneiros, que o rei, seu pai, havia feito meter na prisão, muitos das quais já lá estavam há muito tempo; outros ainda, a abolição do direito de peagem e dos impostos sobre mercadorias. O novo soberano que pensava em firmar cada vez mais o seu poder, julgou nada lhes poder recusar; depois de terminados os sacrifícios, ele deu um banquete aos seus amigos. CAPÍTULO 11 ALGUNS JUDEUS QUE PEDIAM VINGANÇA PELA MORTE DE JUDAS E DE MATIAS, E DE OUTROS QUE HERODES TINHA FEITO QUEIMAR POR CAUSA DAQUELA ÁGUIA ARRANCADA DO PORTAL DO TEMPLO, SUSCITAM UMA REBELIÃO QUE OBRIGA ARQUELAU A MANDAR MATAR UNS TRÊS MIL.VAI DEPOIS A ROMA PARA FAZER-SE CONFIRMAR REI POR AUGUSTO E ANTIPAS, SEU IRMÃO, QUE TAMBÉM TINHA PRETENSÕES À COROA, VAI COM ELE. ESTA QUESTÃO É PLEITEADA PERANTE AUGUSTO. 745. No entanto, alguns judeus que só queriam perturbação e agitação, começaram a se reunir e a deplorar a cruel condenação de Matias e dos outros que tinham sido torturados, por causa daquela águia arrancada do portal do Templo. O temor que eles tinham de Herodes, os mantivera em silêncio, enquanto ele vivera; mas agora, depois da sua morte, eles se declaravam contra ele, como se os ultrajes que faziam à sua memória pudessem dar um alívio, no outro mundo, àqueles cuja morte lhes era muito sentida. Insistiram com Arqueiau que vingasse tão grande injustiça, a morte de alguns amigos de Herodes, que, diziam eles, haviam tido parte naquela execução e privasse do sumo sacerdócio àquele ao qual ele a havia dado, para honrar esse cargo com um homem virtuoso e digno dele. Embora Arqueiau, que se preparava para ir a Roma fazer-se confirmar rei por Augusto, ficasse muito irado com esse pedido, julgou dever procurar acalmar com a afabilidade, a tão grande tumulto. Mandou o principal oficial de suas tropas dizer aos sediciosos que eles não se deviam deixar levar a tal desejo de vingança, mas considerar que aquele castigo de que se queixavam tinha sido aplicado segundo as leis; que seu pedido feria sua autoridade, que o tempo não era próprio para semelhantes queixas, que eles deviam pensar em conservar a união e a paz, até que Augusto o tivesse confirmado na posse do reino e ele tivesse voltado de Roma; que então a tudo se haveria de dar providência, depois de madura ponderação e com o consentimento geral; mas que no momento, deviam ficar em paz e tranqüilos, sem se tornarem culpados do crime de uma revolta. Os sediciosos, porém, em vez de se acalmar, com essas ponderações, muito justas, mostraram com seus gritos que só se poderiam reduzir à obediência, com perigo de vida, porque a paixão que os fizera perder o respeito por seus superiores, os persuadia de que era coisa insuportável, não poder, mesmo depois da morte de Herodes, obter a vingança que pedia o sangue de seus amigos, que tão cruelmente haviam feito derramar. Eles não conheciam outra justiça, que não a que lhes pudesse dar aquela consolação, e o desejo de obtê-la não lhes permitia avaliar o perigo em que se metiam. Assim, em vez de se deixarem convencer pelas razões da parte do rei e de se conterem pelo respeito que lhe deviam, irritaram-se ainda mais e é fácil de se imaginar como a festa da Páscoa que estava próxima lhes aumentava o número, a sedição podia aumentar também. Porque não somente toda a Judéia soleniza essa ocorrência, com grande alegria e com inúmeras vítimas, mais que de costume, em memória da nossa libertação do Egito, mas uma multidão inumerável de judeus, que moram fora do reino, vêm por devoção a Jerusalém para assisti-la. Nesse tempo, esses rebeldes, que choravam a morte de Judas e de Matias, não se afastavam do Templo e não tinham vergonha de mendigar, para não serem obrigados a se afastar dali. O temor de Arquelau de que sua insolência fosse além fez com que mandasse um oficial com soldados para contê-los, antes que eles tivessem contaminado, com esse espírito de revolta, o resto do povo, ordenando-lhe que lhe trouxessem aqueles que ousassem resistir. Os rebeldes, vendo-os chegar, incitaram de tal modo o povo com seus gritos e com suas exortações a atacá-los, que eles se lançaram contra os mesmos e os mataram quase todos. Com dificuldade o oficial se pôde salvar, ferido, com o resto dos soldados; os sediciosos continuaram como antes, a celebração de seus sacrifícios. O rei, então, julgando que não podia deixar semelhante revolta impune, mandou contra eles todo o exército com ordem à cavalaria de matar os que saíssem do Templo para fugir, de impedir que os estrangeiros os socorressem. Assim, mataram três mil homens e o resto fugiu para os montes vizinhos. Mandou depois o soberano intimar que todos se retirassem; então o temor do perigo fez deixarem os sacrifícios àqueles que antes se mostravam tão atrevidos. 746. Depois que Arquelau reprimiu essa revolta como dissemos, deixou sua casa e o reino aos cuidados de Filipe, seu irmão e partiu para Roma; levou sua mãe, Nicolau, Ptolomeu e vários outros amigos. Salomé, sua tia, acompanhou-o também com toda a família e vários outros dos seus parentes fizeram o mesmo, com o pretexto de querer servi-lo para fazê-lo obter a confirmação do reino, mas na verdade, para obstaculá-lo e acusá-lo, dentre outras coisas, de ter feito matar tanta gente no Templo. Em Cesaréia ele encontrou Sabino, intendente de Augusto, na Síria, que partia para ir com urgência, à Judéia, a fim de conservar os tesouros deixados por Herodes. Mas Varo, ao qual Arquelau tinha mandado Ptolomeu, para esse fim, impediu-lhe a passagem. Sua consideração fez que em vez de se apoderar das fortalezas e de pôr o selo naqueles tesouros, ele deixasse tudo em poder de Arquelau até que o imperador tivesse determinado e ficou em Cesaréia. Mas depois quer Arquelau embarcou para Roma e que Varo partira, para voltar a Antioquia, ele foi a Jerusalém, alojou-se no palácio real e ordenou aos tesoureiros gerais que lhe prestassem contas e ordenou aos comandante das fortalezas da cidade que as entregassem a ele. Estes, que tinham ordens contrárias de Arquelau e que queriam conservar aquelas praças de guerra, até a sua volta, responderam que as conservariam para o imperador. 747. Nesse mesmo tempo, Antipas, um dos filhos de Herodes, foi também a Roma a conselho de Salomé, com o fim de obter o reino, em vez de Arqueiau, pois tinha sido nomeado por Herodes, para seu sucessor no testamento precedente, que, ele pretendia, tivesse mais valor que o primeiro. Levou consigo sua mãe e Ptolomeu, irmão de Nicolau, que tinha sido o maior amigo de Herodes e que era do seu partido; Irineu, homem mui eloqüente e que tinha durante vários anos se ocupado, por determinação do rei, seu pai, dos negócios do reino, mais que todos lhe infundira na idéia aquela pretensão, tanto que ele não quisera escutar os que o aconselhavam a ceder a Arqueiau, como sendo o mais velho e indicado pelo rei, como uma das suas últimas disposições. Quando Antipas chegou a Roma, todos os seus parentes uniram-se a ele, não tanto pelo afeto, como pelo ódio que tinham a Arqueiau e pelo desejo de gozar de uma espécie de liberdade, estando sujeitos somente aos romanos: ou pelo menos, com a esperança, de que, se aquele projeto desse resultado, encontrassem menos rigor e severidade sob o governo de Antipas do que sob o do seu irmão; Sabino escreveu a Augusto contra Arqueiau. 748. Arqueiau, então, para defender seu direito, fez apresentar ao imperador um memorial, que continha suas razões. Depois que Augusto leu estes memoriais, que viu as cartas que Varo e Sabino lhe haviam escrito e que teve conhecimento de a quanto montavam as rendas da Judéia, reuniu um grande conselho de seus maiores amigos, do qual deu a presidência a Caio César, filho de Agripa e de Júlia, sua filha, que ele tinha adotado. Em seguida deu audiência aos dois pretendentes. Antípatro, filho de Salomé, que era muito eloqüente e inimigo mortal de Arqueiau, começou por primeiro e disse: que era apenas por formalidade que Arqueiau disputava o reino, pois, sem esperar qual seria a esse respeito a vontade do imperador, ele se tinha apoderado dele, fazendo matar num dia de festa, um número tão grande de judeus. Que era verdade que eles bem o haviam merecido, mas somente poderia castigá-los, aquele que tinha o legítimo poder. Se ele o havia atribuído a si mesmo, como rei, sem esperar a confirmação do imperador, ele o havia ofendido muito e era ainda mais culpado; e assim não podia esperar ser por ele honrado com uma coroa, depois de ter mostrado que não considerava que ele tinha o direito de lha dar. Acusou em seguida a Arqueiau de ter com sua autoridade particular mudado vários oficiais do exército; de se ter sentado no trono e de aí ter, na qualidade de rei, ouvido várias causas, dando a sentença a várias delas, de ter concedido ao povo favores que ele lhe havia pedido, de ter libertado aqueles que seu pai tinha encerrado no hipódromo e por fim, de ter feito tudo o que teria podido fazer, depois de ter sido confirmado rei pelo imperador. Citou ainda várias outras coisas, umas, verdadeiras, outras, que a ambição de um homem ainda jovem e recém-elevado ao sumo sacerdócio tornava verossímeis. Acrescentou que Arqueiau tinha sentido tão pouco a morte de Herodes, que tinha na noite seguinte dado um banquete, que teria podido causar uma rebelião, tanto horror o povo sentira por vê-lo insensível às últimas obrigações, que ele devia ao próprio pai; e como um ator de teatro que desempenha diversos papéis, ele, durante o dia, parecia chorar, mas passara a noite no meio dos prazeres a que os reis se podem dar. Como se pode considerar um crime, cantar e regozijar-se depois da morte de um pai, como se fosse a morte de um inimigo, o imperador podia julgar da satisfação que poderia ter um homem de tão mau gênio, se consentisse em seu pedido e que era estranho que ele ousasse comparecer diante dele, para ser confirmado no reino, depois de ter agido em tantas coisas, como se já fosse rei. Antípatro insistiu em seguida, sobre aquele horrível assassínio, tão ímpio, cometido no Templo, onde num dia de festa se haviam visto estrangular como vítimas, não somente cidadãos, mas também estrangeiros e aquele lugar santo, repleto de cadáveres, por ordem, não de um príncipe inimigo e de outra nação, mas daquele que se servia do nome tão venerável de rei legítimo, para satisfazer à sua tirânica paixão e exercer toda espécie de crueldade. Herodes também, que conhecia as suas más inclinações, tinha pensado tão pouco, enquanto ainda tinha saúde, em deixar-lhe o reino que ele havia, no seu testemunho precedente, o qual tinha muito mais valor que o segundo, escolhido Antipas para seu sucessor, cujos costumes eram tão opostos aos de Arqueiau a tomado aquela deliberação, num tempo em que não se podia dizer, como depois, que seu espírito tinha morrido antes de seu corpo, mas quando as forças de um e de outro, ainda estavam todas completas e inteiras. Que quando mesmo fosse verdade que Herodes tinha desde então os mesmos sentimentos que demonstrou no seu último testamento, Arqueiau não havia mostrado que rei seria, desprezando a coroa das mãos do imperador e fazendo massacrar no Templo tantos cidadãos, quando ele mesmo ainda era um simples cidadão. Antípatro assim terminou seu discurso e tomou como testemunhas da verdade do que ele tinha dito vários dos parentes desses dois príncipes. Nicolau disse, ao contrário, para defender a causa de Arqueiau, que não se devia atribuir aquele sangue derramado perto do Templo, senão à insolência e teimosia dos rebeldes, que haviam obrigado Arqueiau a usar da força para contê-los; que ainda que parecesse que se revoltaram somente contra ele, era claro que o faziam também contra o imperador, pois, sem temer violar o direito das gentes, nem ter por Deus, respeito algum, na solenidade de tão grandiosa festa, tinham matado os que Arqueiau havia mandado, para apaziguar o tumulto e que Antípatro devia ter vergonha de se ter deixado levar de tal modo por sua paixão contra Arqueiau, atrevendo-se a desculpar àqueles rebeldes, em vez de reconhecer que os únicos culpados haviam sido os que foram mortos, pois, por primeiro haviam atacado os outros e os haviam obrigado a se servir das armas contra eles, quando as tinham consigo apenas para a própria defesa. Nicolau atirou do mesmo modo sobre os acusadores todas as outras coisas alegadas contra Arqueiau, dizendo que tudo ele havia feito, por sua opinião e que elas não eram como eles as tinham apresentado, pelo seu desejo ardente e injusto de prejudicar o príncipe, seu parente, cujo pai, não somente lhes havia feito tantos benefícios, mas que ele mesmo lhes havia sempre prestado muito bons serviços. Com relação ao testamento de Herodes, disse que ele tinha a mente muito sã e muito livre, quando o fizera; que as últimas são as que devem merecer toda a atenção e que o seu devia ser tanto mais válido, pois dele tinha feito o imperador senhor absoluto, deixando a ele que resolvesse como melhor lhe aprouvesse. Que ele tinha certeza de que esse grande príncipe não agiria como aqueles, que tendo recebido tantos benefícios de Herodes, esforçavam-se por subverter suas últimas disposições mas que ele teria prazer em confirmar o testamento de um rei seu amigo e aliado, pois havia uma extrema diferença entre a malícia dos inimigos de Arqueiau e a virtude e a boa-fé do imperador, que sem dúvida jamais se persuadiria de que um homem, que tinha com tanta prudência submetido todas as coisas à sua vontade, tivesse a mente turbada, quando escolhera para sucessor um de seus filhos, cheio de probidade, e que esperava somente a bondade do imperador, para ser mantido no reino que havia deixado. Quando Nicolau terminou este discurso, Arqueiau lançou-se de joelhos diante de Augusto. Ele o ergueu, com grande afabilidade e disse-lhe, que o julgava digno de reinar e que estava disposto a nada fazer que lhe fosse prejudicial e conforme ao testamento de seu pai. Assim, tendo dado a Arqueiau ou se o dividiria entre os filhos de Herodes, que tinham recorrido a ele, como tudo podendo esperar, do seu afeto por eles. CAPÍTULO 12 GRANDE REVOLTA NA JUDÉIA, ENQUANTO ARQUEIAU ESTAVA EM ROMA. VARO, GOVERNADOR DA SÍRIA, REPRIME-A. FILIPE, IRMÃO DE ARQUEIAU, VAI TAMBÉM A ROMA, NA ESPERANÇA DE OBTER UMA PARTE DO REINO. OS JUDEUS MANDAM EMBAIXADORES A AUGUSTO PARA PEDIR-LHE QUE OS DISPENSE DE OBEDECER AOS REIS E QUE OS REÚNA À SÍRIA. FALAM-LHE CONTRA ARQUELAU E CONTRA A MEMÓRIA DE HERODES. 749. Antes de Augusto dar por terminado este assunto, Maltacé, mãe de Arqueiau, caiu doente e morreu. Augusto soube por cartas de Varo, governador da Síria, que depois da partida de Arqueiau haviam surgido grandes perturbações na judéia; que ele para lá tinha ido logo, com suas tropas, que tinha feito castigar todos usar autores, e depois de ter dominado quase totalmente a sedição, tinha voltado a Antioquia. Essas cartas acrescentaram que ele tinha deixado uma legião em Jerusalém, para impedir que ainda se pudessem revoltar. 750. Assim, parecia que nada mais havia a temer, mas aconteceu justamente o contrário. Sabino, vendo-se fortalecido com tropas enviadas por Varo, procurou tornar-se senhor das fortalezas; não houve que sua incrível avareza o não fizesse empreender, para encontrar o dinheiro deixado por Herodes. Os judeus ficaram muito irritados; a festa de Pentecostes aproximava-se e eles vieram em grande número, de todos os lugares, não somente da Judéia, mas da Galiléia, da Iduméia, de Jerico e de além do Jordão, pelo desejo de se vingar Sabino, bem como por seu sentimento de piedade. Dividiram-se em três corpos, um dos quais ocupou o hipódromo, outro sitiou o Templo, dos lados do norte e do oriente; e o terceiro sitiou-o, do lado do ocidente, onde estava o palácio real. Rodearam assim os romanos de todos os lados e se preparavam para atacá-los. Sabino, atônito por vê-los tão animados e resolvidos a morrer ou a executar o seu empreendimento, escreveu a Varo pedido-lhe que viesse com urgência, para socorrer a legião que ele lá havia deixado, que, de outro modo, corria risco de ser inteiramente dizimada. Ele subiu depois à torre mais alta do castelo que Herodes tinha construído e à qual tinha dado o nome de Fazaela, em nome de Fazael, seu irmão, morto pelos partos, de onde fez sinal com a mão aos romanos, que dessem um ataque contra os judeus, querendo assim que, ao mesmo tempo em que ele não ousava confiar nos amigos, os outros se expusessem ao perigo em que sua avareza os havia lançado. Os romanos atacaram; o combate foi acirrado e vários judeus foram mortos. Mas essa perda não enfraqueceu o seu ardor. Uma parte subiu sobre os pórticos da última muralha do Templo, de onde lançaram uma grande quantidade de pedras sobre os romanos, uns com a mão, outros com fundas, outros atiraram também contra eles uma chuva de flechas e dardos; os que os romanos lhes lançavam de baixo, não chegavam a atingi-los. O combate durou assim, por muito tempo; por fim os romanos, não podendo mais tolerar que seus inimigos tivessem tal vantagem sobre eles, puseram fogo ao pórtico, sem que eles o percebessem e lançaram-lhe ainda grande quantidade de madeira. As chamas subiram logo até o telhado e como lá havia grande quantidade de piche, e de cera, com que se haviam fixado os ornamentos e as douraduras, ele incendiou-se facilmente. Aquelas soberbas cornijas ficaram logo reduzidas a cinzas e os que estavam em cima, surpreendidos pelo fogo, pereceram todos. Uns caíram de cima do teto, outros foram mortos pelos dardos que os romanos lhes lançavam, alguns, assustados pelo perigo e levados pelo desespero mataram-se ou se precipitaram nas chamas, e os que para se salvar queriam descer por onde haviam subido caíram nas mãos dos romanos que os mataram com grande facilidade, porque, não estando armados, sua coragem, por maior que fosse, tornava-lhe a resistência de todo inútil. Assim, nem um só conseguiu escapar, de todos quantos haviam subido ao teto do Templo. Os romanos então, apertando-se, passaram pelas chamas, para ir até onde o dinheiro consagrado por Deus estava guardado. Os soldados levaram-lhe uma parte e sabino parece ter recebido apenas quatrocentos talentos. Esse roubo do tesouro sagrado e a morte de vários dos mais ilustres judeus que pereceram naquele combate, deixaram os outros muito aflitos, mas não os fizeram perder a coragem. Um corpo dos mais valentes cercou o palácio real, ameaçou incendiá-lo e matar todos os que lá estavam, se não saíssem imediatamente; prometeu-lhes, se se retirassem, não lhes fazer mal algum, nem a Sabino, nem aos que estavam com ele, entre os quais, a maior parte dos gentis-homens da corte e Rufo e Grato que comandavam três mil homens dos mais valorosos soldados do exército de Herodes, cuja cavalaria obedecia a Rufo, que tinha também abraçado e fortificado de muito, o partido dos romanos. Os judeus prosseguindo sua empresa com grande ardor solaparam os muros e exortaram ao mesmo tempo os romanos a não se expor mais em seu intento de recobrar a liberdade. Sabino ter-se-ia retirado de boa vontade com os soldados que tinha consigo, mas, o mal que ele tinha feito aos judeus, impedia-lhe confiar em sua palavra; condições tão vantajosas eram-lhe suspeitas e ele esperava o socorro de Varo. 751. Estando as coisas neste pé, em Jerusalém, houve ainda diversos movimentos de agitação, em vários outros lugares da Judéia; uns a isso eram levados pela esperança do lucro, outros, pelo desejo de vingança. Dois mil dos melhores homens que Herodes tivera, e que foram licenciados, reuniram-se e foram atacar as tropas do rei, comandadas por Aquiabe, sobrinho de Herodes; mas como eram todos velhos soldados e muito experimentados Aquiabe não ousou enfrentá-los no campo e retirou-se com os seus a dois lugares fortes e de difícil acesso. Por outro lado judas, filho de Ezequias, chefe dos ladrões que Herodes outro-ra tinha trucidado com grande dificuldade, reuniu perto da cidade de Séforis, na Caliléia, um numeroso grupo de homens e entrou nas terras do rei, apoderou-se do arsenal, armou os seus, apanhou todo o dinheiro desse príncipe, que encontrou nos lugares vizinhos, saqueou tudo o que encontrou, tornou-se temível a todo o país; sua audácia o levava mesmo a aspirar à coroa, não que ele julgasse ter as qualidades que o poderiam elevar ao supremo cargo de honra, mas porque a licença de fazer o mal, dava-lhe a liberdade de tudo empreender. Um certo Simão, de que Herodes outrora tinham usado para assuntos importantes e cuja força, tamanho e boa aparência faziam sobressair entre os outros, teve a coragem de pôr a coroa na própria cabeça. Não somente um grande número de gente seguiu-o, mas a loucura do povo, levou-o a saudá-lo como rei e ele tinha tão boa opinião de si mesmo, que se persuadiu de que nenhum outro melhor do que ele merecia mesmo sê-lo. A primeira coisa que fez foi pôr fogo no palácio real de Jerico. Queimou depois vários outros, cujas riquezas deu aos seus, e estava para empreender coisas importantes, quando apareceram os obstáculos. Grato, que comandava as tropas do rei e que, como vimos, se havia juntado aos romanos, veio contra ele e depois de um grande combate onde os de Simão mostraram muito mais coragem do que ordem e ciência na guerra, foram derrotados e ele mesmo, foi aprisionado num lugar estreito, por onde pensava poder salvar-se e Grato fez cortar-lhe a cabeça. Um grupo de outros homens, semelhante a este, que tinha seguido a Simão, queimou também nesse mesmo tempo o palácio real de Amata, situado nas margens do Jordão e via-se reinar então tal furor em toda a Judéia, quer pela falta do rei, cuja virtude mantivesse o povo dentro do seu dever, quer porque os romanos, em vez de apaziguar e acalmar o mal, reprimindo os sediciosos, os irritavam ainda mais, com sua maneira insolente de agir e por sua insaciável ambição e avareza. Um certo Atronjo, cuja origem era tão baixa, que ele tinha sido antes um simples pastor e tinha por único mérito ser muito forte e muito grande de corpo, chegou ao cúmulo do atrevimento, de querer também fazer-se rei e comprar com preço da própria vida, o poder de fazer mal a todos. Ele tinha quatro irmãos, grandes e valentes como ele, que comandavam também um grupo de soldados e se persuadiam de que, para se chegar ao poder, era suficiente ter a coragem de tudo empreender. Uma grande multidão de gente se uniu a esses cinco irmãos e Atronjo servia-se de seus irmãos como de seus lugar-tenentes para fazer incursões de todos os lados enquanto ele com a coroa na cabeça orientava os negócios e dava as ordens com soberana autoridade. Assim, ficou por muito tempo nessa condição e podia-se dizer de algum modo que ele não tinha em vão o nome de rei, pois tudo o que ele ordenava era feito e executado. Seus maiores esforços foram contra os romanos e contra as tropas do rei, que igualmente ele odiava, uns por causa dos males que faziam, outros por causa do que haviam feito, sob o reinado de Herodes. Matou a muitos e fazia-lhes dia a dia uma guerra mais cruel, quer pela esperança de enriquecer, quer porque as vantagens que obtinha sobre eles inflamava-lhe a coragem. Um grupo de romanos que levavam trigos e armas ao campo, tendo caído numa emboscada que ele lhes armara perto de Emaús, aquele que os comandava e quarenta dos mais valentes, foram mortos a flechadas e o resto, julgava-se perdido, quando Grato sobreveio com tropas do rei e os salvou; mas os mortos ficaram em poder dos revoltosos. Os cinco irmãos continuaram por muito tempo a incomodar, desse modo, aos romanos, em diversos combates e a aumentar os males de sua própria nação. Mas, por fim, um deles foi vencido e preso por Grato e um outro foi preso por Ptolomeu. Atronjo caiu também depois em poder de Arquelau e algum tempo depois, o último de todos, assustado com a desgraça de seus irmãos, não tendo mais esperança de salvação porque o cansaço e as doenças tinham arruinado seus soldados, entregou-se, sob palavra, ao tio de Arquelau. Em tão estranha confusão, que enchia toda a Judéia de latrocínio, apenas alguém podia ajuntar um grupo de sediciosos, tomava logo o nome de rei. O país estava estraçalhado, e a menor parte do mal caiu sobre os romanos, porque os judeus, em vez de se reunir, para juntos voltarem contra eles suas armas, dividiam-se entre esses sediciosos e matavam-se uns aos outros. 752. Varo, apenas soube pelas cartas de Sabino o que se passava e o perigo que corria a legião sitiada em Jerusalém, tomou as outras que estavam na Síria, com quatro companhias de cavalaria e as tropas auxiliares que ele tirou dos reis e tetrarcas, para ir urgentemente em socorro dos seus e marcou o encontro de todas as suas tropas em Tolemaida. Os de Berita aumentaram-nas com mil e quinhentos homens, quando passaram pela sua cidade; Aretas, rei de Petra, que pelo ódio que tinha a Herodes, tinha feito aliança com os romanos, mandou-lhe também um corpo considerável de cavalaria e de infantaria. Depois que Varo reuniu assim em Tolemaida, todo o seu exército, deu uma parte dele ao seu filho, ajudado por um de seus amigos, com ordem de entrar na Galiléia, que está perto de Tolemaida. Ele cumpriu essa ordem, pôs em fuga todos os que quiseram oferecer resistência, tomou a cidade de Séforis, vendeu em leilão todos os seus habitantes, incendiou-a e a reduziu a cinzas. Varo, por outro lado marchou em pessoa para Samaria com o resto do exército, sem nada empreender contra aquela cidade, porque ela não tomara parte na revolta e acampou numa aldeia chamada Aro, que pertencia a Ptolomeu. Os árabes incendiaram-na, porque seu ódio por Herodes era tão grande que se estendia até aos seus amigos. O exército avançou depois para Safo e embora a praça fosse forte, os árabes a tomaram, saquearam-na e a incendiaram como as outras. Não perdoaram a nada do que encontraram no seu caminho e passaram tudo a ferro e fogo. Quanto à cidade de Emaús que os habitantes tinham abandonado, foi por ordem de Varo incendiada, como vingança, porque vários romanos lá haviam sido mortos. Logo que os judeus que cercavam a legião romana souberam que Varo se aproximava com seu exército, levantaram o cerco e então os sitiados, os maiorais da cidade e José, neto do rei Herodes, compareceram à sua presença; mas Sabino retirou-se secretamente para o mar. Varo repreendeu severamente os habitantes de Jerusalém e eles desculparam-se, protestando que de nenhum modo haviam participado do empreendimento, mas que tudo fora feito pelo povo que tinha vindo de todas as partes para a solenidade da festa; e muito ao contrário, em vez de terem eles sitiado os romanos, eles mesmos haviam sido cercados por esse grande número de estrangeiros. Varo mandou em seguida uma parte de seu exército para uma cuidadosa indagação em todo o reino procurando os autores da revolta; dois mil foram crucificados e aos demais ele deixou livres. Como ele julgava não haver mais necessidade de tropas e estava desgostoso com os males, que o desejo de enriquecer tinha levado as suas a proceder contra suas ordens, ele as queria mandar de volta, quando soube que dez mil judeus se haviam reunido. Marchou rapidamente para dar-lhes combate, mas eles não ousaram esperar e se entregaram a Aquiabe. Varo contentou-se de mandar os chefes a Augusto que perdoou a maior parte deles e mandou castigar somente alguns dos parentes de Herodes, que ele julgou merecer, porque nem a consideração do sangue, nem da justiça não os havia podido manter no cumprimento do dever. Depois que Varo apaziguou todas essas desordens, e restabeleceu a calma na Judéia, deixou como guarnição na fortaleza de Jerusalém a mesma legião que já lá estava antes e retirou-se para Antioquia. 753. Enquanto as coisas deste modo se passavam na (udéia, Arquelau encontrou um novo obstáculo às suas pretensões, pelo motivo que passo a dizer. Cinqüenta embaixadores dos judeus vieram com permissão de Varo procurar Augusto, para pedir-lhe que lhes permitisse viver segundo suas leis; e mais de oito mil judeus, que moravam em Roma, uniram-se a eles nessa petição. O imperador, para esse fim, reuniu uma grande assembléia de seus amigos dos mais ilustres romanos no templo de Apoio, que tinha feito construir com ingentes despesas. Esses embaixadores, seguidos pelos outros judeus, lá se apresentaram e Arquelau também compareceu com seus amigos; mas seus parentes não sabiam que partido tomar, porque de um lado eles se odiavam, e por outro, tinham vergonha de parecer favorecer, na presença do imperador, aos inimigos de um príncipe de seu sangue. Filipe, irmão de Arquelau, que Varo muito estimava, veio também da Síria a seu conselho, com o pretexto de ajudar seu irmão, mas na verdade com a esperança de que se esses embaixadores obtivessem o que desejavam e o reino fosse dividido entre os filhos de Herodes, ele lhe pudesse também obter uma parte. Os embaixadores falaram primeiro e disseram que não havia leis que Herodes não tivesse violado, com sua conduta injusta e criminosa; que ele fora rei só de nome, pois jamais tirano algum havia sido tão cruel, não se contentando de empregar todos os meios de que os outros se serviam para a desgraça de seus súditos, ele tinha inventado outros novos, que seria inútil falar-se do grande número de judeus que ele tinha feito morrer, pois a condição daqueles aos quais não tinham tirado à vida, era pior do que a dos mortos, quer pelo temor contínuo que sua desumanidade lhes causava, quer porque ele os despojava de todos os seus bens. Que ele tinha construído e embelezado as cidades fora de seu território, apenas para arruinar as do seu reino com horríveis impostos e exações. Que tendo encontrado a Judéia florescente e na abundância, ele a havia reduzido à sua miséria anterior. Que ele tinha feito morrer sem motivo, várias pessoas de posição, a fim de se apoderar de seus bens e que os havia arrebatado também àqueles aos quais não tinha tirado a vida. Que além de todos os impostos comuns, de que ninguém estava isento, era-se ainda obrigado a dar grandes somas, para satisfazer à ambição de seus amigos e dos seus cortesãos e para se livrar das injustas vexações de seus oficiais. Que eles não falavam das moças que ele havia violado e das mulheres de condição, às quais ele havia feito o mesmo ultraje, porque o único alívio que elas poderiam ter em sua extrema dor era que tudo cairia logo no esquecimento. Que enfim, se fora possível que um animal feroz, como ele, tivesse o governo de um reino, não haveria quem tratasse os homens com mais crueldade, do que esse príncipe os havia tratado, pois não se via em história alguma, algo comparável aos males que ele lhes havia causado; e assim, na suposição que faziam, de que aquele que o substituísse não usasse de um proceder diferente, não faria dificuldade em reconhecer a Arquelau como rei, que tinham em consideração a ele honrado a memória de seu pai, com um luto público e que não havia serviços que não estivessem dispostos a lhe prestar para ganhar-lhe a afeição; mas que ele, ao contrário, como se temesse que se duvidasse de que era filho de Herodes, tinha logo manifestado que opinião se devia ter dele, pois, sem esperar que o imperador o tivesse confirmado no reino e quando toda sua fortuna dependia ainda de sua vontade, ele tinha dado aos seus novos súditos uma tão bela prova de sua virtude, de sua moderação e de sua justiça, começando por fazer degolar no Templo em vez de vítimas, três mil homens da mesma nação; que se podia julgar por essa ação tão detestável se eles faziam mal em odiar um homem, que depois de tal crime, os acusava de sedição e de crimes de lesa-majestade. Os embaixadores terminaram suplicando a Augusto que mudasse a forma de seu governo, não os sujeitando mais a reis, mas anexando-os à Síria para dependerem somente daqueles aos quais ele desse o governo e que então veriam se eles eram mesmo sediciosos e se não saberiam obedecer aos que tinham o legítimo poder de governar. Depois que os embaixadores assim falaram, Nicolau tomou a defesa de Herodes e de Arquelau. Disse que, quanto ao primeiro, era estranho que ninguém o tivesse acusado durante a vida — quando se podia esperar da justiça do imperador o castigo de seus crimes, se fossem verdadeiros — e se tentasse, depois de sua morte, desonrá-lo à sua memória. Quanto a Arquelau, dever-se-ia considerar que a ação de que o censuravam, era somente devida à insolência e à revolta dos que o haviam obrigado a castigá-los, quando calcando aos pés todas as leis e o respeito que lhe deviam, tinham matado a golpes de espada e a pedradas os que ele havia mandado para impedir que continuassem a promover a agitação. Nicolau terminou seu discurso acusando-os de serem facciosos, sempre prontos a se revoltar, porque não se podiam decidir a obedecer às leis e à justiça, mas queriam ser senhores e dominar. CAPÍTULO 13 AUGUSTO CONFIRMA O TESTAMENTO DE HERODES E ENTREGA AOS SEUS FILHOS O QUE ELE LHES HAVIA LEGADO. 754. Depois desta audiência de Augusto, dissolveu-se a assembléia e alguns dias depois, ele concedeu a Arquelau não o reino da Judéia inteiro, mas a metade, com o título de Etnarquia e prometeu fazê-lo rei, quando disso se tivesse tornado digno, pela sua virtude. Dividiu a outra metade entre Filipe e Antipas, filhos também de Herodes, que disputavam o trono a Arquelau. Antipas recebeu a Galiléia com a região que está além do rio, cuja renda era de mais ou menos duzentos talentos; Filipe recebeu a Batanéia, a Traconítida e a Auranita com uma parte do que tinham pertencido a Zenódoro, cuja renda chegava a cem talentos. Arquelau recebeu a Judéia, a Iduméia e Samaria, à qual Augusto perdoou a quarta parte dos impostos, que antes ela pagava, porque tinha se conservado pacífica, quando as outras se haviam revoltado. A Torre de Estratão, Sebaste, Jope e Jerusalém estavam nesta partilha de Arquelau. Mas Gaza, Gadara e Ipom, porque viviam segundo os costumes dos gregos, Augusto separou-as do reino, para anexá-las à Síria e o rendimento anual de Arquelau era de seiscentos talentos. Vemos assim o que os filhos de Herodes herdaram de seu pai. A Salomé, além das cidades de Jamnia, Azoto, Fazaelida e cinco mil peças de prata que Herodes lhe havia deixado, Augusto deu ainda um palácio em Ascalom. Sua renda era de sessenta talentos e ela tinha sua moradia no país, que estava sob o governo de Arquelau. O imperador confirmou também aos outros parentes de Herodes os legados feitos por seu testamento; e além do que ele havia deixado às suas duas filhas, que ainda não se tinham casado, ele lhes deu liberalmente a cada uma, duzentas e cinqüenta mil peças de prata; e fê-las desposar os dois filhos de Feroras. A magnificência desse grande príncipe foi ainda muito além; pois ele deu aos filhos de Herodes mil e quinhentos talentos, que ele lhe havia legado e contentou-se de reter uma parte muito pequena, de tantos vasos preciosos, que também ele lhe havia deixado, não pelo seu valor, mas para mostrar que ele queria conservar a recordação de um rei, que ele tinha estimado. CAPÍTULO 14 SOBRE UM IMPOSTOR QUE SE DIZIA SER ALEXANDRE, FILHO DE HERODES. AUGUSTO DESCOBRE A FRAUDE E O MANDA PARA A PRISÃO. 755. Nesse mesmo tempo, quando Augusto terminava a distribuição dos bens deixados por Herodes em seu testamento, um judeu, educado em Sidom, em casa de um liberto de um cidadão romano, tentou apoderar-se do trono, pela semelhança que tinha, com Alexandre, que o rei Herodes, seu pai, tinha feito morrer; essa semelhança era tanta, que aqueles que haviam'conhecido o jovem príncipe estavam persuadidos de que era ele mesmo. Para poder enganar, ele serviu-se de um homem de sua tribo, que tinha um conhecimento particular de tudo o que se havia passado na família real e que não sendo menos astuto do que mau, era muito capaz de suscitar aquela perturbação. Assim, ajudado por ele, apresentou-se como Alexandre, que um daqueles aos quais Herodes havia encarregado de matar, bem como a Aristóbulo, seu irmão, os tinha salvo e havia posto outros em seu lugar. Esse homem, ensoberbecido pelas esperanças com que se iludia, tentou enganar aos outros, como enganava a si mesmo. Foi a Creta, persuadiu ali todos os judeus com os quais falou, tirou-lhes dinheiro e depois passou à ilha de Meios, onde acreditando que ele era sangue real, deram-lhe ainda muita atenção. Ele imaginou então mais do que nunca que poderia conseguir o seu desejo; prometeu recompensar aos que o ajudassem, e, acompanhado por eles, determinou ir a Roma. Quando pôs o pé em terra, em Puteolos, todos os judeus que lá viviam e particularmente os que Herodes havia beneficiado, apressaram-se e ir visitá-lo e já o consideravam como seu rei, de que não há motivo de se admirar, pois os homens facilmente acreditam nas coisas que lhes são agradáveis, e era difícil não se ser enganado por tão perfeita semelhança. Mesmo os que tinham vivido familiarmente com Alexandre, duvidavam muito pouco de que não fosse ele mesmo e não temiam afirmá-lo com juramento. Quando esta notícia se divulgou por Roma, todos os judeus que lá moravam, em grande número, foram dar graças a Deus, pela felicidade inesperada, ante esse impostor, e suas aclamações, misturadas com os votos que faziam pela sua prosperidade, demonstravam qual o seu respeito pela grandeza de sua origem, da parte da rainha Mariana, de quem julgavam que ele era filho. Encontraram-no numa liteira, com um soberbo séquito, porque os judeus dos lugares por onde ele passava, nada poupavam para suas despesas. Embora tivessem falado a Augusto desse pretenso rei do judeus, ele não quis acreditar, porque conhecia muito bem a habilidade de Herodes, para crer que ele se tivesse deixado enganar num assunto tão importante. No entanto, como não queria dizer de todo que não era verdade, ordenou a um de seus libertos de nome Celado que conhecia Alexandre muito bem e Aristóbulo, seu irmão, que lhe trouxesse aquele homem. Ele foi procurá-lo e deixou-se enganar, como os demais. Mas Augusto não se iludiu, porque a todos sobrepujava em inteligência e, aquela semelhança, embora perfeita, não impediu que ele notasse alguma diferença, observando atentamente o impostor, quer, porque o trabalho lhe produzira calos nas mãos, pois sempre antes ele vivera em condição humilde, quer porque nele não se via aquela graça, que a nobreza do sangue e a educação dão aos que são criados com esmero e muito cuidado. Assim, não duvidando de que o mestre e o discípulo agiam de acordo para enganar a todos, ele perguntou àquele falso Alexandre, que havia acontecido ao seu irmão Aristóbulo e porque ele não viera, como ele, pedir para ser tratado segundo o que tinham motivo de pretender. Ele respondeu-lhe que tinha ficado na ilha de Chipre, para não se expor ao perigo do mar, a fim de que, se ele morresse, ficasse pelo menos um dos filhos de Mariana. Tendo falado assim, tão ousadamente, o companheiro, que era o autor do embuste, confirmou o que ele acabava de dizer. Mas Augusto, chamou à parte este moço e disse-lhe: "Contanto que não continueis a procurar enganar-me, como aos demais, eu vos prometo como recompensa salvar-vos a vida. Dizei-me, portanto, quem sois e quem vos pôs na idéia uma proeza tão arriscada, pois, um objetivo tão grande e tão ousado, está acima de vossa idade." Estas palavras do imperador espantaram de tal modo aquele miserável, que ele confessou toda a comédia e disse-lhe quem a tinha imaginado e de que modo tinha sido executada. Augusto, para manter o que tinha prometido, contentou-se de mandá-lo à prisão, nas galeras, para o que ele servia muito bem, pois era forte e robusto, e mandou prender o outro que o havia induzido à falcatrua. Quanto aos judeus da Ilha de Meios, ficaram quietos pelo dinheiro que lhes haviam dado e empregado tão mal para honrar a esse falso Alexandre e um fim tão vergonhoso foi digno de tão temerária empresa. CAPÍTULO 15 ARQUELAU DESPOSA GLAFIRA, VIÚVA DE ALEXANDRE, SEU IRMÃO. AUGUSTO, ANTE AS QUEIXAS QUE OS JUDEUS FAZEM DELE O RELEGA PARA VIENA, NAS GÁLIAS, E UNE À SÍRIA OS TERRITÓRIOS QUE ELE POSSUÍA. MORTE DE GLAFIRA. 756. Depois quer Arquelau voltou à judéia e tomou posse de sua Etnarquia, tirou o sumo sacerdócio de Joazar, filho de Boeto, que ele acusava de ter favorecido o partido dos sediciosos e a deu a Eleazar, irmão de Joazar. Reconstruiu depois magnificamente o palácio de Jerico, fez levar para uma planície de palmeiras que tinha feito abaixo, a metade da água que passava na aldeia de Neara; construiu uma vila à qual deu o nome de Arquelaide e não teve receio de violar as leis de nossos pais, desposando Glafira, filha do rei Arquelau, viúva de Alexandre seu irmão, do qual ela tivera filhos. Eleazar não exerceu o sumo sacerdócio por muito tempo, porque Arquelau lha tirou para dá-la a Jesus, filho de Sias. 757. No décimo ano do governo desse príncipe, os mais ilustres dos judeus e dos samaritanos, não podendo tolerar por mais tempo seu domínio tirânico, acusaram-no perante Augusto e o fizeram tão ousadamente, expondo-lhe suas queixas, quanto sabiam que ele lhe havia expressamente recomendado governar seus súditos com bondade e justiça. Augusto irritou-se de tal modo contra ele, que, sem se lhe dignar escrever, disse a Arquelau, seu representante em Roma, que partisse naquela mesma hora para trazê-lo a Roma. Este obedeceu e chegando à Judéia, encontrou seu senhor num grande banquete, que ele dava aos amigos. Expôs-lhe sua comissão e o acompanhou a Roma, onde depois que Augusto ouviu seus acusadores e sua defesa, confiscou-lhe tudo o que ele tinha de dinheiro e o mandou exilado a Viena, cidade de Gálias. 758. O soberano, antes de receber ordem de vir a Roma, ter com Augusto, tivera um sonho, que ele contara aos amigos. Parecia-lhe ver dez espigas de trigo maduras e cheias de grãos e os bois as comiam. Despertando, pensou não deixar de dar importância a esse sonho e mandou buscar os mais peritos na interpretação dos mesmos; mas, como eles não estavam de acordo, um dentre eles, de nome Simão, essênio, rogou-lhe que perdoasse, se tomava a liberdade de lhe dar a explicação e disse-lhe em seguida que aquele sonho pressagiava uma mudança de fortuna, que não lhe seria favorável, porque os bois são animais que passam a vida num trabalho contínuo e lavrando a terra, fazem-na mudar de lugar e de forma. As dez espigas significavam dez anos, porque não se passa um ano, que a terra não produza novos grãos, numa revolução contínua: e assim, no fim de dez anos terminaria também o seu governo. Cinco dias depois que Simão assim lhe dera a explicação do sonho, o seu representante de Roma trouxe-lhe a ordem de acompanhá-lo até Augusto. A precisa Glafira, sua mulher, também teve um sonho. Nós sabemos como ela havia desposado em primeiras núpcias a Alexandre, filho de Herodes. Depois de sua morte, o rei Arquelau, seu pai, casou-a com Juba, rei da Mauritânia, que morreu também, e, ficando viúva, voltou à Capadócia, para junto de seu pai. Arquelau, então o etnarca, concebeu por ela uma paixão tão violenta, que repudiou Mariana, sua mulher, e a desposou. Estando com ele, teve ela um sonho. Parecia-lhe ver Alexandre, seu primeiro marido e transbordando de alegria, ela queria abraçá-lo, mas ele dissera-lhe estas palavras de recriminação: "Vós bem mostrastes que se tem razão de crer que não se deve confiar nas mulheres, pois, tendo-me sido dada virgem, e tendo tido filhos de vós, o desejo de passar a segundas núpcias vos fez esquecer o amor, que me deveríeis conservar inviolável; e não vos contentado de me ter feito tal ultraje, não tivestes vergonha de tomar um terceiro marido e de voltar imprudentemente à minha família, desposando Arquelau, meu irmão. Mas meu afeto não será mais constante do que o vosso; não vos esquecerei com me esquecestes; e, tirando-vos de mim, como uma coisa que me pertence, eu vos livrarei da infâmia na qual viveis." A princesa contou o sonho a algumas de suas amigas e morreu cinco dias depois. Julguei que não era fora de propósito narrar isto a respeito de reis e grandes, porque pode servir não somente de exemplo mas como prova da imortalidade da alma e da divina providência. E se alguém achar que estas coisas são inacreditáveis pode conservar a sua opinião, sem se admirar de que outras a elas prestem fé, e, se lhes fizerem impressão, sirvam para incitá-los à virtude. Quanto aos territórios que Arquelau possuía, Augusto anexou-os à Síria e deu a Cirênio que fora cônsul a incumbência de fazer o inventário e vender o palácio de Arquelau. Livro Décimo Oitavo CAPÍTULO 1 JUDAS E SADOQUE APROVEITAM A OCASIÃO DO INVENTÁRIO QUE SE FAZIA NA JUDÉIA PARA CONSTITUIR UMA QUARTA SEITA E SUSCITAM UMA GRANDE GUERRA CIVIL. 759. Cirênio, senador romano, homem de grandes méritos e que depois de haver passado por todos os degraus da honra fora elevado à dignidade de cônsul, foi, como dissemos, designado por Augusto para governar a Síria, com ordem de fazer o inventário do que havia em seu território. Copônio, que comandava o corpo de cavalaria, foi mandado com ele para exercer domínio sobre os judeus. Mas como a Judéia acabara de ser anexada à Síria, foi Cirênio, e não ele, quem fez o inventário e se apoderou de todo o dinheiro que pertencia a Arquelau. Os judeus, de início, não toleravam aquele inventário, mas Joazar, sumo sacerdote, filho de Boeto, persuadiu-os a não se obstinarem na oposição. Algum tempo depois, um certo Judas, gaulanita, da cidade de Gamala, ajudado por um fariseu de nome Sadoque, incitou o povo a se rebelar, dizendo ser o inventário um claro indício de que os queriam reduzir à escravidão e, para exortá-los a manter a sua liberdade, assegurou-lhes que, se o resultado de sua empresa fosse feliz, eles desfrutariam gloriosamente tanto o descanso quanto os seus bens, mas não deviam esperar que Deus lhes fosse favorável se eles não fizessem, nos que lhes concernia, tudo o que fosse possível. O povo ficou tão impressionado com essas palavras que imediatamente se preparou para a rebelião. É inacreditável a perturbação que esses dois homens suscitaram por todos os lados. Assassínios e latrocínios eram praticados. Saqueava-se e roubava-se, tanto a amigos quanto a inimigos, indiferentemente, sob o pretexto de se estar defendendo a liberdade pública. A raça desses sediciosos matava as pessoas mais ilustres e ricas pelo desejo de enriquecer, chegando a tal excesso de furor que uma grande carestia sobreveio, mas isso não impediu que eles atacassem as cidades e derramassem o sangue dos próprios compatriotas. Viu-se o fogo dessa cruel guerra civil levar as suas chamas até o Templo de Deus, tão perigoso é desejar subverter as leis e os costumes do próprio país. A vaidade que tiveram Judas e Sadoque de fundar uma quarta seita e atrair a eles todos os que queriam as perturbações e a agitação foi a causa desse grande mal, que não perturbou somente toda a Judéia, mas lançou a semente de muitos males pelos quais depois ela foi amargurada. A esse respeito julguei conveniente dizer alguma coisa das máximas dessa seita. CAPÍTULO 2 SOBRE AS QUATRO SEITAS QUE HAVIA ENTRE OS JUDEUS. 760. Entre os judeus, os que faziam profissão particular de sabedoria estavam, há vários séculos, divididos em três seitas: os essênios, os saduceus e os fariseus, das quais, embora eu já tenha falado no segundo livro da Guerra dos judeus, penso que devo dizer aqui também alguma coisa. A maneira de viver dos fariseus não é fácil nem cheia de delícias: é simples. Eles se apegam obstinadamente ao que se convencem que devem abraçar. Honram de tal modo os velhos que não ousam nem mesmo contradizê-los. Atribuem ao destino tudo o que acontece, sem, todavia, tirar ao homem o poder de consentir. De sorte que, sendo tudo feito por ordem de Deus, depende, no entanto, da nossa vontade entregarmo-nos à virtude ou ao vício. Eles julgam que as almas são imortais, julgadas em um outro mundo e recompensadas ou castigadas segundo foram neste — virtuosas ou viciosas — e que umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra vida, e outras retornam a esta. Eles granjearam, por essa crença, tão grande autoridade entre o povo que este segue os seus sentimentos em tudo o que se refere ao culto de Deus e às orações solenes que lhe são feitas. Assim, cidades inteiras dão testemunhos valiosos de sua virtude, de sua maneira de viver e de seus discursos. A opinião dos saduceus é que as almas morrem com os corpos e que a única coisa que somos obrigados a fazer é observar a lei, sendo um ato de virtude não tentar exceder em sabedoria os que a ensinam. Os adeptos dessa seita são em pequeno número, mas ela é composta de pessoas da mais alta condição. Quase sempre, nada se faz segundo o seu parecer, porque quando eles são elevados aos cargos e às honras, muitas vezes contra a própria vontade, são obrigados a se conformar com o proceder dos fariseus, pois o povo não permitiria qualquer oposição a estes. Os essênios, a terceira seita, atribuem e entregam todas as coisas, sem exceção, à providência de Deus. Crêem que as almas são imortais, acham que se deve fazer todo o possível para praticar a justiça e se contentam em enviar as suas ofertas ao Templo, sem oferecer lá os sacrifícios, porque o fazem em particular, com cerimônias ainda maiores. Os seus costumes são irreprocháveis, e a sua única ocupação é cultivar a terra. Sua virtude é tão admirável que supera em muito a dos gregos e de outras nações, porque eles fazem disso todo o seu empenho e preocupação e a ela se aplicam continuamente. Possuem todos os bens em comum, sem que os ricos tenham maior parte que os pobres. O seu número é superior a quatro mil. Não têm mulheres nem criados, porque estão convencidos de que as mulheres não contribuem para o descanso da vida. Quanto aos criados, consideram uma ofensa à natureza, que fez todos os homens iguais, querer sujeitá-los. Assim, eles se servem uns dos outros e escolhem homens de bem da ordem dos sacerdotes, que recebem tudo o que eles recolhem de seu trabalho e têm o cuidado de fornecer alimento a todos. Essa maneira de viver é quase igual à dos que chamamos plistes e vivem entre os dácios. Judas, de quem acabamos de falar, foi o fundador da quarta seita. Está em tudo de acordo com a dos fariseus, exceto que aqueles que fazem profissão para adotá-la afirmam que há um só Deus, ao qual se deve reconhecer por Senhor e Rei. Eles têm um amor tão ardente pela liberdade que não há tormen-tos que não sofram ou que não deixem sofrer as pessoas mais caras antes de atribuir a quem quer que seja o nome de senhor e mestre. A esse respeito não me delongarei mais, porque é coisa conhecida de tantas pessoas que, em vez de temer que não se preste fé ao que digo, tenho somente o receio de não poder expressar até que ponto vai a sua incrível paciência e o seu desprezo pela dor. Mas essa invencível firmeza aumentou ainda pela maneira ultrajosa como Géssio Floro, governador da Judéia, tratou a nossa nação e a levou por fim a se revoltar contra os romanos. CAPÍTULO 3 MORTE DE SALOMÉ, IRMÃ DO REI HERODES, O GRANDE. MORTE DE AUGUSTO. TIBÉRIO SUCEDE-O NO GOVERNO DO IMPÉRIO. HERODES, O TETRARCA, CONSTRÓI EM HONRA DE TIBÉRIO A CIDADE DE TIBERÍADES. AGITAÇÕES ENTRE OS PARTOS E NA ARMÊNIA. OUTRAS PERTURBAÇÕES NO REINO DE COMAGENA. GERMÂNICO É ENVIADO DE ROMA AO ORIENTE PARA CONSOLIDAR ALI A AUTORIDADE DO IMPÉRIO, E É ENVENENADO POR PISÃO. 761. Depois que Cirênio vendeu os bens confiscados a Arquelau e terminou o inventário, que se realizou trinta e sete anos depois da batalha de Áccio, ganha por Augusto contra Antônio, os judeus se rebelaram contra Joazar, sumo sacerdote, e ele tirou-lhe o cargo e deu-o Anano, filho de Sete. 762. Vimos como Herodes e Filipe foram mantidos por Augusto nas tetrarquias que o rei Herodes, o Grande, seu pai, lhes deixou em seu testamento. Esses dois príncipes tudo fizeram para se estabelecer o mais vantajosamente possível. Herodes cercou Seforis com muralhas, tornou-a a principal e a mais forte de todas as praças da Galileia. Fortificou também a cidade de Betaranfta e a chamou de Julíada, em honra à imperatriz. Filipe, por sua vez, embelezou muito Paneada, que está perto da nascente do Jordão, e a chamou Cesaréia. Aumentou também de tal modo a aldeia de Betsaida, situada às margens do lago de Genesaré, que se poderia tomá-la por uma cidade. Povoou-a, enriqueceu-a e a chamou Julíada, em honra a Júlia, filha de Augusto. 763. Copônio governava a Judéia, quando chegou o dia da festa dos Pães Asmos, a que chamamos Páscoa. Os sacerdotes, segundo o costume, abriram as portas do Templo à meia-noite. Então, alguns samaritanos entraram secretamente em Jerusalém e espalharam ossos de homens mortos pelas galerias e em todo o resto do Templo, o que fez os sacerdotes serem mais cuidadosos para o futuro. 764. Pouco depois, Copônio voltou a Roma. Foi substituído por Marco Ambívio no governo da Judéia. Ao mesmo tempo, morreu Salomé, irmã do rei Herodes, o Grande. Ela deixou à Júlia,* além de sua toparquia, Jamnia, Fazaélida, situada no campo, e Arquelaide, onde havia uma imensa plantação de palmeiras que produziam excelentes frutos. _____________________ * Esposa de Augusto. 765. Anio Rufo sucedeu a Ambívio, e foi durante o seu governo que morreu César Augusto, na idade de setenta e sete anos. Esse príncipe, que foi o segundo imperador dos romanos, reinou cinqüenta e sete anos, seis meses e dois dias, incluindo-se os quatorze anos que reinou com Antônio. 766. Tibério Nero, filho de Lívia, sua mulher, substituiu-o no império e enviou Valério Grato à Judéia como sucessor de Rufo, tornando-se aquele o seu quinto governador. Ele tirou o sumo sacerdócio a Anano e deu-o a Ismael, filho de Fabo. Mas logo depois Ismael foi deposto, e em seu lugar foi colocado Eleazar, filho de Anano. Um ano depois, depuseram também a este, que foi substituído por Simão, filho de Camite. Ele também só ocupou o cargo durante um ano, sendo obrigado a resigná-lo em favor de José, cognominado Caifás. Grato, após ter durante onze anos governado a Judéia, voltou a Roma, e Pôncio Pilatos sucedeu-o. 767. Herodes, o tetrarca, conquistara as boas graças do imperador Tibério. Construiu uma cidade à qual, por causa dele, deu o nome de Tiberíades. Escolheu para esse fim um dos territórios mais férteis de toda a Galiléia, que está à beira do lago de Genesaré e muito próximo das águas quentes de Emaús. Povoou essa nova cidade em parte com estrangeiros e em parte com galileus, alguns dos quais foram obrigados a se estabelecer ali, mas alguns nobres para ela se dirigiram de boa vontade. Esse príncipe tinha tanto desejo de tornar a cidade bem povoada que recebeu até mesmo pessoas de baixa condição, provenientes de todas as partes, e dentre as quais algumas tinham a aparência de escravos. Concedeu-lhes grandes privilégios e fez benefícios a muitos, dando terras a uns e casas a outros, para obrigá-los a não se afastar dali, como de fato havia motivo para temer, se não o fizesse, porque o lugar onde a cidade se situa está cheio de sepulcros, o que é tão contrário às nossas leis que passa por impuro durante sete dias aquele que tiver de permanecer em semelhante lugar. 768. Nesse mesmo tempo, Fraate, rei dos partos, foi morto à traição por Fraatace, seu filho, do modo que vou narrar: Fraate tinha vários filhos legítimos, mas ficou perdidamente enamorado de uma criada italiana, que o imperador lhe havia mandado, entre outros presentes, e que era na verdade muito formosa. Considerou-a de início uma concubina, mas a paixão crescia sempre e, como já tivera com ela um filho — Fraatace —, desposou-a. Ela era poderosa e tinha ascendência sobre o espírito dele, e por isso concebeu a idéia de entregar o império dos partos nas mãos do filho. Mas os seus esforços só teriam efeito se os filhos legítimos de Fraate fossem afastados. Ela então o persuadiu a enviá-los como reféns a Roma. O soberano, que nada lhe podia recusar, atendeu-a. Assim, Fraatace ficou sozinho com ela. Esse detestável filho tinha grande desejo de reinar e, não esperando nem mesmo a morte do pai, mandou matá-lo, a conselho de sua mãe, com a qual, sabia-se, ele vivia de maneira abominável. O horror causado por esse parricídio e pelo incesto atraiu sobre ele um ódio geral, e ele foi expulso, morrendo antes de assumir a sua criminosa dominação. A nobreza então julgava que o Estado só se poderia manter sob o governo de um rei e que esse rei deveria ser da família dos arsácidas. Considerando a família de Fraate conspurcada pela horrível impudicícia daquela italiana, escolheram Herodes, que era de sangue real, para elevá-lo ao trono e enviou embaixadores a ele. Mas esse príncipe era tão colérico, tão cruel e de tão difícil acesso que o povo não pôde tolerá-lo. Conspiraram contra ele. Como os partos tinham o costume de levar consigo espadas, ele foi morto num banquete ou, como outros dizem, numa caçada. Assim, os partos, não tendo mais reis, mandaram pedir em Roma que um dos filhos de Fraate reinasse sobre eles. Os príncipe estavam então sob custódia em Roma, e deram-lhe Vonono, que foi preferido aos irmão porque o julgaram, por consentimento unânime dos dois grandes impérios, mais digno que os outros de ser elevado àquele alto grau de honra. Mas como esses bárbaros são naturalmente inconstantes e insolentes, os principais dentre eles se arrependeram bem depressa de sua escolha e disseram que não queriam mais obedecer a um escravo (chamavam assim o príncipe porque ele fora entregue como refém aos romanos). Alegavam também que ele chegara à condição de rei não pelo direito da guerra, mas em tempo de paz. Depois dessa revolta, mandaram oferecer a coroa a Artabano, rei dos medos, que também era da família dos arsácidas. Ele a aceitou com alegria e veio com um grande exército. Mas como somente a nobreza tomava parte nesses acontecimentos, Vonono, ao qual o povo continuava fiel, venceu Artabano numa batalha e obrigou-o a fugir para os montes da Média. Artabano reuniu depois novas forças e travou uma segunda batalha, na qual Vonono foi vencido e fugiu com os seus homens para a Armênia. Artabano, após promover grande carnificina entre os partos, avançou até Ctesifon e ficou assim senhor de todo o reino. Quanto a Vonono, logo que chegou à Armênia concebeu a idéia de se tornar rei. Para esse fim, enviou embaixadores a Roma, porém Tibério, que o desprezava e não queria ofender os partos, os quais ameaçavam declarar guerra ao império, recusou-se a ajudá-lo. Assim, sem esperanças e sem nada conseguir dos romanos, vendo que o mais poderoso povo da Armênia (que habitava as cercanias de Nifate) abraçara o partido de Artabano, foi ter com Silano, governador da Síria, que o recebeu em consideração por ele ter sido outrora educado em Roma. Artabano, não encontrando mais resistência, constituiu Orodé, seu filho, rei da Armênia. 769. Antíoco, rei de Comagena, morreu naquela mesma época. Surgiu então uma grande divergência entre a nobreza e o povo. A nobreza queria que o reino fosse reduzido a província, e o povo exigia o contrário, querendo ser governado por um rei, como antes. Para resolver esse caso, Germânico, por um decreto do senado, foi enviado ao Oriente. Parece que o destino preparou essa ocasião para destruir o ilustre príncipe. Após organizar com habilidade todos os negócios, como era de se desejar, ele foi envenenado por Pisão, como veremos mais adiante. CAPÍTULO 4 REVOLTA DOS JUDEUS CONTRA PILATOS, GOVERNADOR DAJUDÉIA,POR TER FEITO ENTRAR EM JERUSALÉM AS BANDEIRAS, QUE TRAZIAM A IMAGEM DO IMPERADOR. ELE AS RETIRA. LOUVORES DE JESUS CRISTO. HORRÍVEL OFENSA FEITA A UMA DAMA ROMANA PELOS SACERDOTES DA DEUSA ÍSIS E CASTIGO QUE TIBÉRIO LHES INFLIGE. 770. Pilatos, governador da Judéia, enviou dos quartéis de inverno de Cesaréia a Jerusalém tropas que traziam em seus estandartes a imagem do imperador, o que é tão contrário às nossas leis que nenhum outro governador antes dele o fizera. As tropas entraram de noite, e por isso apenas no dia seguinte é que se percebeu. Imediatamente os judeus foram em grande número procurar Pilatos em Cesaréia e durante vários dias rogaram-lhe que removesse aqueles estandartes. Ele negou o pedido, dizendo que não o poderia fazer sem ofender o imperador. Mas como eles continuavam a insistir, ordenou aos seus soldados, no sétimo dia, que secretamente se conservassem em armas e subiu em seguida ao tribunal que mandara erguer de propósito no local dos exercícios públicos, porque era o lugar mais apropriado para escondê-los. Os judeus, porém, insistiam no pedido. Ele então deu o sinal aos soldados, que os envolveram imediatamente por todos os lados, e ameaçou mandar matá-los se continuassem a insistir e não voltassem logo cada qual para a sua casa. A essas palavras, eles lançaram-se todos por terra e apresentaram-lhe a garganta descoberta, para mostrar que a observância de suas leis lhes era muito mais cara que a própria vida. Aquela constância e zelo tão ardentes pela religião causou tanto assombro a Pilatos que ele ordenou que se levassem os estandarte de Jerusalém para Cesaréia. 771. Em seguida, Pilatos tentou retirar dinheiro do tesouro sagrado para fazer vir a Jerusalém, pelos aquedutos, a água cujas nascentes distavam uns duzentos estádios. O povo ficou de tal modo revoltado que veio em grupos numerosos queixar-se e rogar-lhe que não continuasse aquele projeto. E, como acontece ordinariamente no meio de uma população exaltada, alguns chegaram de dizer-lhe palavras injuriosas. Ele ordenou então aos soldados que escondessem cacetes debaixo da túnica e rodeassem a multidão. Quando recomeçaram as injúrias, sinalizou aos soldados para que executassem o que havia determinado. Eles não somente obedeceram, como fizeram mais do que ele desejava, pois espancaram tanto os sediciosos quanto os indiferentes. Os judeus não estavam armados, e por isso muitos morreram e vários foram feridos. E a sedição terminou. 772. Nesse mesmo tempo, apareceu JESUS, que era um homem sábio, se é que podemos considerá-lo simplesmente um homem, tão admiráveis eram as suas obras. Ele ensinava os que tinham prazer em ser instruídos na verdade e foi seguido não somente por muito judeus, mas também por muitos gentios. Ele era o CRISTO. Os mais ilustres dentre os de nossa nação acusaram-no perante Pilatos, e este ordenou que o crucificassem. Os que o haviam amado durante a sua vida não o abandonaram depois da morte. Ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no terceiro dia, como os santos profetas haviam predito, dizendo também que ele faria muitos outros milagres. É dele que os cristãos, os quais vemos ainda hoje, tiraram o seu nome. 773. Por esse mesmo tempo, aconteceu uma grande perturbação na Judéia e um horrível escândalo em Roma, durante os sacrifícios de ísis. Começarei a falar deste último e depois passarei ao que se refere aos judeus. Havia em Roma uma jovem senhora, de nome Paulina, que não era menos ilustre por sua virtude que por seu nascimento e era tão bela quanto rica. Havia desposado Saturnino, a quem não poderíamos louvar suficientemente, bastando dizer que era digno de ser o marido de semelhante mulher. Décio Mundo, jovem que ocupava uma posição muito elevada na ordem dos cavaleiros, concebeu por ela o amor mais ardente que se possa imaginar. E, como ela era de tal virtude que não se deixava conquistar por presentes, a impossibilidade de obter o seu desejo aumentou-lhe ainda mais a paixão. Ele chegou a oferecer-lhe duzentas mil dracmas por uma noite, porém ela rejeitou a proposta com desprezo. A vida tornou-se tão insuportável para Mundo que ele resolveu matar-se pela fome. No entanto, uma das libertas de seu pai, chamada Idé, que era muito hábil em determinadas coisas, as quais convém mais ignorar que saber, procurou-o para dizer-lhe que não perdesse a esperança. Ela prometeu obter o que ele desejava, sem que lhe custasse mais de cinqüenta mil dracmas. Tal proposta fez Mundo retomar alento, e ele deu-lhe a soma que ela pedia. Como a tal liberta sabia que o dinheiro era inútil para tentar uma mulher tão casta, resolveu servir-se de um outro meio. Sabendo que ela nutria uma devoção muito particular pela deusa ísis, foi procurar alguns de seus sacerdotes. Após comprar-lhes o segredo, informou-os do extremo amor de Mundo para com Paulina. Se eles encontrassem um meio de satisfazer aquela paixão, ela lhes daria no mesmo instante vinte e cinco mil dracmas e outro tanto depois que houvessem cumprido a promessa. Na esperança de tão grande recompensa, eles aceitaram a proposta, e o mais velho foi imediatamente dizer a Paulina que o deus Anúbis tinha paixão por ela e lhe ordenava que fosse procurá-lo. A dama sentiu-se tão honrada com isso que se vangloriou perante as amigas e disse o mesmo ao marido, o qual, conhecendo a sua extrema castidade, consentiu de boa mente que ela fosse procurá-lo. Depois cear, ela foi então ao Templo. Chegou a hora de se pôr ao leito, e aquele sacerdote fechou-a num quarto onde não havia luz e onde Mundo, que ela julgava ser o deus Anúbis, estava escondido. Ele passou toda a noite com ela, e no dia seguinte de manhã, antes que aqueles detestáveis sacerdotes, cuja maldade a havia feito cair naquela cilada, se tivessem levantado, ela foi procurar o marido e contou-lhe o que se havia passado — e continuou a se vangloriar junto às amigas. Tudo lhes pareceu tão incrível que não podiam acreditar no que ela dissera, mas, por outro lado, não podiam desconfiar de sua virtude. Três dias depois, Mundo encontrou-a por acaso e disse-lhe: "Na verdade devo agradecer-vos por terdes recusado as duzentas mil dracmas que vos ofereci. No entanto fizestes o que eu desejava. Que me importa que tenhais desprezado Mundo, pois obtive o que queria sob o nome de Anúbis". Dizendo essas palavras, foi-se embora. Paulina percebeu então o horrível engano em que havia caído. Rasgou os seus vestes, contou ao marido o que havia acontecido e rogou-lhe que não deixasse impune tamanho crime. Ele foi em seguida falar com o imperador, a quem relatou o fato. Tibério, depois de estar bem informado de toda a verdade, mandou crucificar aqueles maus sacerdotes e com eles Idé, que imaginara a trama. Mandou também destruir o Templo de ísis e lançar-lhe a estátua no Tibre. Quanto a Mundo, contentou-se em mandá-lo ao exílio, porque atribuía o seu crime à violência de seu amor. Retomemos, porém, o fio de nossa narração, para dizermos o que aconteceu aos judeus que moravam em Roma. CAPÍTULO 5 TIBÉRIO MANDA EXPULSAR TODOS OS JUDEUS DE ROMA. PILATOS CASTIGA OS SAMARITANOS QUE SE HAVIAM REUNIDO E PEGADO EM ARMAS. ELES O ACUSAM PERANTE VITÉLIO, GOVERNADOR DA SÍRIA, QUE O OBRIGA A IR A ROMA PARA SE JUSTIFICAR. 774. Um judeu, que era um dos piores homens do mundo e que havia fugido de seu país para evitar o castigo pelos seus crimes, juntou-se com três outros que não eram melhores que ele. Em Roma, exerciam a profissão de intérpretes da Lei de Moisés. Então uma mulher da sociedade, de nome Fúlvia, que abraçara a nossa religião, tomando-os por homens de bem, pôs-se sob a sua direção. Eles induziram-na a dar-lhes ouro e púrpura, que seriam enviados a Jerusalém, mas eles conservaram para si o que ela lhes entregou e gastaram o dinheiro. Saturnino, marido de Fúlvia, foi queixar-se disso a Tibério, por quem era muito estimado. Sabendo disso, ele ordenou que todos os judeus fossem expulsos de Roma. Os cônsules, depois de uma exata indagação, reuniram quatro mil homens, que foram enviados para a Sardenha, sendo que um grande número deles foi severamente castigado, pois se recusaram a pegar em armas, para não desobedecer às leis de seus antepassados. Assim, a malícia de quatro celerados foi a causa de que não ficasse em Roma um só judeu. 775. Os samaritanos não foram menos atormentados nem isentos de amarguras. Um impostor, que com nada se importava, para agradar ao povo e ganhar-lhe o afeto, ordenou-lhes que se reunissem no monte Gerizim, que nesse país é considerado um lugar santo, prometendo-lhes fazer ver os vasos sagrados que Moisés havia enterrado. Com tal promessa, tomaram as armas e, esperando os que deviam juntar-se a eles de todos os lados para subir o monte, sitiaram a aldeia de Tirataba; mas Pilatos os precedeu; avançou com sua cavalaria, ocupou o monte, atacou-os perto daquela aldeia, pô-los em fuga, prendeu vários, mandou cortar a cabeça aos chefes. Os mais ilustres samaritanos foram procurar Vitélio, governador da Síria, que tinha sido cônsul, acusaram Pilatos de ter cometido muitos assassínios, afirmaram que eles não tinham pensado em se rebelar contra os romanos e disseram que se haviam reunido perto de Tirataba, somente para resistir às suas violências. Vitério ante essas queixas, mandou Marcelo, seu amigo, para cuidar do governo da Judéia e ordenou a Pilatos que fosse justificar-se perante o imperador. Assim, sendo obrigado a obedecer, ele encaminhou-se para Roma, depois de ter governado a Judéia por dez anos, mas Tibério morreu antes que ele lá tivesse chegado. CAPÍTULO 6 VITÉLIO ENTREGA AOS JUDEUS A GUARDA DAS VESTES SACERDOTAIS DO SUMO SACERDOTE. TRATA EM NOME DE TIBÉRIO COM ARTABANO, REI DOS PARTOS. CAUSA DE SEU ÓDIO POR HERODES, O TETRARCA. FILIPE, TETRARCA DE TRACONITES, DA GALAUTIDA E DA BATANÉIA, MORRE SEM FILHOS. SEUS TERRITÓRIOS SÃO ANEXADOS À SÍRIA. 776. Vitélio foi a Jerusalém, pela festa da Páscoa, sendo recebido com grandes honras. Ele restituiu aos habitantes o direito que tinham sobre os frutos vendidos e permitiu aos sacerdotes que guardassem eles mesmos, como outrora, o éfode e os outros ornamentos sacerdotais, que estavam então na fortaleza Antônia, onde eles haviam sido postos pelo motivo que passo a dizer. O sumo sacerdote Hircano, primeiro desse nome, tendo feito construir uma torre perto do Templo, ali ficava quase sempre. E, como somente ele podia revestir-se dessa veste sagrada, entregue à sua guarda, deixava-o ali quando retomava as suas vestes ordinárias. Seus sucessores nesse cargo procederam do mesmo modo. Mas Herodes, subindo ao trono e achando a situação dessa torre muito vantajosa, mandou fortificá-la bastante. Chamou-a Antônia, por causa de Antônio, que era seu grande amigo, e lá deixou a veste sacerdotal, tal como a encontrara, na convicção de que serviria para tornar-lhe o povo ainda mais submisso. Arquelau, seu filho e sucessor, não fez nisso modificação alguma. Depois que o reino foi reduzido à província e os romanos dele tomaram posse, continuaram a guardar a veste sacerdotal e, para conservá-la, mandaram fazer um armário, que era selado com o selo dos sacerdotes e dos guardas do tesouro do Templo. O governador da torre fazia continuamente acender uma lâmpada diante do armário e, sete dias antes de cada uma das três grandes festas do ano, que era tempo de jejum, entregava a veste sagrada ao sumo sacerdote, o qual, depois de limpá-lo bem, dele se revestia para iniciar o ofício divino. No dia seguinte à festa, tornava a entregá-lo e colocá-lo no mesmo armário. Vitélio, para reverenciar a nossa nação, entregou-o, como acabo de dizer, aos sacerdotes e dispensou o governo de toda responsabilidade na sua conservação. Tirou também depois o sumo sacerdócio de Caifás para dá-lo a Jônatas, filho de Anano, o qual também havia sido sumo sacerdote, e partiu de regresso a Antioquia. 777. Tibério, receoso de que Artabano, que se tornara senhor da Armênia, lhe pesasse como um perigoso inimigo do Império Romano, enviou Vitélio para fazer uma aliança, sob a condição de que Artabano lhe entregasse alguns reféns e o seu próprio filho, se fosse possível. Vitélio, depois de receber essa ordem, ofereceu grandes somas aos reis dos iberos e dos alanos, para induzi-los a declarar guerra a Artabano. Os iberos não quiseram tomar as armas. Contentaram-se em dar passagem aos alanos e lhes abrir as portas dos montes Cáspios. Assim, eles entraram na Armênia, devastaram-na completamente, apoderaram-se de tudo e, levando a guerra além, passaram ao território dos partos e mataram a maior parte da nobreza, inclusive o filho de Artabano. Esse príncipe, então, sabendo que Vitélio subornara com dinheiro alguns de seus parentes e amigos para que o matassem e que assim não podia confiar naquela gente, que passara para o lado do inimigo e sob pretexto de amizade procurava por todos os meios fazê-lo morrer, fugiu e salvou-se nas províncias superiores. Ali não somente encontrou segurança, mas reuniu um grande exército de danianos e sacianos, com o qual começou uma guerra, venceu-a e reconquistou o seu reino. Depois desse infeliz resultado, Tibério mostrou-se desejoso de fazer aliança com ele, e Artabano estava disposto a isso, tanto que, acompanhados por seus guardas, ele e Vitélio dirigiram-se a uma ponte construída sobre o Eufrates. Quando lá concluíram as condições do tratado, Herodes, o tetrarca, deu-lhes um grande banquete sob um grande pavilhão que mandara erguer no meio do rio, com grandes despesas. Pouco tempo depois, Artabano enviou Dário, seu filho, como refém a Tibério, com grandes presentes, entre os quais estava um judeu de nome Eleazar, que era um gigante de sete côvados de altura. Vitélio regressou logo a Antioquia, e Artabano, à Babilônia. 778. Herodes, querendo por primeiro dar a Tibério a notícia dos reféns que havia conseguido de Artabano, mandou-lhe um emissário com urgência e informou-o tão particularmente de tudo que Vitélio nada mais pôde dizer que ele não soubesse. Assim, Tibério não deu outra resposta a Vitélio senão a de que nada dizia de novo, o que causou a este grande ódio contra Herodes. Mas ele o dissimulou até o reinado de Caio. 779. Filipe, irmão de Herodes, morreu nesse tempo, no vigésimo ano do reinado de Tibério, depois de usufruir durante trinta e sete anos as tetrarquias de Traconites, Gaulanites e Batanea. Era um príncipe muito moderado. Amava a paz e a tranqüilidade e sempre ficou em seu território. Nas suas idas constantes ao campo, levava consigo apenas um pequeno número de amigos mais íntimos e uma cadeira, que era uma espécie de trono, para sentar-se e administrar a justiça, pois era seu costume deter-se quando alguém o pedia e, depois de ouvir todas as queixas, condenava imediatamente o culpado ou o absolvia, se o julgasse inocente. Morreu em Julíada. Os seus funerais foram imponentes, e enterraram-no num soberbo túmulo que ele havia mandado construir. Como ele não deixou filhos, Tibério anexou os seus territórios à Síria, sob a condição de que o dinheiro dos rendimentos permanecesse no seu país. CAPÍTULO 7 GUERRA ENTRE ARETAS, REI DE PETRA, E HERODES, O TETRARCA, QUE, TENDO DESPOSADO A FILHA DAQUELE, QUERIA REPUDIÁ-LA PARA CASAR-SE COM HERODIAS, FILHA DE ARISTÓBULO E MULHER DE HERODES, SEU IRMÃO POR PARTE DE PAI. O EXÉRCITO DE HERODES É TOTALMENTE DERROTADO, E OS JUDEUS ATRIBUEM AO FATO DE ELE TER COLOCADO JOÃO BATISTA NA PRISÃO. POSTERIDADE DE HERODES, O GRANDE. 780. Nesse mesmo tempo, aconteceu, pelo motivo que passo a descrever, uma grande guerra entre Herodes, o tetrarca, e Aretas, rei de Petra. Herodes, que havia desposado a filha de Aretas e vivera muito tempo com ela, passou, numa viagem a Roma, pela casa de Herodes, seu irmão por parte de pai, filho da filha de Simão, sumo sacerdote, e concebeu tal paixão pela mulher dele, Herodias — filha de Aristóbulo, irmão de ambos e irmã de Agripa, que depois foi rei —, que propôs desposá-la logo que estivesse de volta de Roma e repudiasse a filha de Aretas. Ele continuou a sua viagem e voltou após cumprir as incumbências de que fora encarregado. A sua mulher veio a saber de tudo o que se havia passado entre ele e Herodias, mas nada demonstrou e rogou-lhe que permitisse ir a Maquera, fortaleza situada na fronteira dos dois territórios, que então pertencia ao rei seu pai. Como Herodes não julgava que ela soubesse de seu projeto, não teve dificuldade em atendê-la. O governador da praça recebeu-a muito bem, e um grande número de soldados escoltou-a até a corte do rei Aretas. Ela contou-lhe da resolução tomada por Herodes, e ele sentiu-se muito ofendido. Havendo já surgido algumas divergências entre os dois príncipes, por causa dos limites do território de Gamala, eles entraram em guerra; todavia, nem um nem outro tomou parte dela em pessoa. A batalha travou-se, e o exército de Herodes foi completamente derrotado, devido à traição de alguns refugiados que, expulsos da tetrarquia de Filipe, se alistaram nas tropas de Aretas. Herodes escreveu a Tibério, contando o que havia acontecido, e este ficou tão enfurecido contra Aretas que ordenou a Vitélio que lhe declarasse guerra e o trouxesse vivo, se possível, ou lhe mandasse a cabeça, caso ele viesse a morrer na luta. 781. Vários judeus julgaram a derrota do exército de Herodes um castigo de Deus, por causa de João, cognominado Batista. Era um homem de grande piedade que exortava os judeus a abraçar a virtude, a praticar a justiça e a receber o batismo, para se tornarem agradáveis a Deus, não se contentando em evitar o pecado, mas unindo a pureza do corpo à da alma. Como uma grande multidão o seguia para ouvir a sua doutrina, Herodes, temendo que ele, pela influência que exercia sobre eles, viesse a suscitar alguma rebelião, porque o povo estava sempre pronto a fazer o que João ordenasse, julgou que devia prevenir o mal, para depois não ter motivo de se arrepender por haver esperado muito para remediá-lo. Por esse motivo, mandou prendê-lo numa fortaleza em Maquera, de que acabamos de falar, e os judeus atribuíram a derrota de seu exército a um castigo de Deus, devido a esse ato tão injusto. 782. Vitélio, para executar a ordem recebida de Tibério, tomou duas legiões e suas cavalarias e outras tropas que os reis sujeitos ao Império Romano lhe enviaram. Na sua marcha em direção a Petra, chegou a Ptolemaida. O seu intento era fazer passar o exército através da Judéia, porém os maiorais dessa nação vieram pedir-lhe que não o fizesse, porque as legiões romanas traziam em seus estandartes figuras que eram contrárias à nossa religião. Ele satisfez-lhes o pedido e mandou que os soldados passassem pelo campo. Acompanhado pelo tetrarca e seus amigos, foi a Jerusalém oferecer sacrifícios a Deus, pois se aproximava o dia de uma festa. Ele foi recebido com grandes honras e lá permaneceu três dias. 783. Nesse tempo, tirou o sumo sacerdócio de jônatas para dá-la a TeóFílon, seu irmão. E, havendo recebido a notícia da morte de Tibério, fez o povo prestar juramento de fidelidade a Caio Calígula, que lhe sucedera no império. Essa mudança o fez recolher as tropas, e ele enviou-as aos quartéis de inverno e voltou a Antioquia. 784. Diz-se que Aretas, quando soube que Vitélio marchava contra ele, consultou os adivinhos, e eles afirmaram que era impossível que ele chegasse a Petra porque ou o autor da guerra ou o executor de suas ordens ou ainda aquele a quem queriam atacar morreria antes. 785. Havia um ano que Agripa, filho de Aristóbulo, tinha ido a Roma procurar o imperador Tibério, por causa de alguns assuntos importantes. Mas antes de entrar no assunto a respeito desse príncipe, desejo ainda falar de Herodes, o Grande, tanto por causa de sua relação com o resto da história quanto para confundir o orgulho dos homens, fazendo-os conhecer os efeitos da divina providência. Nem o grande número de filhos nem todas as outras vantagens podem fortalecer um poder humano ou conservá-lo, se tudo isso não for acompanhado pela virtude e pela piedade, como se vê neste exemplo, que nos mostra como em menos de cem anos toda a grande prosperidade de Herodes se viu reduzida a um pequeníssimo número. Não é coisa menos digna da admiração a maneira como Agripa, contra a opinião de todos, foi elevado, por uma sorte particular, à soberana autoridade. Assim, ainda que eu tenha já falado dos filhos de Herodes, o Grande, falarei deles agora mais detalhadamente. Herodes teve duas filhas de Mariana, filha de Hircano. A mais velha, chamada Salampso, casou-a ele com Fazael, filho de Fazael, seu irmão mais velho, e a outra, de nome Cipro, com Antípatro, seu sobrinho, filho de Salomé, sua irmã. Fazael teve de Salampso três filhos — Antípatro, Herodes e Alexandre — e duas filhas. Uma delas, chamada Alexandra, casou-se na ilha de Chipre com um senhor de nome Tímio, do qual não teve filhos. A outra, de nome Cipro, desposou Agripa, filho de Aristobulo, do qual teve dois filhos — Agripa e Druso, que morreu moço — e três filhas — Berenice, Mariana e Drusila. Agripa, seu pai, fora educado com seus irmãos Herodes e Aristobulo, com Herodes, o Grande, seu avô, como também Berenice, filha de Salomé e de Costobaro. Os filhos de Aristobulo eram ainda jovens quando Herodes, seu pai, o mandou matar, junto com o irmão Alexandre, da maneira como vimos. Depois que todos esses filhos cresceram, Herodes, irmão de Agripa, desposou Mariana, filha de Olímpia, filha de Herodes, o Grande, e de José, seu irmão, da qual teve um filho de nome Aristobulo. O outro irmão de Agripa, de nome Aristobulo, desposou Jotapé, filha de Sampsigeram, rei de Emesa, do qual teve uma filha, cujo nome também era Jotapé, igual a sua mãe, e que era surda. Eis os filhos desses três irmãos. Herodias, sua irmã, desposou Herodes, o tetrarca, filho de Herodes, o Grande, e de Mariana, filha de Simão, o sumo sacerdote, do qual teve Salomé. Depois desse nascimento, Herodias não teve vergonha de desrespeitar as nossas leis, abandonando o marido para desposar Herodes, irmão dele e tetrarca da Galiléia. Salomé, sua filha, desposou Filipe, filho de Herodes, o Grande, e tetrarca de Traconites. Ele morreu sem lhe dar filhos, e Herodias fez com que ela desposasse Aristobulo, filho de Herodes e irmão de Agripa, do qual teve três filhos: Herodes, Agripa e Aristobulo. Vê-se, pelo que acabo de dizer, quais foram os descendentes de Fazael e de Salampso. Cipro, filha de Herodes, o Grande, e irmã de Salampso, teve de Antípatro, filho de Salomé, uma filha chamada Cipro, como ela. Cipro desposou Alexas Celsio, filho de Alexas, do qual teve uma filha, também chamada Cipro. Quanto a Herodes e Alexandre, irmãos de Antípatro, morreram sem filhos. Alexandre, filho de Herodes, o Grande, o qual o fez morrer, teve de Glafira, filha de Arquelau, rei da Capadócia, Alexandre e Tigrano. O último, que foi rei da Armênia e acusado perante os romanos, morreu sem filhos. Mas Alexandre teve um filho, de nome Tigrano, como o tio. O imperador Nero constituiu Alexandre rei da Armênia, e ele teve um filho, também de nome Alexandre, que desposou Jotapé, filha de Antíoco, rei de Comagena. O imperador Vespasiano deu-lhe o reino de Ésis, uma ilha na Cilícia. Os descendentes desse Alexandre abandonaram a religião de nossos pais para abraçar a dos gregos. Os outros filhos de Herodes, o Grande, morreram sem descendência. Depois de falar da posteridade desse soberano até o reinado de Agripa, resta-me mostrar como, por meio de diversas vicissitudes da fortuna, ele foi, por fim, elevado a tão alto grau de glória e de poder. CAPÍTULO 8 DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS, PELAS QUAIS AGRIPA, COGNOTNINADO O GRANDE, FILHO DE ARISTOBULO E NETO DE HERODES, O GRANDE, E DE MARIANA, FOI CONSTITUÍDO REI DOS JUDEUS PELO IMPERADOR CAIO, COGNOMINADO CALÍGULA, LOGO DEPOIS QUE ESTE SUCEDEU A TIBÉRIO. 786. Pouco antes da morte de Herodes, o Grande, Agripa, seu neto e filho de Aristobulo, foi a Roma. Como ele freqüentemente estava à mesa com Druso, filho do imperador Tibério, conquistou a sua amizade e caiu também no agrado de Antônia, mulher de Druso, irmão de Tibério, e mãe de Germânico e de Cláudio, que depois foi imperador, por meio de Berenice, sua mãe, pela qual tinha ela uma afeição muito particular. Embora Agripa fosse de natureza muito liberal, não ousava demonstrá-lo vivendo ainda a sua mãe, para não incorrer em sua indignação. Logo após a sua morte, porém, quando nada mais havia que o detivesse, fez tantas despesas em banquetes e em liberalidade excessiva, principalmente com os libertos de César, dos quais queria granjear a estima, que se sentiu esmagado pelas dívidas e importunado por credores, sem poder satisfazê-los. O jovem Druso morreu nesse mesmo tempo, e Tibério proibiu a todos os que esse príncipe havia amado de se apresentar diante dele, porque a presença deles renovava-lhe o sofrimento. Assim, Agripa foi obrigado a voltar à Judéia, e a vergonha levou-o a se retirar para o castelo de Malata, na Iduméia, decidido a ali passar miseravelmente a vida. Cipro, sua mulher, fez o que pôde para dissuadi-lo dessa idéia e escreveu a Herodias, irmã de Agripa, que desposara Herodes, o tetrarca, pedindo-lhe que a ajudasse, como ela fazia, por seu lado, embora tivesse menos bens. Herodes e Herodias mandaram logo chamar Agripa e deram-lhe uma certa soma, bem como a principal magistratura de Tiberíades, de modo que pudesse manter-se com certa honra naquela cidade. Embora isso não fosse o suficiente para contentar Agripa, Herodes arrefeceu-se tanto no desejo de ajudá-lo que perdeu a vontade de continuar a lhe prestar auxílio. E um dia, depois de ter bebido demais num banquete em que estavam juntos, em Tiro, lançou-lhe em rosto a sua pobreza e o fato de que dependia dele para comer. Agripa, não podendo tolerar semelhante ultraje, foi procurar Flaco, governador da Síria, que fora cônsul e com o qual havia feito amizade em Roma. Ele o recebeu muito bem. Antes, porém, já havia recebido Aristóbulo, irmão de Agripa, do mesmo modo, sem que a inimizade que havia entre eles o impedisse de manifestar igualmente o seu afeto a um e a outro. Mas Aristóbulo persistiu de tal modo em sua ira que não teve sossego enquanto não incutiu no espírito de Flaco a aversão para com Agripa, o que aconteceu pelo motivo que passo a expor. Os moradores de Damasco entraram em litígio com os de Sidom, por causa de seus limites. A questão devia ser julgada por Flaco, e eles ofereceram a Agripa uma grande soma para que ele os ajudasse com o seu prestígio junto dele. Agripa prometeu fazer tudo o que pudesse em favor deles. Aristóbulo soube-o e avisou Flaco, o qual, depois de se informar, constatou que tudo era verdade. Assim, pela perda de sua amizade, Agripa recaiu numa extrema miséria e retirou-se a Ptolemaida, onde, não tendo com o que viver, resolveu voltar a Itália. Mas como lhe faltava o dinheiro, disse a Márcias, seu liberto, que fizesse todo o possível para consegui-lo em empréstimo. Esse homem foi procurar Proto, liberto de Berenice, mãe de Agripa, que esta legara em seu testamento a Antônia, fazendo com que ela o recebesse ao seu serviço, e rogou-lhe que lhe emprestasse dinheiro, sob sua palavra. Proto respondeu-lhe que Agripa já lhe devia e, tendo já obtido de Márcias uma nota de compromisso de vinte mil dracmas áticas, entregou-lhe somente dezessete mil e quinhentas, retendo consigo as outras duas mil e quinhentas, sem que Agripa se pudesse opor. Depois de apanhar essa soma, partiu para Antedom. Encontrando um navio, Agripa preparava-se para continuar a viagem, quando Herênio Capito, que tinha em Jamnia a superintendência dos negócios, enviou soldados para fazê-lo pagar trezentas mil peças de prata, que lhe haviam sido emprestadas do tesouro do imperador quando ele estava em Roma. Agripa garantiu-lhes que não deixaria de pagar, mas logo que veio a noite mandou levantar âncora e tomou o caminho de Alexandria. Ao chegar, pediu a Alexandre, que era alabarche,* que lhe emprestasse duzentas mil peças de prata. Ele respondeu que não lhe emprestaria, mas que não recusaria o empréstimo a Cipro, sua mulher, porque admirava-lhe a virtude e o amor pelo marido. Assim, ela lhe foi a caução, e Alexandre deu-lhe cinco talentos, com a promessa de lhe entreaar o resto em Putéoli. não iuloando conveniente confiar-lhe tudo na mesma hora, por causa de sua prodigalidade. Cipro, então, vendo que nada mais impediria o marido de ir à Itália, voltou com os filhos, por terra, para a Judéia. ___________________________ * O primeiro cargo da magistratura, em Alexandria. Quando Agripa chegou a Putéoli, escreveu ao imperador, que então estava em Capréia,* dizendo que viera prestar-lhe as suas homenagens e rogando consentimento para que fosse encontrá-lo. Tibério respondeu logo e de maneira muito favorável, declarando estar alegre com a sua volta e que ele podia vir quando quisesse. E, se a carta era delicada, a maneira como o recebeu depois não foi menos gentil, pois o abraçou e mandou-o hospedar-se em seu palácio. No dia seguinte, porém, Tibério recebeu uma carta de Herênio, pela qual lhe comunicava que, havendo insistido com Agripa a fim de que fossem pagas as trezentas mil peças de prata que lhe havia emprestado do tesouro, pois o prazo para a restituição já havia expirado, ele havia fugido, tirando assim a ele e aos que lhe sucederiam no cargo os meios de reaver aquela importância. Essa carta irritou a Tibério contra Agripa, e ele deu ordem aos porteiros do quarto que não o deixassem vir à sua presença até que pagasse o que devia. __________________________ * Ou Capri, ilha italiana do mar Tirreno. (N. do R.) Agripa, no entanto, sem se admirar da cólera do imperador, rogou a Antônia que lhe emprestasse aquela importância, a fim de que ele não perdesse as boas graças de Tibério. E a princesa, considerando o respeito à memória de Berenice e o afeto particular que a ela dedicara, bem como o fato de Agripa ter sido educado junto com Cláudio, seu filho, concedeu-lhe aquele favor. Assim, ele pagou o que devia e firmou-se tão bem no conceito do imperador Tibério que este o encarregou de cuidar de Tibério Nero, seu neto e filho do Druso, e de velar pelas suas ações. Mas o desejo de pagar os favores de que era devedor a Antônia fez com que Agripa, em vez de satisfazer o desejo do imperador, se deixasse prender pelo afeto a Caio, cognominado Calígula, neto daquela princesa, que era amado e honrado por todos por causa da lembrança de Germânico, seu pai. E, tomando emprestado um milhão de peças de prata de um dos libertos de Augusto, chamado Talo, de Samaria, restituiu à Antônia o que ela lhe havia emprestado. A amizade entre Agripa e Caio tornou-se bem sólida, e certo dia, quando estavam na carruagem de Caio, sucedeu que recordaram alguns comentários que haviam feito acerca de Tibério. Agripa expressou o desejo de que o imperador logo saísse de cena e deixasse o governo nas mãos de Caio, a quem considerava muito mais digno de reinar. Êutico, seu liberto, que guiava o carro, ouviu-o e no momento nada disse. Algum tempo depois, no entanto, Agripa acusou-o de roubo, o que era verdade, e ele fugiu. Quando foi preso, levaram-no à presença de Pisão, prefeito de Roma. Em vez de responder à acusação que lhe faziam, Êutico declarou que tinha um segredo a declarar ao imperador, relativo à sua segurança e preservação. Imediatamente, enviaram-no acorrentado a Capréia. Tibério mandou colocá-lo na prisão e lá o deixou, sem se incomodar mais com o fato. Embora isso pareça estranho, não há motivo para admiração, porque jamais príncipe algum se apressou menos do que ele, em qualquer assunto. Não dava audiência aos embaixadores e nem preenchia os cargos de governadores e de intendente das províncias senão após a morte desses titulares. Quando os amigos perguntavam a razão disso, ele respondia que, quanto aos embaixadores, se os despachasse prontamente, logo lhe enviariam outros, e assim ele viveria enfadado com ininterruptas embaixadas. No que dizia respeito aos governadores e intendentes das províncias, evitava mudá-los para aliviar o povo, porque os homens são naturalmente gananciosos, principalmente quando é à custa de estrangeiros que eles se enriquecem, e se atiram com mais avidez às cobranças ao perceber que lhes resta pouco tempo no cargo. Porém, ao invés, se depois de haverem acumulado muitos bens não se sentirem ameaçados por um iminente sucessor, procedem com mais moderação. As riquezas todas das províncias não seriam suficientes para contentar a cobiça desses oficiais, caso eles fossem mudados freqüentemente. Como prova do que dizia, serviu-se desta comparação: "Um homem fora ferido com muitos golpes, e uma grande quantidade de moscas lançou-se às suas chagas. Um viajante, vendo-o naquele estado, teve compaixão dele. julgando que não lhe restaria mais forças para enxotá-las, resolveu prestar-lhe aquele auxílio. Mas o ferido pediu-lhe que o deixasse como estava. O outro perguntou a razão disso, e ele respondeu: Como essas moscas que vedes já estão fartas do meu sangue, já não me causam tanto mal. Mas, se vós as enxotardes, virão outras que, estando ainda com fome e me encontrando tão fraco, acabarão por me fazer morrer". E a melhor prova do que acabo de dizer acerca do caráter de Tibério é que, durante os vinte e dois anos de seu reinado, ele enviou apenas dois governadores à Judéia — Grato e Pilatos — e procedeu do mesmo modo com as outras províncias sujeitas ao Império Romano. Esse príncipe dizia também que não julgava prontamente os prisioneiros "para castigá-los por seus crimes com um longo sofrimento". Foi por isso que Tibério conservou Êutico por tanto tempo na prisão sem ouvi-lo. Mas, quando ele veio de Capréia a Tusculano, que dista de Roma apenas uns vinte estádios, Agripa rogou a Antônia que ela providenciasse uma audiência para Êutico, a fim de que ele descobrisse de que crime o liberto o estava acusando. Tibério tinha muita consideração por ela, tanto porque era sua cunhada quanto porque era muito casta, pois, embora fosse ainda muito jovem ao ficar viúva, e Augusto insistisse em que ela se casasse de novo, jamais contraiu segundas núpcias, mas vivia em tão grande virtude que a sua reputação se conservou para sempre imaculada. Devemos acrescentar que ele lhe era particularmente devotado também por causa de um grande favor que ela lhe prestara. Sejano, comandante da guarda pretoriana, a quem ele estimava de modo especial e elevara a um altíssimo grau de poder, organizou contra ele uma grande conspiração, com a cumplicidade de senadores, oficiais do exército e até mesmo alguns libertos de Tibério. Estavam a ponto de a executar, mas ela, sozinha, foi causa de que não se realizasse, porque, tendo-a descoberto, escreveu-lhe imediatamente, descrevendo todos os particulares, por meio de Palas, o mais fiel de seus libertos, que de Capréia lhe levou a carta. Após esse aviso, ele ordenou a morte de Sejano e seus cúmplices. Esse grande serviço aumentou ainda a estima que ele dedicava a essa princesa, e por isso passou a depositar nela inteira confiança. E assim, como nada havia de que ela não lhe pudesse falar, Antônia rogou-lhe que se dignasse escutar o que Êutico tinha a dizer. Ele respondeu que, se ele queria acusar falsamente o seu senhor, já fora bem castigado pelos sofrimentos na prisão e que Agripa devia tomar cuidado em não se comprometer impensadamente em semelhante negócio, para que o mal que ele queria fazer ao seu liberto não se tornasse demasiado pesado e caísse sobre ele mesmo. Essa resposta, em vez de acalmar Agripa em seu desígnio, levou-o a insistir ainda mais com Antônia, a fim de obter aquele esclarecimento do imperador. De sorte que, não podendo deixar de fazê-lo, ela aproveitou a ocasião em que Tibério, um dia, era levado em sua liteira para tomar um pouco de ar, estando Caio e Agripa caminhando adiante dele. Ela seguiu-o a pé e renovou o pedido para que mandasse interrogar Êutico. Ele respondeu: "Tomo os deuses como testemunha de que é contra os meus sentimentos e somente para não vos contrariar que farei o que desejais de mim". Então ordenou a Macrom, que sucedera a Sejano no cargo de comandante da guarda pretoriana, que mandasse vir Êutico. Sem demora, trouxeram-no, e Tibério perguntou-lhe o que tinha a dizer contra aquele ao qual era devedor de sua liberdade. Ele disse: "Um dia, meu senhor, quando Caio, que vejo aqui presente, e Agripa estavam juntos num carro e eu junto deles, para levá-los, Agripa disse a Caio, além de outras coisas: Tomara que logo chegue o dia em que aquele velho vá para o outro mundo e vos deixe senhor deste reino! Tibério, seu neto, não vos será obstáculo, pois muito facilmente vos podereis desfazer dele. Como esta terra seria feliz! E como eu teria parte nessa felicidade!" Tibério deu crédito às palavras de Êutico, sendo que também guardava ressentimentos pelo fato de Agripa haver recusado cuidar de Tibério Nero, seu neto, como ele lhe ordenara, para se dedicar inteiramente a Caio. Assim, ordenou a Macrom: "Acorrentai aquele homem!" Macrom, que não podia imaginar que o imperador falava de Agripa, esperou estar completamente inteirado de sua vontade para executar a ordem. Tibério, após dar algumas voltas no hipódromo, viu ainda Agripa e disse a Macrom: "Não vos tinha eu ordenado que acorrentásseis aquele homem?" Retrucou-lhe Macrom: "Que homem, senhor?" E Tibério respondeu: "Agripa". Agripa então, apelando para a memória de seu filho, com o qual havia sido educado, e para os serviços que prestara a Tibério, seu neto, suplicou-lhe clemência. Os seus rogos, porém, foram inúteis, e os guardas do imperador levaram-no para a prisão sem lhe tirar as vestes de púrpura. Como o calor era muito forte e o vinho que bebera no jantar esquentara-o ainda mais, ele sentia tanta sede que procurou com os olhos alguma coisa que a mitigasse. Viu então que um dos escravos de Caio, chamado Taumasto, levava um jarro cheio de água. Pediu-a, e o escravo o atendeu de boa vontade. Depois de beber, ele disse: "Não vos arrependereis de me terdes prestado este favor, pois logo que ficar livre, obterei de Caio a vossa liberdade, como recompensa, pois, vendo-me prisioneiro, atendestes ao meu pedido como se eu estivesse livre". Essa promessa foi cumprida, pois, quando mais tarde subiu ao trono, Agripa solicitou a Caio que lhe desse Taumasto e não somente o libertou como lhe deu a administração de todos os seus bens. E, ao morrer, recomendou a Agripa, seu filho, e a Berenice, sua filha, que o conservassem naquele cargo. E assim, ele desempenhou a sua incumbência com honra durante toda a sua vida. Um dia, quando Agripa estava com outros prisioneiros diante do palácio, a debilidade causada pela tristeza fez com que ele se apoiasse a uma árvore, sobre a qual uma coruja veio pousar. Um alemão, que estava entre os prisioneiros, tendo-o notado, perguntou ao soldado que o vigiava e que estava acorrentado com ele quem era aquele homem. Ao saber que era Agripa, o mais notável de todos os judeus pela glória de sua origem, rogou ao soldado que lhe permitisse aproximar-se dele, a fim de que pudesse ouvir de sua boca alguma coisa sobre os costumes de seu país. O soldado consentiu. Então, por meio de um intérprete, o alemão disse a Agripa: "Bem vejo que uma tão grande e repentina mudança em vossa sorte vos aflige, e dificilmente acreditareis que a divina providência vos dará a liberdade muito em breve. Mas tomo os deuses como testemunhas, os deuses que adoro e são reverenciados neste país, os quais me puseram nestas cadeias, de que o que vos tenho a dizer não é uma vã consolação, sabendo, como sei, que predições favoráveis, quando não são seguidas de seus efeitos, só nos servem para aumentar a tristeza. Quero, pois, dizer-vos, embora com perigo, o que pressagia essa ave que acaba de voar sobre a vossa cabeça. Estareis bem depressa em liberdade e elevado a tão grande poder que sereis invejado por aqueles que agora têm compaixão de vossa infelicidade. Sereis feliz durante o resto de vossa vida e deixareis filhos que sucederão à vossa felicidade. Mas quando virdes aparecer de novo essa mesma ave, sabei que somente vos restarão cinco dias de vida. Eis como os deuses vos pressagiam, e, como tenho conhecimento disso, julguei oportuno dar-vos essa alegria, para amenizar os vossos males presentes com a esperança de tantos bens futuros. E, quando vos encontrardes em tão grande prosperidade, peço-vos que não vos esqueçais da miséria em que me encontro e que me deis a liberdade". O vaticínio do alemão pareceu tão ridículo a Agripa que provocou nele uma gargalhada, tão forte que causou a ele mesmo espanto e admiração. No entanto a sua infelicidade causava muito pesar a Antônia, e, como julgava inútil falar em favor dele a Tibério, tudo o que ela podia fazer era rogar a Macrom que lhe desse por guardas soldados de caráter sociável, que o fizesse tomar as refeições com os oficiais que o custodiavam, que lhe permitisse tomar banho todos os dias e que desse livre entrada aos seus amigos e libertos, a fim de que fosse mitigada a amargura de sua prisão. Desse modo, Silas, seu amigo, Márcias e Estico, seus libertos, levavam-lhe alimento e as iguarias de que mais ele gostava. Tinham tanto cuidado dele que, sob o pretexto de querer vender-lhe cobertas, davam-nas a ele, que delas se servia durante a noite, sem que os guardas o impedissem, pois tinham ordem de Macrom para não interferir. Assim, seis meses se passaram, e Tibério, depois de regressar a Capréia, caiu num langor que a princípio não parecia perigoso. Porém o mal cresceu, e ele, perdendo a esperança de viver, ordenou a Evódio, o liberto a quem mais estimava, que lhe trouxesse Tibério, cognominado Gemelo, seu neto, filho de Druso, seu filho, e Caio, seu sobrinho-neto, filho de Germânico, seu sobrinho, pois queria falar-lhes antes de morrer. Esse último era já grande, muito bem instruído nas letras e bastante estimado pelo povo, por respeito à memória de Germânico, seu pai, valoroso e excelente príncipe cuja doçura, modéstia e cortesia conquistara não somente o afeto do senado, mas o de todos os povos. A sua morte foi chorada com lágrimas tão verdadeiras que parecia, em luto tão geral e público, que cada qual lastimava uma perda particular. Isso porque durante toda a sua vida ele se esforçara em servir a todos o quanto possível e jamais fizera mal a quem quer que fosse. Esse amor que se tivera pelo pai era também vantajoso para o filho, pois os soldados estavam dispostos até a morrer por ele, se isso fosse necessário para elevá-lo ao trono. Depois que deu a Evódio a ordem para que lhe trouxesse no dia seguinte bem cedo o seu neto e o seu sobrinho-neto, Tibério rogou aos deuses que lhe manifestassem, por algum sinal, qual dos dois destinavam para seu sucessor, pois, ainda que desejasse que o trono ficasse nas mãos de Tibério, não ousava deliberar em assunto de tamanha importância sem conhecer a vontade soberana deles. O sinal que ele escolheu foi este: aquele que chegasse primeiro no dia seguinte de manhã para saudá-lo seria o imperador. Convicto de que os deuses se manifestariam em favor de seu neto, disse ao seu preceptor que o trouxesse bem cedo. Os fatos, no entanto, não corresponderam às suas esperanças, pois, tendo ordenado a Evódio desde madrugada que fizesse entrar o príncipe que chegasse primeiro, não encontrou o jovem Tibério — este não fora avisado da ordem do imperador porque havia ido participar de um banquete. Caio, porém, estava à porta do quarto, e Evódio disse-lhe que o imperador o estava esperando e o mandou entrar. Quando Tibério o avistou, compreendeu que os deuses não lhe permitiam dispor do império como ele desejava e que os seus desígnios eram opostos aos dele. Por maior que fosse o seu pesar, todavia, ele estava ainda mais comovido por causa da infelicidade de seu neto, que não somente perdera a oportunidade de sucedê-lo, mas corria agora risco de vida, pois era fácil imaginar que o parentesco não seria suficiente para conservá-la se Caio se tornasse o senhor. O soberano poder não admite divisão, e assim esse novo imperador, não se podendo julgar seguro enquanto o jovem Tibério vivesse, com certeza procuraria um meio de se desfazer dele. Tibério dava muito crédito à astrologia. Durante toda a sua vida, prestara tanta fé aos horóscopos que estes serviam de regra à maior parte de suas ações. De modo que, vendo um dia Galba aproximar-se dele, disse a alguns de seus mais íntimos amigos: "Aquele homem que vedes será imperador". E, como ele em várias ocasiões testemunhara predições seguidas de sua realização, nenhum outro dos césares nelas tanto acreditou como ele. Assim, o fato de Caio haver chegado primeiro afligiu-o tanto que ele já considerava morto o jovem Tibério e acusava a si mesmo de ter desejado conhecer a vontade dos deuses por aquela revelação, que o cumulava de dor, anunciando-lhe a perda da pessoa a quem mais ele estimava no mundo. Ele poderia ter morrido tranqüilo se a sua curiosidade não o tivesse levado a querer penetrar os segredos do futuro. No meio da grande perturbação em que se encontrava, por ver que contra a sua intenção o império cairia nas mãos daquele que não havia destinado para seu sucessor, ele não deixou, embora contra a vontade, de falar a Caio deste modo: "Meu filho, ainda que Tibério me seja mais próximo que vós, passo a vossas mãos, por minha própria escolha e para me conformar à vontade dos deuses, o império de Roma. Rogo-vos, porém, que jamais vos esqueçais da obrigação que me deveis, por vos elevar a esse grau supremo de poder, e que me testemunheis isso pelo afeto que dedicareis a Tibério. É a maior prova que poderíeis me dar de vosso reconhecimento por um tão grande benefício, do qual, depois dos deuses, me sois devedor. Além disso, a natureza vos obriga a amar uma pessoa que vos é tão próxima. Deveis considerar a sua vida um dos sustentáculos de vosso império, ao passo que a sua morte seria para vós um princípio de infelicidade, pois é perigoso aos príncipes não ter parentes. E aqueles que não temem ofender os deuses, violando as leis da natureza, não podem evitar a sua justa vingança". Tais foram as palavras de Tibério, e Caio demonstrou estar de acordo com tudo, embora sem a intenção de cumprir as suas promessas, pois, logo que foi elevado ao poder, mandou matar o jovem Tibério, como o avô tinha previsto. E ele mesmo, alguns anos depois, foi assassinado. Voltando, porém, a Tibério, ele viveu somente mais alguns dias após nomear Caio para seu sucessor. Havia reinado vinte e dois anos, cinco meses e três dias. A notícia da morte desse príncipe causou muita alegria em Roma, mas ninguém ousava acreditar, por temer que não fosse verdade. Manifestar regozijo abertamente seria pôr-se em risco de perder a vida num reinado como o de Tibério, por causa dos delatores. Tibério, mais que qualquer outro antes dele, destruíra diversas famílias importantes de Roma. Ele era tão colérico, inexorável e cruel que odiava mesmo sem motivo e considerava a morte, ainda que injusta, um leve castigo. Márcias, entretanto, foi apressadamente dar a notícia ao seu senhor. Encontrou-o saindo do banho e, aproximando-se dele, disse-lhe em hebraico: "O leão está morto". Agripa compreendeu logo o que ele queria dizer e respondeu, com transportes de alegria: "Como poderei reconhecer os serviços que me prestastes e particularmente este, de me trazerdes tão auspiciosa notícia, se é que é verdadeira?" O oficial que guardava Agripa, tendo visto com que afã Márcias havia chegado e o contentamento que Agripa manifestara depois do que ele lhe dissera, não teve dificuldade em julgar que algo de importante acontecera e rogou-lhes que dissessem de que se tratava. De início, eles hesitaram, mas ele insistiu tanto que, por fim, Agripa, que já havia contraído amizade com ele, contou-lhe o que acontecera. O oficial regozijou-se então pela sua felicidade e, para manifestar a sua alegria, ofereceu-lhe um banquete. Contudo, enquanto se divertiam e bebiam, alegres, chegou a notícia de que Tibério não havia morrido e que em poucos dias ele retornaria a Roma. A surpreendente notícia deixou abalado o oficial, porque ele então imaginou o risco que corria a sua vida por tratar de modo tão benevolo um prisioneiro que estava sob a sua guarda, e isso por acreditar que o imperador havia morrido. Então ele empurrou Agripa do assento onde este se colocara à mesa do festim e disse-lhe: "Imaginais então que, após terdes me enganado com essa mentira sobre a morte do imperador, ficareis impune? Ou que essa falsa notícia não vos irá custar a cabeça?" Ditas essas palavras, ordenou que o acorrentassem de novo e o vigiassem ainda com mais cuidado que antes. A noite passou-se em amargura para Agripa. Porém, no dia seguinte não havia mais dúvida quanto à morte do imperador. Todos a comentavam abertamente, e alguns chegaram a oferecer sacrifícios para testemunhar a própria alegria. Chegaram nesse mesmo tempo duas cartas de Caio: uma endereçada ao senado, anunciando a morte de Tibério e dizendo que ele fora o escolhido para substituí-lo, e a outra, a Pisão, governador da cidade, que dizia a mesma coisa e ordenava que se tirasse Agripa da prisão e lhe fosse permitido voltar à sua casa. Assim, Agripa viu-se livre de todos os seus temores. E, embora estivesse ainda sob custódia, vivia no resto como desejava. Pouco depois, Caio veio a Roma, para onde fez trazer o corpo de Tibério, ordenando que lhe fizessem, segundo o costume dos romanos, soberbos funerais. Era seu desejo colocar Agripa em liberdade naquele mesmo dia, porém Antônia o aconselhou a protelar a decisão. Embora sentisse afeto por ele, julgava que aquela precipitação iria contra o decoro do império, porque não se devia apressar tanto a liberdade de alguém que Tibério mantinha preso sem manifestar desrespeito à sua memória. No entanto, alguns dias depois, Caio mandou chamá-lo. Fez com que cortasse os cabelos e mudasse a roupa e depois colocou-lhe uma coroa na cabeça, constituindo-o rei da tetrarquia que pertencera a Filipe. Deu-lhe ainda a tetraquia de Lisânias. Como sinal de seu afeto, presenteou-o com uma cadeia de ouro que tinha o mesmo peso daquela, de ferro, que ele usara na prisão. Em seguida, nomeou Marulo governador da Judéia. 787. No segundo ano do reinado de Caio, Agripa rogou-lhe que lhe permitisse viajar ao seu reino, a fim de organizar todos os assuntos referentes ao governo, com a promessa de retornar logo depois. Então, com a permissão do imperador, ele entrou no seu próprio país. Vimos que foi contra toda espécie de probabilidade que esse príncipe veio a ter a coroa sobre a cabeça. Tal fato é um ilustre exemplo do poder da fortuna, quando se comparam as misérias passadas com a felicidade presente. Alguns, por isso, admiravam a firmeza e a constância que ele havia demonstrado para ver realizadas as suas esperanças. Outros tinham dificuldade em acreditar no que viam com os próprios olhos. CAPÍTULO 9 HERODIAS, MULHER DE HERODES, O TETRARCA, E IRMÃ DO REI AGRIPA, NÃO PODENDO TOLERAR A PROSPERIDADE DO IRMÃO, OBRIGA O MARIDO A IR A ROMA, PARA LÁ OBTER TAMBÉM UMA COROA. AGRIPA ESCREVE CONTRA ELE AO IMPERADOR. CAIO ENVIA HERODES E A MULHER PARA O EXÍLIO, A LIÃO. 788. Herodias, irmã do novo rei Agripa e mulher de Herodes, tetrarca da Galiléia e da Peréia, não pôde suportar a prosperidade de seu irmão, que o elevava acima de seu marido. Ela ardia de inveja ao ver aquele que antes fora obrigado a se refugiar junto deles por não ter meios de pagar as próprias dívidas retornar agora cumulado de honras e de glória. Tão grande mudança de fortuna era-lhe insuportável, principalmente quando o via caminhar com vestes reais no meio do povo. Assim, não podendo dissimular o despeito que sem cessar lhe roía o coração, insistia com o marido para que fosse a Roma reivindicar semelhante honra. Declarou ser-lhe intolerável ver Agripa — que era apenas filho de Aristóbulo, ao qual o pai mandara matar, e que fora obrigado a fugir por não ter recursos para saldar os próprios débitos — usando uma coroa, enquanto aquele que era filho de um rei e que todos os parentes desejavam ver carregando o cetro não aspirava a semelhante glória, contentando-se em levar uma vida modesta. Dizia ela: "Se pudestes suportar até aqui viver numa condição menos elevada que a de vosso pai, começai agora a desejar pelo menos uma honra que seja digna do vosso nascimento. Não queirais ser inferior a um homem que outrora educastes nem tão fraco para não trabalhar, na abundância dos bens que desfrutais, pela obtenção de algo que ele conseguiu num estado de carência, em que tudo lhe faltava. É vergonhoso para vós caminhar à retaguarda daquele que já se viu na condição de não poder viver sem o vosso auxílio. Vamos, pois, a Roma e não poupemos para isso trabalhos nem despesas, porque não há maior prazer em conservar tesouros senão para empregá-los na obtenção de um reino". Herodes, que amava a tranqüilidade e desconfiava da corte romana, tudo fez para dissuadir a mulher de tal idéia. Porém, quanto mais ela o via resistir, mais insistia, e nada havia que a sua paixão por obter um reino não a levasse a realizar para consegui-lo. Por fim, tanto o atormentou que ele não pôde mais resistir às suas importunações — esse consentimento foi-lhe arrancado, não obtido. E, com um soberbo séquito, partiram juntos para Roma. Agripa, apenas o soube, enviou Fortunato, um de seus libertos, ao imperador, com presentes e cartas, nas quais escreveu contra Herodes. Ele deu ao liberto o encargo de procurar a ocasião favorável para tratar do assunto junto a Caio. Fortunato teve o vento tão favorável que chegou a Putéoli ao mesmo tempo que Herodes. Caio achava-se então em Bayes, pequena cidade da Campanha, onde existem soberbos palácios, em grande número, construídos pelos imperadores, sendo que cada um deles se havia esforçado para construir o maior em magnificência. Fora convidado a ir para lá porque havia também fontes e banhos de água quente, não menos agradáveis que benéficos para a saúde. Depois que Herodes cumprimentou o imperador, Fortunato apresentou-lhe as cartas de Agripa. Ele as leu na mesma hora e entendeu que Agripa acusava Herodes de haver conspirado com Sejano contra Tibério e de agora favorecer Artabano, rei dos partos, contra o próprio Caio — e não era necessário maior prova que o fato de ele ter em seus arsenais o suficiente para armar setenta mil homens. O imperador, impressionado com tal acusação, perguntou a Herodes se era verdade que ele possuía tão grande quantidade de armas. E, como ele respondesse que sim, porque não o podia negar, julgou que a traição dele era verdadeira. Assim, tirou-lhe a tetrarquia e anexou-a ao reino de Agripa, confiscou todo o seu dinheiro, entregando-o também ao Agripa, e condenou-o ao exílio perpétuo em Lião, cidade das Gálias. Porém, ao saber que a mulher de Herodes era irmã de Agripa, decidiu deixar com ela aquele dinheiro, na convicção de que a princesa não desejava seguir o marido em sua desgraça, e disse-lhe que a perdoava, por causa de seu irmão. Ela então respondeu: "Vós agis, senhor, de uma maneira digna de vós, fazen-do-me esse favor. Todavia, o amor pelo meu marido não me permite recebê-lo. Como tive parte na sua prosperidade, não é justo que eu o abandone agora no infortúnio". Tão grande coragem numa mulher foi intolerável a Caio, e ele a mandou também para o exílio, entregando todos os seus bens a Agripa. Deus assim castigou Herodias pela inveja que sentia da felicidade de seu irmão e Herodes por ter dado ouvidos às vãs insinuações de sua mulher. 789. Esse novo imperador governou muito bem durante os dois primeiros anos de seu reinado. Ele conquistou o coração dos romanos e de todos os povos sujeitos ao império. Mas esse grande poder a que se viu elevado deixou-o depois tão cheio de si que ele se esqueceu de que era homem. A sua loucura cresceu tanto que ele chegou a proferir blasfêmias contra Deus e a atribuir a si mesmo honras que somente a Ele pertencem. CAPÍTULO 10 DIVERGÊNCIAS ENTRE OS JUDEUS E OS GREGOS DE ALEXANDRIA. ELES MANDAM UMA EMBAIXADA A CAIO. FÍLON É DESIGNADO CHEFE DA DELEGAÇÃO DOS JUDEUS. 790. Surgiu em Alexandria uma séria divergência entre os judeus e os gregos, e eles mandaram, de cada lado, três embaixadores a Caio, chefiados por Apio e Fílon. Apio acusou os judeus de várias coisas, principalmente de que, não havendo então um só lugar em todo o território do Império Romano onde não houvesse um Templo e altares em honra ao imperador e onde ele não fosse reverenciado como um deus, os judeus, e somente eles, se recusavam a prestar-lhe aquela honra e a jurar em seu nome. A isso ele acrescentou tudo o que julgou capaz de irritar ainda mais o imperador. Quando Fílon, irmão de Alexandre, alabarche, homem de grande mérito e muito estimado, eminente filósofo, se preparou para responder pelos judeus, Caio ordenou que ele se retirasse. Estava de tal modo irado contra ele que, não tivesse Fílon obedecido prontamente, o teria sem dúvida ofendido. Fílon, então, voltando-se para os judeus que o acompanhavam, disse-lhes: "É agora que devemos esperar, mais do que nunca, que Deus não deixe de nos ser favorável, pois o imperador está muito irritado contra nós". CAPÍTULO 11 CAIO ORDENA A PETRÔNIO, GOVERNADOR DA SÍRIA, QUE OBRIGUE OS JUDEUS, PELAS ARMAS, A RECEBER A SUA ESTÁTUA NO TEMPLO. PETRÔNIO, COMOVIDO PELAS SÚPLICAS DOS JUDEUS, ESCREVE EM FAVOR DELES. 791. Esse soberbo príncipe, não podendo tolerar que os judeus fossem os únicos a recusar obedecer-lhe, enviou Petrônio à Síria para ser governador em lugar de Vitélio, com ordem de entrar com armas na Judéia e colocar a sua estátua no Templo, em Jerusalém, se os judeus o consentissem, ou de fazer-lhes guerra e obrigá-los a aceitá-la à força, caso a rejeitassem. Petrônio, logo que chegou à Síria, reuniu o que pôde de tropas auxiliares para unir às duas legiões romanas que o acompanhavam e estabeleceu quartéis de inverno em Tolemaida, com a intenção de iniciar a guerra assim que chegasse a primavera. Ele escreveu a Caio informando-o dessa decisão, e o imperador louvou a sua diligência e ordenou-lhe que não deixasse de guerrear os judeus, se estes permanecessem obstinados. No entanto, vários dentre os de nossa nação foram procurar Petrônio em Tolemaida para rogar-lhe que não os obrigasse a fazer uma coisa tão contrária à sua religião. Declararam que, se ele estava absolutamente resolvido a colocar a estátua do imperador no Templo, então devia começar por matá-los todos, pois, enquanto vivessem, jamais permitiriam que se violassem as leis que haviam recebido de seu admirável legislador, as quais eles e seus antepassados observavam havia tantos séculos. Petrônio respondeu-lhes: "As vossas razões poderiam comover-me, se o governador se orientasse pelos meus avisos, mas sou obrigado a obedecer-lhe, e a isso não poderia eu faltar sem correr o risco de ser morto". Os judeus retrucaram: "Se estais resolvido a executar a todo custo as ordens do imperador, também nós estamos decididos a observar as nossas leis e a imitar a virtude de nossos antepassados, pondo toda a nossa confiança no auxílio de Deus. Acaso poderíamos, sem impiedade, preferir a conservação de nossa vida à obediência que devemos a Ele ou não nos expor ao perigo a fim de permanecermos em nossa santa religião? E, como Deus sabe que é somente para lhe prestarmos a honra que lhe é devida que estamos prontos a nos arriscar, esperamos a sua proteção. Tudo o que nos possa acontecer, mesmo a morte, ser-nos-á mais fácil de suportar que a vergonha e a dor de uma obediência covarde e a violação de nossas leis, que atrairia sobre nós a cólera de Deus, a qual, vós mesmo podeis julgar, é muito mais temível que a do imperador". Essas palavras convenceram Petrônio de que ele não poderia vencer a obstinação dos judeus e que seria absolutamente necessário recorrer às armas e derramar muito sangue antes que pudesse colocar a estátua no Templo. Então ele partiu para Tiberíades, acompanhado somente pelos seus amigos e domésticos, para julgar melhor do estado das coisas. E os judeus, que não podiam ignorar o perigo que os ameaçava, embora temessem muito mais a violação de suas leis, foram, em grandíssimo número, procurá-lo em Tiberíades para pedir-lhe ainda que não os reduzisse ao desespero e nem insistisse em colocar no Templo aquela estátua, que iria profanar-lhe a santidade. Petrônio então inquiriu: "Estais mesmo resolvidos a fazer guerra ao imperador, sem considerar o seu poder nem a vossa fragilidade?" Eles responderam: "Nós não tomaremos as armas, porém morreremos todos antes de violar as nossas leis". Depois de assim falar, eles se lançaram por terra e, apresentando a garganta, mostraram que estavam dispostos a sofrer até mesmo a morte. Esse espetáculo tão comovente continuou por quarenta dias, e os judeus, durante esse tempo, abandonaram a cultura de suas terras, embora fosse a época de semear, tão firmes estavam na resolução de morrer a permitir a consagração daquela estátua. Estavam as coisas nesse pé, quando Aristóbulo, irmão do rei Agripa, acompanhado por Elcias, cognominado o Grande, dos principais dessa família e dos mais ilustres entre os judeus, foi procurar Petrônio para pedir-lhe que considerasse, pois a resolução daquele povo era inflexível; que não os levasse ao desespero, mas comunicasse ao imperador que eles não tinham intenção alguma de se revoltar; que somente o temor de violar as suas leis fazia com que eles preferissem morrer a receber aquela estátua; que eles haviam até mesmo abandonado o cultivo de seus campos, e, não havendo semeadura, aconteceriam muitos roubos e saques, e eles não teriam meios de pagar o tributo ao imperador; que o príncipe se comovesse com tais razões e não se deixasse levar a medidas extremas contra uma ação que não tinha nenhuma característica de revolta; e que, se ele permanecesse firme em sua resolução, nada impediria que se começasse a guerra. Aristóbulo, depois de falar com muito entusiasmo, conseguiu comover Petrônio, ante as considerações que fizera, bem como pela presença de tantas outras pessoas da nobreza, pela importância do assunto, pela invencível confiança dos judeus e pela convicção da injustiça que ele cometeria ao sacrificar um tão grande número de homens só para satisfazer a loucura de Caio, sem falar que, por ter ofendido a Deus, iria viver dali em diante na expectativa de um castigo. Petrônio então achou melhor escrever ao imperador e apresentar a dificuldade que encontrava na execução de suas ordens, embora soubesse que isso iria provocar-lhe um grande acesso de ira, por não ver imediatamente cumpridas as suas determinações, e que, além de tudo, corria um grande perigo. Porém, ainda que não pudesse acalmá-lo e, em vez de fazê-lo mudar de opinião, atraísse a cólera do imperador contra si, estava certo de que era seu dever, como homem de bem, não temer expor a própria vida para salvar a de um grande povo. Depois de tomar essa resolução, ordenou que os judeus viessem a Tiberíades. Eles acorreram em grande número, e ele assim lhes falou: "Não foi por minha própria iniciativa que reuni tantas tropas, mas a isso fui obrigado para executar uma ordem do imperador, cujo poder é tão grande e absoluto que corre grave perigo quem tarda em obedecer-lhe. E a isso sou tanto mais obrigado quanto foi ele mesmo que me elevou a esta dignidade. No entanto, como não poderia condenar o vosso zelo pela observância de vossas leis e nem concordar que o príncipe tente profanar o Templo de Deus, prefiro a vossa salvação à minha segurança e à minha sorte. Escreverei então ao imperador para apresentar-lhe as vossas razões e os vossos sentimentos e nada esquecerei, no que depender de mim, para tentar persuadi-lo a não os tomar em mau sentido. Queira Deus, cujo poder está tão acima da força dos homens, se for do seu agrado, ajudar-me em manter a vossa religião na sua integridade, não castigando o imperador pelo pecado que a sua paixão por ser honrado o faz cometer. Se ele se julgar ofendido com o que vou escrever, que volte a sua cólera contra mim. Consolar-me-ei com tudo o que me fizer sofrer, ainda que me venha a tirar a vida, contanto que eu não veja perecer uma tão grande multidão de gente cujas ações são louváveis e justas. Assim, retornai todos a vossas casas e recomeçai o cultivo das terras, pois me encarrego de escrever a Roma e de vos ajudar com todas as minhas forças, tanto por mim mesmo quanto por meio de meus amigos". Deus não tardou a demonstrar o quanto aprovava o proceder desse sábio governador e a dar a toda aquela assembléia um testemunho visível de seu auxílio. Apenas Petrônio encerrou as suas palavras, exortando ainda os judeus a criar ânimo e a cultivar as terras, o ar, que estava sereno e sem a menor sombra de nuvem, transformou-se completamente, e caiu uma chuva abundante, contra todas as expectativas, ante uma seca tão forte como a que então se atravessava e que levava ao desespero os homens, até ali muitas vezes enganados pela aparência carregada de alguns dias nublados, mas que não lhes traziam água. Assim, os judeus ficaram convencidos de que os serviços que o seu governador lhes prometia prestar não seriam inúteis. O próprio Petrônio ficou impressionado com aquele prodígio, tanto que não pôde duvidar de que Deus cuidava daquele povo. Não deixou de escrever ao imperador e aconselhou-o a não lançar no desespero uma nação, tentando destruí-la, nem obrigá-la por uma luta sangrenta a abandonar a religião que professava. Havia também a considerar as grandes rendas de que se privaria e a maldição que esse ato atrairia sobre ele nos tempos futuros. A isso acrescentou que Deus havia manifestado por meio de sinais sensíveis o seu poder e o quanto aquele povo lhe era querido. 792. O rei Agripa, que então estava em Roma e era cada vez mais estimado pelo imperador, deu-lhe um banquete, tão suntuoso que sobrepujou em magnificência, em cortesia e em toda espécie de iguarias a todos os que antes se lhe ofereceram, sem mesmo se excetuarem os do próprio imperador, tal era o seu esforço para se manter agradável àquele príncipe. Caio, admirado de tanta suntuosidade e comovido pelo fato de que Agripa, a fim de agradá-lo, não temia fazer uma despesa que ia além de suas posses, não quis se mostrar inferior em generosidade. Assim, no meio da alegria, quando o vinho começava a deixá-lo excitado, disse a Agripa, que bebia à sua saúde: "Não é de hoje que reconheço a vossa afeição. Dela me destes provas, mesmo com perigo, vivendo ainda Tibério, e vejo que continuais a tudo fazer para manifestar a vossa boa vontade para comigo. Assim, como me seria vergonhoso deixar-me sobrepujar por vós, quero reparar tudo o que deixei de vos fazer até agora e acrescentar grande generosidade à minha liberalidade precedente, e que a vossa felicidade futura sobrepuje em muito a que agora desfrutais". Caio, assim falando, não duvidava de que Agripa lhe haveria de pedir grandes extensões de terra ou os tributos de algumas cidades. Agripa, no entanto, havia muito tempo estava preparado para pedir uma outra graça, tomando aquela ocasião para obtê-la, sem manifestar, todavia, que era um desígnio premeditado. E respondeu que, quando se havia unido a ele contra a vontade de Tibério, não o fizera com o fim de se aproveitar disso, mas somente pelo desejo de conquistar-lhe as boas graças. E os benefícios com que ele o honrara haviam sobrepujado as suas maiores expectativas. E acrescentou: "Pois, ainda que me pudésseis conceder outras graças, já me satisfizestes plenamente quanto ao que eu poderia desejar de vossa bondade". Caio, admirado de tão grande moderação, insistiu que ele pedisse o que desejava, se estivesse em seu poder concedê-lo. Então Agripa respondeu: "Senhor, uma vez que a vossa extrema bondade para comigo faz com que me julgueis digno de vossos favores, far-vos-ei um pedido que não se refere ao acréscimo de meus bens, pois a vossa liberalidade me pôs em condições de não mais precisar disso. A graça que vos suplico granjeará para vós uma grande fama de piedade, conquistará o favor de Deus em todos os vossos desígnios e me será mais vantajosa que qualquer outra, dentre as tantas que já me concedestes. O meu pedido é que revogueis a ordem que destes a Petrônio de pôr a vossa estátua no Templo, em Jerusalém". Agripa, após enunciar o seu pedido, não ignorava que arriscava nisso nada menos que a própria vida, pois estava se contrapondo a uma ordem do colérico imperador. Mas Caio, cujo espírito Agripa havia acalmado pelos serviços que lhe prestara, teve vergonha de recusar-lhe uma graça que ele próprio insistira em conceder diante de diversas testemunhas. Não poderia, daquele modo, faltar à palavra que empenhara. Ele admirou-se da generosidade de Agripa, que o fazia preferir a conservação das leis de seu país e do culto ao Deus que ele adorava ao progresso de seu reino e ao acréscimo de suas rendas. Assim, concedeu-lhe aquela graça e escreveu a Petrônio louvando-o por haver reunido as tropas com tanta solicitude a fim de executar o que ele lhe havia ordenado. E, caso já houvesse colocado a estátua no Templo, que deixasse as coisas como estavam. Mas, se lá ela ainda não estava, que desse descanso às tropas e regressasse à Síria sem nada mais fazer, porque estava concedendo aquela dádiva aos judeus, a rogo de Agripa, a quem muito estimava para lhe negar alguma coisa. Era isso que o dizia a carta. Porém, vindo a saber que os judeus ameaçavam tomar as armas e considerando aquela ousadia uma atitude atrevida e intolerável contra a sua autoridade, ficou muito encolerizado, pois não sabia moderar-se, fossem quais fossem os motivos, antes, vangloriava-se de se deixar levar pela paixão. Assim, escreveu a Petrônio imediatamente, nestes termos: "Uma vez que preferistes os presentes dos judeus às minhas ordens e não tendes receio de me desobedecer para agradá-los, é meu desejo que sejais vós mesmo o vosso juiz quanto ao castigo que mereceis, pois atraístes sobre vós a minha cólera, e que o vosso exemplo ensine ao século presente e aos futuros o respeito que é devido às ordens dos imperadores". A viagem de navegação daqueles que levavam a carta, que era mais uma sentença de morte que uma missiva, foi muito demorada, e Petrônio, ao recebê-la, já havia sido informado da morte de Caio. Nisso Deus mostrou que não havia esquecido o perigo ao qual Petrônio se havia exposto, pela sua honra e para obsequiar o seu povo, e manifestou um sinal de sua vingança sobre esse ímpio imperador, que ousava igualar-se a Ele. Tão generosa ação de Petrônio não somente lhe granjeou a estima de todas as províncias submetidas ao império como até mesmo a de todos os romanos, particularmente dos senadores, ao quais esse mau imperador tinha prazer em perseguir. Direi a seu tempo a causa da conspiração que se tramou contra ele e a maneira como foi executada. Mas aqui devo acrescentar que Petrônio, após receber a primeira carta, que lhe foi entregue por último, não se cansava de admirar o proceder e a providência de Deus, que tão prontamente o havia recompensado por seu respeito ao Templo e pelo auxílio que prestara aos judeus. CAPÍTULO 12 DOIS JUDEUS, ASINEU E ANILEU, QUE ERAM IRMÃOS, DE SIMPLES CIDADÃOS TORNAM-SE TÃO PODEROSOS NA BABILÔNIA, QUE CAUSAM TRABALHO AOS PARTOS. SEUS FEITOS. SUA MORTE. OS GREGOS E OS SÍRIOS QUE MORAVAM EM SELÊUCIA REÚNEM-SE CONTRA OS JUDEUS E ESTRANGULAM CINQÜENTA MIL DELES. 793. Os judeus que habitavam a Mesopotâmia, particularmente os da Babilônia, padeceram naquele tempo males que jamais haviam sofrido em séculos precedentes. E, como pretendo tratar com muita exatidão esse assunto, sou obrigado a remontar à origem deles. Existe na província da Babilônia uma cidade de nome Neerda, cujo território é tão fértil que, embora seja muito povoada, produz o suficiente para alimentar todos os seus habitantes. Tem ela ainda a vantagem de não estar exposta aos ataques dos inimigos porque, além de suas grandes fortificações, é rodeada pelo Eufrates, a cuja margem está ainda situada outra cidade, de nome Nisibe. Como os judeus confiavam na força dessas duas praças, ali punham em depósito o dinheiro que consagravam a Deus, segundo o costume de nossos antepassados, e depois o mandavam a Jerusalém com uma grande escolta, para que não fosse roubado pelos partos, que então reinavam na Babilônia. ENTRE OS JUDEUS DE NEERDA, HAVIA DOIS IRMÃOS, ASINEU E ANILEU, CUJO PAI MORRERA, E A MÃE OS FEZ APRENDER O OFÍCIO DE TECELÃO, QUE NÃO É UMA PROFISSÃO VERGONHOSA PARA OS HOMENS. MAS UM DIA ELES CHEGARAM MUITO TARDE AO TRABALHO E FORAM ESPANCADOS PELO SEU SENHOR. NÃO PODENDO SUPORTAR AQUELA AFRONTA, APANHARAM TODAS AS ARMAS QUE PUDERAM ENCONTRAR EM CASA E RETIRARAM-SE A UM LUGAR ONDE O RIO SE DIVIDE EM DOIS E É MUITO RICO, NÃO SOMENTE EM PASTAGENS, MAS EM TODA ESPÉCIE DE FRUTOS, PARTICULARMENTE DAQUELES QUE SE CONSERVAM DURANTE O INVERNO. ALGUNS MOÇOS, QUE NÃO TINHAM COM QUE VIVER, JUNTARAM-SE A ELES, E TODOS ARMARAM-SE O MAIS POSSÍVEL. OS DOIS IRMÃOS FICARAM SENDO OS SEUS COMANDANTES, SEM QUE NENHUM DELES SE OPUSESSE. CONSTRUÍRAM DEPOIS UM FORTE, DE ONDE MANDAVAM PEDIR AOS HABITANTES DOS PAÍSES VIZINHOS UMA CONTRIBUIÇÃO, TANTO EM GADO COMO QUANTO EM OUTRAS COISAS NECESSÁRIAS PARA A SUA SUBSISTÊNCIA, COM A PROMESSA DE DEFENDÊ-LOS CONTRA OS QUE OS QUISESSEM ATACAR, SE OS ATENDESSEM, E COM AMEAÇA DE MATAR OS SEUS REBANHOS, CASO NÃO O FIZESSEM. ASSIM, TODOS ERAM OBRIGADOS A FAZER O QUE ELES QUERIAM, E O SEU NÚMERO AUMENTAVA SEMPRE, A PONTO DE ELES SE TORNAREM TEMÍVEIS A TODO O PAÍS. A NOTÍCIA DESSE FATO CHEGOU ATÉ ARTABANO, REI DOS PARTOS. O PRÍNCIPE DA BABILÔNIA, PARA AFOGAR O MAL EM SUA ORIGEM, REUNIU TROPAS O QUANTO PÔDE, TANTO DE PARTOS COMO DE BABILÔNIOS, E MARCHOU RAPIDAMENTE CONTRA ELES, COM A INTENÇÃO DE SURPREENDÊ-LOS. COMEÇOU POR RODEAR O PÂNTANO E PROIBIU OS HOMENS DE PASSAR ALÉM, PORQUE JULGAVA QUE, SENDO SÁBADO O DIA SEGUINTE, OS JUDEUS NÃO SE DEFENDERIAM E DEIXAR-SE-IAM APRISIONAR SEM COMBATER. ASINEU, QUE DE NADA DESCONFIAVA, DESCANSAVA COM ALGUNS DE SEUS HOMENS E TINHA AS ARMAS PERTO DE SI. ENTÃO ELE DISSE: "MEUS COMPANHEIROS, ESTOU OUVINDO UM RELINCHO. NÃO DE CAVALOS QUE PASTAM, MAS DAQUELES QUE TRANSPORTAM SOLDADOS, PORQUE OUÇO TAMBÉM O BARULHO DOS ARREI-OS. POR ISSO, JULGO QUE SÃO INIMIGOS QUE VÊM PARA NOS SURPREENDER E NÃO DESEJO ENGANAR-ME". DEPOIS DE LHES FALAR, ENVIOU ALGUNS HOMENS PARA DESCOBRIR O QUE ESTAVA ACONTECENDO, E UM DELES VEIO DIZER-LHE QUE AQUELA SUPOSIÇÃO ERA VERDADEIRA: OS INIMIGOS AVANÇAVAM, EM NÚMERO ELEVADÍSSIMO, E DIZIAM QUE NÃO LHES SERIA DIFÍCIL DERROTÁ-LOS SE OS ATACASSEM NO DIA DE DESCANSO, QUANDO AS LEIS DO PAÍS IMPEDIAM AOS JUDEUS A DEFESA. ASINEU, EM VEZ DE SE ADMIRAR COM ESSA COMUNICAÇÃO, DISSE QUE ERA NECESSÁRIO NÃO LHES PERMITIR A VANTAGEM, PARA IMPEDIR QUE O INIMIGO OS ATACASSE E MATASSE SEM ENCONTRAR RESISTÊNCIA. AO CONTRÁRIO, EM TÃO PREMENTE PERIGO, DEVIAM DEMONSTRAR A SUA CORAGEM E VIRTUDE, PARA PELO MENOS VENDER BEM CARO A PRÓPRIA VIDA. DIZENDO ESSAS PALAVRAS, TOMOU AS ARMAS, E O EXEMPLO DE SUA CORAGEM FEZ QUE TODOS OS OUTROS TAMBÉM AS EMPUNHASSEM COM INTREPIDEZ. ELES ENTÃO CAÍRAM SOBRE OS INIMIGOS, QUE AGIAM DE MODO DESCUIDADO, COMO SE JÁ ESTIVESSEM COM A VITÓRIA GARANTIDA, MATANDO MUITOS DELES, DESBARATANDO-OS E PONDO-OS EM FUGA. A NOTÍCIA DESSA DERROTA CHEGOU AO REI DOS PARTOS, E ELE CONCEBEU TANTA ESTIMA PELA CORAGEM DOS DOIS IRMÃOS QUE DESEJOU CONHECÊ-LOS. MANDOU DIZER-LHES, POR MEIO DE UM DE SEUS GUARDAS EM QUEM MAIS ELE CONFIAVA, QUE, EMBORA TIVESSE MOTIVO DE SE OFENDER, PELAS VIOLÊNCIAS QUE HAVIAM COMETIDO CONTRA O SEU REINO, ESTAVA MAIS ADMIRADO COM A CORAGEM DELES E POR ISSO PROMETIA, EM SEU NOME, NÃO SOMENTE PERDOÁ-LOS DE BOA FÉ, MAS FAZER COM QUE SENTISSEM OS EFEITOS DE SUA LIBERALIDADE, DESDE QUE, DALI POR DIANTE, ELES EMPREGASSEM A SUA BRAVURA APENAS NO SEU SERVIÇO. EMBORA PROMESSAS TÃO VANTAJOSAS PUDESSEM INSPIRAR CONFIANÇA A ANILEU, ELE ACHOU POR BEM NÃO SE APRESSAR EM PARTIR, MAS ENVIOU ASINEU, SEU IRMÃO, PARA ENCONTRAR-SE COM O REI, JUNTO COM PRESENTES ADEQUADOS AO SEU PODER. O PRÍNCIPE RECEBEU-O MUITO BEM E PERGUNTOU POR QUE O IRMÃO NÃO VIERA COM ELE. AO ENTENDER, PELA RESPOSTA, QUE O TEMOR O HAVIA IMPEDIDO DE ABANDONAR OS PÂNTANOS, JUROU PELOS SEUS DEUSES QUE AMBOS PODIAM VIR EM SEGURANÇA. E, PARA DAR-LHES INTEIRA PROVA DISSO, TOCOU-LHE A MÃO DIREITA (ENTRE OS BÁRBAROS, ESSA É UMA PROVA E O MAIOR SINAL DE UMA PALAVRA INVIOLÁVEL). DESPEDIU-O EM SEGUIDA, PARA QUE FOSSE ENCONTRAR-SE COM O IRMÃO, A FIM DE PERSUADI-LO A VIR TAMBÉM. NISSO O PRÍNCIPE AGIA COM MUITA PRUDÊNCIA, POIS TINHA UM DUPLO OBJETIVO: GANHAR OS DOIS IRMÃOS E SERVIR-SE DELES PARA DOMINAR OS GRANDES DE SEU PAÍS, QUE PARECIAM INCLINADOS A SE REVOLTAR QUANDO O VIAM OCUPADO EM OUTROS LUGARES. ALÉM DO MAIS, ENQUANTO ESTIVESSEM EMPENHADOS EM REPRIMIR A REBELIÃO, OS IRMÃOS NÃO TERIAM TEMPO DE FORTIFICAR O LADO DA BABILÔNIA, FOSSE PELO CRESCIMENTO DO PARTIDO DE ASINEU, FOSSE PELO DESEJO DE FAZER-LHE GUERRA. ASINEU, APÓS SABER PELO IRMÃO TUDO O QUE SE HAVIA PASSADO, NÃO TEVE DIFICULDADE EM SE DECIDIR A IR COM ELE PARA ENCONTRAR-SE COM O REI. FORAM RECEBIDOS AMAVELMENTE, E O PRÍNCIPE, VENDO QUE ASINEU ERA FRANZINO E DE APARÊNCIA INSIGNIFICANTE, DIZIA AOS AMIGOS QUE MUITO LHE ADMIRAVA QUE EM UM CORPO TÃO PEQUENO HOUVESSE UMA ALMA TÃO GRANDE. UM DIA, QUANDO ESTAVAM À MESA, ELE APRESENTOU ASINEU A ABDEGAZE, GENERAL DE SEU EXÉRCITO, E FALOU A ESTE, EM TERMOS MUITO ELOGIOSOS, DO VALOR DEMONSTRADO POR AQUELE NA GUERRA. ROGOU-LHE ENTÃO O BÁRBARO QUE O REI LHE PERMITISSE MATÁ-LO, PARA O CASTIGAR PELOS MUITOS MALES QUE HAVIA CAUSADO AOS SEUS SÚDITOS. ARTABANO, SURPREENDIDO POR ESSA PROPOSTA, RESPONDEU QUE JAMAIS PERMITIRIA QUE SE CAUSASSE QUALQUER MAL A UM HOMEM QUE HAVIA CONFIADO EM SUA PALAVRA, A QUAL ELE LHE DERA COM JURAMENTO, TOCANDO A SUA MÃO. O REI ACRESCENTOU: "SE QUEREIS, TODAVIA, AGIR COMO HOMEM DE CORAGEM, NÃO É NECESSÁRIO QUE EU VIOLE O MEU JURAMENTO PARA QUE VINGUEIS OS PARTOS DA VERGONHA QUE ELE OS FEZ PASSAR. DEVEREIS ENTÃO ATACÁ-LO EM CAMPO ABERTO, QUANDO ELE TIVER REGRESSADO, SEM QUE EU ME META NISSO". MAS ESSE GENEROSO PRÍNCIPE MANDOU BEM CEDO CHAMAR ASINEU E DISSE-LHE: "DEVEIS REGRESSAR AGORA, PARA QUE A VOSSA PERMANÊNCIA AQUI NÃO ATRAIA SOBRE VÓS A IRA DE MEUS GENERAIS E ELES NÃO VENHAM, SEM O MEU CONSENTIMENTO, ATENTAR CONTRA A VOSSA VIDA. RECOMENDO-VOS À PROVÍNCIA DA BABILÔNIA. DEFENDEI-A COM A VOSSA SOLICITUDE, EVITANDO-LHE OS SAQUES E OS MALES QUE LHE POSSAM ADVIR. É UMA GRATIDÃO QUE ME DEVEIS PELA FIDELIDADE COM QUE EU INVIOLAVELMENTE VOS GUARDEI, SEM ESCUTAR OS QUE CONSPIRAVAM CONTRA A VOSSA RUÍNA, PERMANECENDO FIRME NA RESOLUÇÃO DE VOS PROTEGER". ARTABANO, DEPOIS DESSAS PALAVRAS, DESPEDIU-O COM PRESENTES. IMEDIATAMENTE APÓS O SEU REGRESSO, ASINEU CONSTRUIU NOVOS FORTES, REFORÇOU OS QUE JÁ HAVIA CONSTRUÍDO E TORNOU-SE TEMÍVEL EM POUCO TEMPO. NENHUM OUTRO ANTES DELE, VINDO DE BERÇO TÃO HUMILDE, CONQUISTOU TÃO ELEVADO GRAU DE PODER. ELE NÃO ERA SOMENTE REVERENCIADO PELOS BABILÔNIOS. TAMBÉM OS PARTOS ENVIADOS COMO GOVERNADORES ÀS PROVÍNCIAS PRESTAVAM-LHE A MESMA HONRA, E TODAS AS QUESTÕES NA MESOPOTÂMIA ESTAVAM SUBMISSAS AO SEU CONSELHO. OS DOIS IRMÃOS PASSARAM QUINZE ANOS NESSA GRANDE PROSPERIDADE, QUE SÓ VEIO A DIMINUIR QUANDO ELES, VENCIDOS PELA VOLUPTUOSIDADE, ABANDONARAM AS LEIS DE SEUS ANTEPASSADOS. TUDO COMEÇOU QUANDO UM GENERAL DOS PARTOS FOI ENVIADO COMO GOVERNADOR ÀQUELAS PROVÍNCIAS. ELE TINHA UMA MULHER QUE, ALÉM DE POSSUIR VÁRIAS E EXCELENTES QUALIDADES, ERA DE EXTRAORDINÁRIA BELEZA, ADMIRADA POR TODOS. ANILEU, QUER PORQUE A TENHA VISTO, QUER PORQUE APENAS OUVIRA FALAR DELA, FICOU PERDIDAMENTE ENAMORADO. E, COMO NÃO PODIA DOMINAR A SUA PAIXÃO NEM OBTER O QUE DESEJAVA POR OUTROS MEIOS, DECLAROU GUERRA AO SEU MARIDO E MATOU-O NUM COMBATE. A MULHER ENTÃO FICOU EM SEU PODER, E DEPOIS ELE A DESPOSOU. A PARTIR DAÍ SOBREVIERAM TODAS AS DESGRAÇAS QUE AFLIGIRAM A ELE E AO IRMÃO, POIS AQUELA SENHORA LEVOU CONSIGO OS ÍDOLOS DE SEUS FALSOS DEUSES, AOS QUAIS ADORAVA SECRETAMENTE ENQUANTO AINDA ERA CATIVA. DEPOIS QUE ANILEU A DESPOSOU, PORÉM, JÁ NÃO OS OCULTAVA TANTO. ENTÃO OS PRINCIPAIS AMIGOS DELE FIZERAM-LHE VER QUE NADA ERA MAIS CONTRÁRIO ÀS SUAS LEIS QUE DESPOSAR UMA ESTRANGEIRA DADA À OBSERVÂNCIA DOS SACRIFÍCIOS E SUPERSTIÇÕES DE SEU PAÍS DE ORIGEM. ALERTARAM-NO TAMBÉM A NÃO SE DEIXAR LEVAR PELAS PAIXÕES, PARA QUE NÃO VIESSE A PERDER AQUELA GRANDE PROSPERIDADE DE QUE ERA DEVEDOR AO AUXÍLIO DE DEUS. TAIS CONSIDERAÇÕES, TODAVIA, EM VEZ DE IMPRESSIONÁ-LO, DEIXARAM-NO ENFURECIDO, TANTO QUE, INCAPAZ DE TOLERAR TÃO LOUVÁVEL LIBERDADE, MATOU OS PRINCIPAIS DENTRE OS QUE LHES FALAVAM COM TANTA SABEDORIA. ESTES, AO MORRER, PEDIRAM A DEUS QUE VINGASSE A SUA MORTE E O ULTRAJE FEITO ÀS SUAS SANTAS LEIS E PERMITISSE QUE ASINEU E ANILEU FOSSEM TRATADOS PELOS SEUS INIMIGOS DA MESMA FORMA COMO ELES ESTAVAM SENDO TRATADOS. ROGARAM TAMBÉM QUE CASTIGASSE AQUELES OUTROS QUE NÃO SE MOVIAM PARA SOCORRÊ-LOS, POIS, EMBORA AQUELAS PESSOAS CONDENASSEM EM SEU CORAÇÃO A ATITUDE DOS DOIS IRMÃOS, A RECORDAÇÃO DE SUA ANTIGA VIRTUDE E A LEMBRANÇA DE QUE DEVIAM A ELES A FELICIDADE QUE DESFRUTAVAM PREVALECIAM EM SEU ESPÍRITO. ESSAS PESSOAS, NO ENTANTO, QUANDO VIRAM QUE AQUELA ESTRANGEIRA NÃO SE CONSTRANGIA MAIS EM ADORAR PUBLICAMENTE OS DEUSES DOS PARTOS, JULGARAM QUE NÃO DEVIAM MAIS TOLERAR QUE ANILEU CALCASSE DAQUELE MODO AOS PÉS A RELIGIÃO DE SEUS PAIS. VÁRIOS DELES ENTÃO FORAM PROCURAR ASINEU PARA QUEIXAR-SE DE SEU IRMÃO. DISSERAM-LHE QUE, SE DE INÍCIO ELE NÃO HAVIA PERCEBIDO A SUA FALTA, AGORA JÁ ERA TEMPO DE RECONHECÊ-LA E ARREPENDER-SE DELA, ANTES QUE O CASTIGO POR TÃO GRANDE CRIME CAÍSSE SOBRE TODOS ELES; QUE NENHUM DELES APROVAVA AQUELE CASAMENTO; QUE TODOS TINHAM HORROR ÀS ADORAÇÕES ÍMPIAS; E QUE AQUELA MULHER PRESTAVA CULTO A FALSAS DIVINDADES, COM DESPREZO À HONRA QUE ERA DEVIDA SOMENTE A DEUS. ASINEU NÃO IGNORAVA QUE O PECADO DE SEU IRMÃO PODERIA CAUSAR MUITOS MALES. NO ENTANTO, VENDO QUE ELE NÃO ERA SENHOR DE SUA PAIXÃO POR AQUELA MULHER, O AFETO QUE TINHA POR ELE FAZIA-O SOFRER O QUE NÃO PODIA ABSOLUTAMENTE CONDENAR. POR FIM, ACHANDO-SE ACABRUNHADO E OPRIMIDO PELAS CONTÍNUAS QUEIXAS QUE LHE FAZIAM E QUE AUMENTAVAM SEMPRE, RESOLVEU FALAR-LHE. CENSUROU-O PELAS FALTAS QUE HAVIA COMETIDO E ORDENOU-LHE QUE SE CORRIGISSE, MAS INUTILMENTE. A MULHER, PERCEBENDO QUE ERA A CAUSA DAQUELE TUMULTO E TEMENDO QUE O AMOR DE ANILEU POR ELA SOFRESSE ALGUM RETROCESSO, COLOCOU VENENO NA COMIDA DE ASINEU. NÃO TEVE MEDO DE SER CASTIGADA, POIS TERIA POR JUIZ APENAS O MARIDO, QUE ERA ARREBATADO DE AMOR POR ELA. ASSIM, ANILEU ACUMULOU SOZINHO TODA A AUTORIDADE E ENTROU COM TODAS AS SUAS FORÇAS NAS TERRAS DE MITRIDATES, QUE ERA UMA DAS PRINCIPAIS AUTORIDADES ENTRE OS PARTOS E GENRO DO REI ARTABANO. SAQUEOU O SEU TERRITÓRIO, TOMANDO UM GRANDE NÚMERO DE DESPOJOS, TANTO EM DINHEIRO QUANTO EM ESCRAVOS, ANIMAIS E OUTRAS COISAS DE VALOR. MITRIDATES, QUE ENTÃO NÃO ESTAVA AFASTADO DALI, AO SER INFORMADO DE QUE ANILEU TOMARA AS SUAS VILAS SEM MOTIVO, FICOU ENFURECIDO COM AQUELA INJÚRIA E REUNIU O MAIOR NÚMERO POSSÍVEL DE SOLDADOS, EM PARTICULAR UMA NUMEROSA CAVALARIA, E PÔS-SE IMEDIATAMENTE EM CAMPO PARA O COMBATE. MAS, EM VEZ DE CONTINUAR A MARCHA, DETEVE-SE NUMA ALDEIA A FIM DE ESPERAR O DIA SEGUINTE PARA ATACAR, PORQUE ERA SÁBADO E POR CONSEGUINTE DIA DE DESCANSO PARA OS JUDEUS. UM SÍRIO, QUE MORAVA NUM LUGAR PRÓXIMO, AVISOU ANILEU E DISSE-LHE TAMBÉM QUE MITRIDATES OFERECERIA NAQUELA MESMA NOITE UM GRANDE BANQUETE. SEM PERDER TEMPO, ELE SERVIU A REFEIÇÃO AOS SEUS HOMENS E CAMINHOU DURANTE TODA A NOITE PARA SURPREENDER OS INIMIGOS. CHEGOU AO ACAMPAMENTO PERTO DA QUARTA VIGÍLIA E ENCONTROU-OS ADORMECIDOS, MATANDO VÁRIOS DELES E PONDO EM FUGA OS DEMAIS. PRENDEU MITRIDATES E OBRIGOU-O A MONTAR NU SOBRE UM BURRO, O QUE ENTRE OS PARTOS É A MAIOR DAS IGNOMÍNIAS. DEPOIS DE LEVÁ-LO DESSA MANEIRA ATÉ A FLORESTA MAIS PRÓXIMA, OS AMIGOS ACONSELHARAM-NO A MATÁ-LO, MAS ELE FOI DE OPINIÃO CONTRÁRIA, DIZENDO NÃO SER NECESSÁRIA TANTA CRUELDADE PARA COM UM DOS MAIORAIS DOS PARTOS, QUE TINHA A HONRA DE SER GENRO DO REI. ALÉM DO MAIS, POUPANDO-LHE A VIDA, PODERIA FAZÊ-LO ESQUECER AQUELA INJÚRIA. SE O MANDASSE MATAR, PORÉM, O REI IRIA SE VINGAR MATANDO OS JUDEUS QUE MORAVAM NA BABILÔNIA, CUJA CONSERVAÇÃO LHE ERA MUITO CARA, POIS ERA O SEU POVO. E, SENDO OS ACONTECIMENTOS DA GUERRA TÃO INCERTOS, SERIA ENTRE OS PARTOS QUE ELES PROCURARIAM REFÚGIO, CASO LHES ACONTECESSE ALGUMA DESGRAÇA. TODOS APROVARAM ESSA PROPOSTA, E ASSIM ELE MANDOU MITRIDATES EMBORA. A ESPOSA DE MITRIDATES, PORÉM, FEZ-LHE MIL CENSURAS PORQUE, SENDO GENRO DO REI, ELE DEVIA ENVERGONHAR-SE DE DEVER A VIDA A UM POVO DO QUAL RECEBERA TANTAS INJÚRIAS. DISSE-LHE ELA: "RETOMAI AGORA OS SENTIMENTOS DE VOSSA ANTIGA VIRTUDE OU, EM NOME DOS DEUSES, QUE SÃO OS CONSERVADORES DA DIGNIDADE DOS REIS, NÃO MAIS FICAREI EM VOSSA COMPANHIA". AS CRÍTICAS QUE A ESPOSA LHE MOVIA CONTINUAMENTE, O CONHECIMENTO QUE ELE TINHA DA EXTRAORDINÁRIA INSOLÊNCIA DA PRINCESA, QUE BEM PODERIA LEVÁ-LA A DIVORCIAR-SE DELE, E A CONSIDERAÇÃO DE QUE, TENDO NASCIDO PARTO, ELE SERIA INDIGNO DE VIVER SE FRAQUEJASSE DIANTE DOS JUDEUS FIZERAM-NO REUNIR, EMBORA CONTRA A VONTADE, O MAIOR NÚMERO POSSÍVEL DE TROPAS PARA GUERREÁ-LOS. ANILEU SOUBE DISSO E JULGOU QUE SERIA VERGONHOSO FICAR DETIDO EM SEUS PANTANAIS, EM VEZ DE IR AO ENCONTRO DO INIMIGO. TINHA ESPERANÇAS DE QUE A SORTE LHE FOSSE TÃO PROPÍCIA QUANTO DAS OUTRAS VEZES E ACREDITAVA QUE A SUA CORAGEM INFLUENCIARIA OS SEUS SOLDADOS, COMO SEMPRE ACONTECIA. ASSIM, PÔS-SE EM CAMPO PARA A PELEJA. ALÉM DAS TROPAS ORDINÁRIAS, VÁRIAS OUTRAS REUNIRAM-SE A ELE, NA ESPERANÇA DE QUE OS INIMIGOS FUGISSEM DELES TÃO LOGO PERCEBESSEM O SEU GRANDE NÚMERO, PERMITINDO QUE ELES, SEM PERIGO, TOMASSEM OS SEUS RICOS DESPOJOS. MAS, APÓS TEREM FEITO NOVENTA ESTÁDIOS DE CAMINHO NO CALOR DO DIA, POR UMA REGIÃO EM QUE NÃO HAVIA ÁGUA, MITRIDATES, CUJAS TROPAS ESTAVAM DESCANSADAS E EM ORDEM, SURGIU DE REPENTE E CAIU SOBRE ELES, QUE DE TÃO ABATIDOS PELO CANSAÇO E PELA SEDE, MAL PODIAM SUSTENTAR AS ARMAS. POR ISSO TOMARAM VERGONHOSAMENTE O CAMINHO DA FUGA, DEPOIS QUE MUITOS PERDERAM A VIDA. ANILEU E VÁRIOS OUTROS ESCONDERAM-SE NUM BOSQUE, E MITRIDATES TEVE A ALEGRIA DE CONSEGUIR TÃO FACILMENTE UMA VITÓRIA COMPLETA. DEPOIS QUE ANILEU SE VIU REDUZIDO A ESSE ESTADO, REUNIRAM-SE A ELE TODOS AQUELES QUE NADA TINHAM A PERDER E QUE PREFERIAM A LIBERDADE DE FAZER MAL À PRÓPRIA VIDA. E AS SUAS TROPAS AUMENTARAM DE TAL MODO QUE IGUALARAM EM NÚMERO AS ANTERIORES, NÃO EM FORÇA, PORQUE OS VELHOS SOLDADOS HAVIAM MORRIDO, ENQUANTO O NOVO GRUPO NÃO TINHA EXPERIÊNCIA NA GUERRA. AINDA ASSIM, ELES INVESTIAM CONTRA ALGUNS CASTELOS E DEVASTAVAM TODA A REGIÃO AO REDOR. OS BABILÔNIOS, VENDO-SE TRATADOS DAQUELA MANEIRA, SOLICITARAM AOS JUDEUS DE NEERDA QUE LHES ENTREGASSEM ANILEU. ESTES, PORÉM, RESPONDERAM QUE ISSO NÃO ESTAVA EM SEU PODER, E OS BABILÔNIOS INSISTIRAM EM QUE PELO MENOS TRATASSEM COM ELE ALGUMAS CONDIÇÕES DE PAZ. OS JUDEUS O PROMETERAM E ENVIARAM IMEDIATAMENTE A ELE ALGUNS DEPUTADOS, ACOMPANHADOS POR REPRESENTANTES DOS BABILÔNIOS. ESTES, APÓS OBSERVAR O LUGAR PARA ONDE ANILEU SE RETIRAVA, MATARAM-NO DURANTE A NOITE, BEM COMO AOS QUE ESTAVAM COM ELE. NISSO NÃO CORRERAM RISCO ALGUM, PORQUE AQUELES HOMENS ESTAVAM TODOS EMBRIAGADOS. 794. COMO A DIVERSIDADE DE COSTUMES E DE LEIS É UMA FONTE DE INIMIZADE, OS BABILÔNIOS VIVIAM EM DIVERGÊNCIAS CONTÍNUAS COM OS JUDEUS. ENQUANTO ANILEU VIVIA, PORÉM, O TEMOR DE UM CHEFE TÃO TEMÍVEL E QUE COMANDAVA TANTOS HOMENS IMPEDIA QUE ELES MANIFESTASSEM TODA A SUA CÓLERA CONTRA A NOSSA NAÇÃO. DEPOIS DA MORTE DE ANILEU, TODAVIA, ESSE TEMOR CESSOU, E OS BABILÔNIOS CAUSARAM TANTOS MALES AOS JUDEUS QUE ESTES FORAM OBRIGADOS A IR PARA SELÊUCIA, CAPITAL DO PAÍS, CONSTRUÍDA POR SELEUCO NICANOR, ONDE HAVIA TAMBÉM UMA GRANDE QUANTIDADE DE MACEDÔNIOS, GREGOS E SÍRIOS. ALI VIVERAM TRANQÜILOS DURANTE CINCO ANOS, MAS NO ANO SEGUINTE UMA HORRÍVEL PESTE ASSOLOU A BABILÔNIA, E OS SEUS HABITANTES FUGIRAM TAMBÉM PARA SELÊUCIA, O QUE FOI CAUSA DE UMA GRANDE DESGRAÇA PARA OS JUDEUS, PELO MOTIVO QUE PASSO A EXPOR. OS GREGOS E OS SÍRIOS ERAM ADVERSÁRIOS, MAS O PARTIDO DOS SÍRIOS ERA MAIS FRACO. PORÉM OS JUDEUS, QUE ERAM HOMENS VALENTES E DESPREZAVAM O PERIGO, UNIRAM-SE AOS SÍRIOS, E ASSIM OS TORNARAM MAIS FORTES. OS GREGOS, NÃO VENDO OUTRO MEIO DE QUEBRAR ESSA UNIÃO E DE ELEVAR O SEU PARTIDO SENÃO PELA RECONCILIAÇÃO COM OS SÍRIOS, NEGOCIARAM COM ELES PELA MEDIAÇÃO DE AMIGOS, E TODOS TOMARAM A RESOLUÇÃO DE SE UNIR PARA EXTERMINAR OS JUDEUS. ASSIM, ATACARAM-NOS QUANDO ELES DE NADA SUSPEITAVAM E MATARAM MAIS DE CINQÜENTA MIL, SEM QUE UM SÓ TIVESSE PODIDO ESCAPAR ÀQUELA CRUEL MORTANDADE, A NÃO SER OS QUE FORAM SALVOS POR AMIGOS. ESSE PEQUENO NÚMERO RETIROU-SE PARA CTESIFON, CIDADE GREGA PRÓXIMA DE SELÊUCIA, ONDE O REI PASSA ORDINARIAMENTE O INVERNO E ONDE ESTÁ GUARDADA A MAIOR PARTE DE SUAS RIQUEZAS. MAS OS JUDEUS NÃO ESTAVAM TÃO CONVICTOS DE QUE O RESPEITO DOS SELEUCIANOS PELO REI FOSSE SUFICIENTE PARA PROTEGÊ-LOS. A CONSPIRAÇÃO DOS BABILÔNIOS, SELEUCIANOS E SÍRIOS CONTRA OS JUDEUS QUE MORAVAM NAQUELAS PROVÍNCIAS CONTINUAVA, E OS JUDEUS FORAM OBRIGADOS A SE RETIRAR PARA NEERDA E NISIBE, ONDE ESPERAVAM ENCONTRAR SEGURANÇA, POR CAUSA DA FORÇA DE SUAS PRAÇAS E DO VALOR DE SEUS HABITANTES. Livro Décimo Nono CAPÍTULO 1 CRUELDADE E LOUCURAS DO IMPERADOR CAIO CALÍGULA. DIVERSAS CONSPIRAÇÕES FEITAS CONTRA ELE. CHEREAS, AJUDADO POR VÁRIOS OUTROS, MATA-O. OS ALEMÃES DA GUARDA DESSE PRÍNCIPE MATAM EM SEGUIDA ALGUNS SENADORES. O SENADO CONDENA A SUA MEMÓRIA. 795. O furor do imperador Caio não se estendia então somente aos judeus de Jerusalém e das regiões vizinhas, como acabamos de ver. As terras e os mares gemiam sob a sua tirânica dominação, e, dentre as muitas províncias sujeitas ao Império Romano, não havia uma sequer que deixasse de lhe sentir os funestos efeitos. Os males que ele as fazia sofrer chegaram a tal excesso que nada de semelhante se vê em história alguma. E a própria Roma não foi tratada menos desumanamente que as outras cidades. Nessa opressão generalizada, porém, parecia que ele tinha um prazer particular em endereçar a sua raiva contra o que havia de mais importante e ilustre. As famílias patrícias, os senadores e os cavaleiros — os quais não eram inferiores àqueles em dignidade e em riqueza e eram tão considerados quanto os senadores pelos outros cidadãos — sofriam as maiores perseguições. Ele não se contentava em mandá-los para o exílio, em submetê-los a mil ultrajes e em despojá-los de seus bens, mas chegava a tirar-lhes a vida. E os bens confiscados aos que ele mandava matar eram como uma recompensa que ele dava si mesmo por haver tão cruelmente derramado o sangue deles. Mas, se esse príncipe era tão bárbaro, não era menos extravagante. Não lhe bastava receber de seus súditos todas as honras que se podem prestar a um homem. Ele exigia que o reverenciassem como a um deus e, quando ia ao Capitólio, que é o mais célebre de todos Templos de Roma, tinha a insolência de chamar Júpiter de irmão. Dentre tantos outros sinais de sua loucura, nenhum houve mais patente que a esquisitice de ir a pé enxuto de Putéoli até Misena, duas cidades da Campanha separadas por um braço de mar de trinta estádios. Julgou que era indigno dele ir de uma a outra cidade apenas em galeras e que o mar não lhe devia ser menos sujeito que a terra. Assim, mandou construir uma ponte de um promontorio a outro e passou por ela num carro soberbo, com a alegria de pensar que aquele caminho completamente novo era digno da majestade de um deus, tal como ele se imaginava. Não havia Templos na Grécia que ele não tivesse despojado do que possuíam de mais valioso. Ordenou, por um edito, que lhe trouxessem tudo o que neles encontrassem de quadros raros, preciosas estátuas e outras coisas de valor consagradas aos deuses, e com eles encheu o seu palácio, os jardins e as casas de recreio que ele mantinha na Itália, porque, dizia ele, assim como Roma era a cidade mais bonita do universo, era justo que aí se reunisse tudo o que havia de mais belo no mundo. Atreveu-se mesmo a ordenar a Mêmio Regulo que lhe enviasse também a estátua de Júpiter Olímpico, que toda a Grécia venerava com honras extraordinárias e que é obra de Fídias. Mas essa ordem não foi executada, porque os escultores disseram que era impossível transportar a estátua sem quebrá-la. Pelo que se afirma, Regulo ficou tão espantado com os diversos prodígios que aconteceram que não se atreveu a removê-la. Então escreveu ao imperador, o que lhe teria sem dúvida custado a vida, se a morte de Caio não o tivesse livrado daquele perigo. A horrível loucura desse príncipe, todavia, não se detinha aí. Ao nascer-lhe uma filha, ele a levou até o Capitólio e colocou-a sobre os joelhos da estátua de Júpiter, como se aquele deus fosse parente dele, e teve a insolência de dizer que a criança tinha dois pais, mas permitia que se julgasse qual dos dois era o mais importante. Vemos todas essas coisas com horror, e no entanto eram toleradas. Ele não teve vergonha de permitir aos escravos que acusassem os seus senhores de toda espécie de crimes. Essas temíveis acusações eram apoiadas pela sua autoridade, e bem se sabia que lhe eram agradáveis. Pólux, um dos escravos de Cláudio, foi desse número. Ele teve a ousadia de depor contra o seu amo, e esse bárbaro imperador ainda fez questão de ser um dos juizes do próprio tio, na esperança de fazê-lo morrer como criminoso — o que, todavia, não conseguiu. 796. Tão odioso proceder encheu o império de caluniadores, elevou os escravos acima de seus amos e causou um número infinito de males. Por isso, fizeram-se várias tentativas contra a sua vida, uns pelo desejo de vingança, devido ao que os havia feito sofrer, outros, para evitar o perigo que os ameaçava, pois de nenhuma outra forma, senão tirando-o do mundo, seria possível restabelecer a autoridade das leis, a segurança dos cidadãos e a felicidade pública. E, nesse desejo comum a tantos povos, a nossa nação seria beneficiada mais que qualquer outra, pois não haveria como impedir a sua completa ruína se esse reinado infeliz continuasse. Isso me obriga a relatar de modo muito exato a maneira como esse miserável príncipe terminou a sua vida, para manifestar como e com quanta bondade Deus alivia os aflitos e para ensinar àqueles que estão elevados ao mais alto grau de felicidade a se moderar na sua glória e a não desonrar a própria memória com ações vergonhosas e cruéis, na ilusão de que nada será capaz de destruir a sua boa sorte. Fizeram-se três distintas conspirações para libertar o mundo do jugo insuportável desse tirano, e todas foram organizadas por homens de grande coragem. Emílio Rego, nascido em Córdoba, na Espanha, foi o chefe da primeira. Cássio Chereas, que era oficial de uma das companhias de guarda do imperador, liderou a segunda. Amnio Minuciano idealizou a terceira. E todos eles valeram-se de cúmplices. Caio era o objeto comum do ódio deles, porém motivos diferentes os levaram a atentar contra a sua vida. Rego foi a isso motivado pela sua generosidade natural, que não podia tolerar a injustiça. E, como era extremamente franco, não teve receio de comunicar o seu intento aos amigos e aos que ele julgou corajosos o bastante para aprová-lo. Minuciano foi levado a conspirar em parte pelo desejo de vingar Lépido, seu íntimo amigo e homem de grande mérito que Caio condenara à morte, e em parte pelo temor de ser tratado do mesmo modo por esse príncipe cruel, pelo qual ninguém podia ser odiado sem correr risco de vida. Chereas tomou a sua decisão tanto porque não podia mais tolerar que Caio lhe censurasse a ingenuidade quanto pelo fato de que servir o imperador significava estar exposto a um perigo constante, sabendo-se como ele costumava recompensar as suas amizades. Nessa diversidade de movimentos, porém, todos estavam de acordo no desígnio de libertar o mundo daquela soberba e cruel dominação e de merecer a glória de ter arriscado a vida para proporcionar uma felicidade tão geral e auspiciosa. Foi Chereas, entretanto, quem dentre eles se empenhou com mais ardor, quer pelo desejo de conquistar fama, quer porque o seu cargo lhe dava mais ocasião de se aproximar de Caio. Era o tempo das corridas de cavalos, que se realizam no hipódromo, e dos jogos chamados circenses, tão ao gosto dos romanos. Como o povo que lá se encontrava, em grande número, tinha o costume de pedir graças ao imperador com a certeza de as obter, toda aquela multidão rogou a Caio, com grande insistência, que os aliviasse de uma parte dos impostos. Mas ele, em vez de atendê-los, ficou tão irritado que ordenou aos guardas que matassem os que se manifestavam mais ruidosamente. Eles assim fizeram no mesmo instante, e, como a vida é mais preciosa que os bens, o povo ficou tão espantado ao ver tanto sangue que não insistiu mais. Esse horrível espetáculo animou Chereas ainda mais a executar o seu projeto de libertar os homens daquele animal feroz, que de homem tinha apenas o nome. Pensara muitas vezes em matá-lo quando estava à mesa e só não o fizera na expectativa de uma ocasião mais propícia. Havia muito tempo que ele estava no cargo, e o imperador o encarregara de receber os tributos. Mas como muitos dos contribuintes eram tão pobres que já deviam mais de um ano de impostos e a compaixão que tinha deles não lhe permitia insistir, Caio se irritava e fazia-lhe constantes censuras, chamando-o de indolente e efeminado. Quando ele vinha perguntar ao imperador qual era a senha do dia, ele, por gracejo, escolhia uma palavra que só se poderia adaptar a uma mulher de natureza reprovável, embora o próprio Caio não tivesse vergonha de se vestir de mulher em algumas cerimônias que havia instituído ou de se pintar e adornar com os enfeites delas, de modo que podia mesmo se passar por uma mulher. O ressentimento de Chereas por esse ultraje aumentava ainda por causa das zombarias de seus companheiros, que não podiam deixar de rir quando ele lhes trazia a senha, já sabendo de antemão que seria algo daquela qualidade. Assim, não podendo mais suportar semelhante opróbrio, ele atreveu-se a declarar o seu intento a alguns companheiros. A primeira pessoa a quem ele revelou as suas intenções foi um senador, de nome Pompédio, que já havia passado por todos os cargos de maior honra. Ele era da seita de Epicuro e por isso pensava apenas em viver com tranqüilidade. No entanto, um inimigo seu, de nome Timídio, acusou-o de ultrajar com palavras o imperador, alegando como testemunha uma comediante muito famosa, de nome Quintília, pela qual Pompédio estava apaixonado. Mas a acusação era falsa, e a mulher recusou-se a mentir, pois estava em jogo a vida de um pessoa que a amava, isso obrigou Timídio a pedir que ela fosse torturada. Caio, que jamais deixava de se enfurecer em tais circunstâncias, ordenou a Chereas que o fizesse imediatamente. Ele costumava encarregar Chereas de semelhantes tarefas, convencido de que, em função das censuras que lhe movia por causa de sua frouxidão, ele as executaria com mais rigor que qualquer outro. Quando levavam Quintília para ser torturada, ela encontrou um daqueles que sabiam da conspiração e pisou-lhe no pé, para animá-lo a ter coragem e o certificar de que nenhum tormento seria capaz de fazê-la confessar. Chereas, embora contra a vontade, porque era obrigado, torturou-a rudemente. A mulher sofreu com uma serenidade extraordinária, e ele depois levou-a até o imperador, num estado tão deplorável que, embora Caio tivesse um coração de bronze, não pôde deixar de ficar comovido. Assim, ele a declarou inocente — e também a Pompédio — e ainda mandou que lhe dessem dinheiro, para consolá-la pelo que havia sofrido, pois demonstrara não menos coragem nos tormentos que felicidade nos seus dias mais prósperos. Essa atitude de Caio causou sensível dor a Chereas, porque o fazia passar por cruel, obrigando-o a reduzir uma pessoa a tal estado que causara compaixão ao mais desumano dos homens. Incapaz de conter-se, ele resolveu falar a Papiniano, que desempenhava um cargo semelhante ao seu, e a Clemente, que também tinha um cargo no exército. Disse ele, dirigindo-se a Clemente: "Vós sabeis com que afeto e fidelidade velamos pela conservação do imperador e como, graças aos nossos cuidados e esforços tantas conspirações contra ele foram descobertas, as quais custaram a vida a uns e levaram outros a tormentos tão cruéis que ele mesmo chegou a ficar compadecido. Mas seriam essas tarefas dignas de nossa profissão e de nossa coragem?" Clemente nada respondeu, mas o rubor que lhe apareceu no rosto demonstrava muito bem o quanto ele se sentia envergonhado por estar desempenhando semelhante mister e que somente o medo o impedia de condenar a loucura e o furor de Caio. Chereas retomou o seu discurso com mais veemência e, depois de mencionar todos os males com que Roma e o império eram oprimidos, acrescentou: "Eu sei que a causa disso tudo é atribuída ao imperador, mas na verdade é a Papiniano, a mim e a vós, Clemente, que Roma e toda a terra deveriam responsabilizar por tudo o que sofrem, pois somos os executores das cruéis determinações de Caio. E, podendo fazer cessar os efeitos de sua raiva contra os nossos concidadãos e contra todos aqueles que lhe são sujeitos, não temos vergonha de sermos nós mesmos os seus ministros, agindo como carrascos, e não como soldados, e de usar armas não para a conservação de Roma e do império, mas para a manutenção desse tirano que não se contenta em subjugar os corpos, mas quer também tirar aos homens a liberdade de pensamento, obrigando-nos a manchar continuamente as nossas mãos com sangue deles e a fazê-los sofrer tormentos nos quais não se pode pensar sem horror. Vamos esperar que ele exerça sobre nós a mesma crueldade com que nos faz tratar os outros? Ou julgamos que dela nos poderemos esquivar, pela obediência que lhe prestamos? Em vez de nos agradecer, ele suspeita de que fazemos tais coisas obrigados e está tão acostumado aos assassínios que estes se tornaram o seu maior divertimento. Por que então imaginaríamos que, nessa multidão de inocentes vítimas de sua crueldade, seríamos os únicos capazes de escapar ao seu furor? Não nos enganemos: consideremo-nos já condenados, a menos que asseguremos a nossa vida com a morte dele e, salvando-nos, salvemos todo o império". Clemente aprovou os desígnios de Chereas, mas o aconselhou a mantê-los em segredo, pois, se alguém os descobrisse antes que fossem postos em prática, a morte deles seria certa. Era de opinião que aguardassem, até que o tempo fizesse aparecer uma oportunidade favorável. E, ainda que a velhice, que lhe começava a gelar o sangue nas veias, o fizesse abraçar conselhos mais seguros, confessava que não podia haver argumentos mais honestos nem mais generosos que aqueles que acabavam de ser expostos. Depois dessa resposta, Clemente retirou-se para a sua casa, refletindo naquilo que lhe fora dito e também no que ele próprio dissera. Chereas, porém, estava muito preocupado com a possibilidade de vazar o segredo, por isso foi naquele mesmo instante procurar Cornélio Sabino, que também era comandante de uma companhia de guardas do imperador. Sabedor de que ele era um homem muito valente e apaixonado pelo bem público, e que sofria com impaciência o estado deplorável a que estava reduzido o império, julgou conveniente contar-lhe o seu intento, para obter a sua opinião em um assunto tão importante. Ele não se enganou em seu julgamento, pois Sabino experimentava os mesmos sentimentos, porém nada manifestava por não se atrever a confessá-los a ninguém. Ele escutou as palavras de Chereas com prazer, prometendo guardar segredo e até mesmo ajudá-lo. Estavam todos de acordo em que não havia tempo a perder e foram imediatamente procurar Minuciano, cuja virtude e generosidade era deles bem conhecida. Ciente de que era suspeito a Caio, por causa da morte de Lépido, seu amigo íntimo, ele era muito sensato para não perceber que correriam grande perigo, ainda que não houvesse outro motivo senão o próprio mérito deles, mas isso já era o suficiente para se temer o maligno príncipe. Todavia, era seguro confiar em Minuciano, pois, ainda que a magnitude do perigo impedisse que qualquer um deles manifestasse abertamente o ódio sentido por Caio, todos eles já haviam, em outras circunstâncias, dado a conhecer que a tirania do imperador lhes era insuportável, e essa conformidade de sentimentos já estabelecera entre eles uma certa amizade. O respeito de Chereas e de Sabino pela nobreza e pela extraordinária virtude de Minuciano os fez decidir que, em vez lhe falar diretamente sobre o assunto, iriam esperar que ele lhes desse oportunidade para isso. A idéia deu resultado. Como todos sabiam que o imperador tinha o costume de dar como senha a Chereas uma palavra ultrajosa, Minuciano perguntou-lhe qual a palavra que lhe fora dada naquele dia. Chereas, alegre por aquela oportunidade tão favorável e sem nada temer da probidade de um homem como Minuciano, respondeu-lhe: "Dai-me, por favor, a palavra liberdade!" Ele acrescentou: "Como sou feliz e como vos sou grato, pois me fazeis notar em vosso semblante que estais me exortando a empreender uma coisa pela qual estou inflamado de ardor. Não é preciso mais para me levar a executá-la. E-me suficiente ver que a aprovais e que antes mesmo de falarmos já tínhamos o mesmo modo de pensar. Esta espada que vedes será suficiente para vós e para mim. Não há tempo a perder, e estou pronto a empreender qualquer coisa sob o vosso comando. Ordenai, somente, e sereis obedecido. Não importa que não tenhais espada, pois tendes aquela grandeza de alma de onde o ferro tira toda a sua força. Desejo entrar em ação, e não me preocupo com o que me poderá acontecer. Poderia eu pensar, sem vexame, em minha segurança pessoal quando vejo a liberdade pública oprimida, as leis violadas e todos os homens do império expostos ao furor desse tirano? Ouso mesmo crer que não sou indigno de ser o executor de um tão grande missão, pois tenho os mesmos sentimentos que vós". Minuciano, ao ouvir Chereas falar desse modo, abraçou-o, louvou a sua generosidade e exortou-o a perseverar, e ambos separaram-se, rogando aos deuses que lhes fossem favoráveis. Alguns afirmam que um outro fato animou Chereas ainda mais: quando ele entrava no palácio, ouviu uma voz que lhe dizia para não temer executar o que havia resolvido e tivesse a certeza da assistência dos deuses. Essas palavras de início o assustaram, pois julgou que o plano fora descoberto, mas depois não duvidou de que era algum dos conjurados que assim lhe falava para animá-lo ainda mais ou uma voz do céu a testemunhar que Deus não deixa de cuidar dos interesses dos homens. Nesse meio tempo, todavia, estavam todos convencidos de que da morte de Caio dependia a salvação do império, e cada qual, à porfia, conspirava para dele livrar o mundo. O número de conjurados então já era grande, pois havia também senadores e cavaleiros envolvidos. Uniu-se também a eles Calixto, um liberto de Calígula que, mais que qualquer outro, estava junto dele e que se tornara tão temível que podia ser chamado companheiro de tirania do imperador. Ele não somente era muito poderoso pelo seu prestígio, mas também pelas grandes riquezas que havia adquirido, vendendo o seu favor aos que o corrompiam com presentes. E assim, ele usava de modo muito insolente o seu poder. Ele, porém, conhecia o espírito de Caio e sabia que quando o imperador começava a suspeitar de alguém jamais o perdoava. E, mesmo que não houvesse outra razão para temer, os muitos bens que possuía eram suficientes para que esse temível senhor desejasse matá-lo. Assim, trabalhava secretamente para se colocar nas boas graças de Cláudio, que talvez sucedesse a Caio no império. Disse-lhe que o imperador lhe havia ordenado que o envenenasse, mas ele se havia servido de diversos pretextos para diferir a execução daquela ordem tão cruel. Para mim, creio que era invenção com o propósito de granjear mérito perante Cláudio, pois, se Caio tivesse dado essa ordem, não havia probabilidade de Calixto não ser castigado em seguida, por ter deixado de cumpri-la. Cláudio, no entanto, ficou convencido de que os deuses usaram Calixto para salvá-lo do furor de Caio e agradeceu-lhe muito por se recusar a executar aquele serviço. A realização dos desígnios de Chereas estava sendo adiada por causa da morosidade de alguns conjurados, embora ele afirmasse que todo tempo era próprio para levar a efeito o que pretendiam, quer enquanto Caio se dirigia ao Capitólio para oferecer sacrifícios por sua filha, quer no momento em que do alto de seu palácio lançava ao povo, na praça, moedas de ouro e de prata, quer durante a celebração de certas cerimônias que ele mesmo havia instituído. Embora estivesse sempre rodeado de pessoas prontas a defender a sua vida, o imperador de nada desconfiava e julgava-se em perfeita segurança. Desse modo, Chereas, aflito por tão longa demora e com medo de que a ocasião viesse a faltar, perguntou aos parceiros se eles julgavam que os deuses haviam tornado o tirano invulnerável. E dizia que, quanto a ele, não teria nenhuma dificuldade em matá-lo, mesmo que não tivesse uma espada. Todos louvavam o seu amor pelo bem público, mas julgavam necessário protelar um pouco, de modo que, diziam eles, se a coisa não saísse bem, a cidade não se pusesse em rebuliço, e também por causa das investigações que se fariam contra eles, tirando aos outros o meio de executar esse intento enquanto ainda tinham a coragem de tentá-lo. Eles achavam mais conveniente aproveitar a ocasião dos jogos instituídos em honra a César* — o qual, para se elevar ao soberano poder, foi o primeiro a suprimir a liberdade dos romanos, mudando a república em monarquia — porque, além da grande multidão de povo que acorria ao teatro, que então se situava em frente ao palácio, todas as pessoas pertencentes à nobreza de Roma para lá se dirigiam com as suas mulheres e filhos. O imperador lá se encontraria também, e seria difícil, em tão grande aperto, que aqueles que velavam pela sua segurança pudessem então protegê-lo do ataque dos conspiradores. Chereas aceitou a sugestão e adiou a execução para o primeiro dia dos jogos, porém o destino prevaleceu sobre essa deliberação e, com dificuldade, só o puderam fazer no terceiro dia, que era o último desses espetáculos. Antes, Chereas reuniu os conjurados e falou-lhes: "Que censuras não merecemos por esse tempo que passou sem que tentássemos executar o nosso plano! Pois temos motivos para temer que, se formos descobertos, Caio venha a redobrar o seu furor, e, em vez de darmos liberdade ao império pela sua morte, iremos apenas, com a nossa fraqueza, contribuir para lhe fortalecer a tirania. É assim que devemos trabalhar pela nossa segurança e pela de tantos povos? Será esse o meio de adquirirmos fama e glória imortais?" Ninguém ousou contradizer um discurso tão corajoso: estavam todos tão atônitos que ficaram em silêncio. Ele acrescentou: "Acaso pretendeis adiar ainda mais? Não sabeis que hoje é o terceiro dia — o último — destes jogos e que Caio está prestes a embarcar para Alexandria, a fim de conhecer o Egito? julgais então que devemos deixar escapar esse monstro, que causa horror à natureza, ou permitir que ele triunfe tanto por mar quanto por terra, sobre a fraqueza dos romanos? Ou desejais que algum egípcio mais corajoso que todos nós tenha a honra de restaurar, pela morte desse tirano, a liberdade oprimida? Quanto a mim, estou resolvido a não perder mais tempo em vãs deliberações, e o dia não passará sem que eu me desobrigue do que devo à minha pátria. O que a sorte determinar, receberei com alegria. Prefiro isso a tolerar que um outro me arrebate a glória de libertar o mundo de um homem que a todos aterroriza". _________________________ * A continuação nos dá a entender que é de Augusto que ele está falando. Chereas, assim falando, fortaleceu-se ainda mais em sua resolução e entusiasmou de tal modo os outros que todos se sentiram arder no desejo de cumpri-la, sem mais adiamentos. Aconteceu que por acaso aquele era o dia em que Chereas devia pedir a senha ao imperador, e assim ele entrou no palácio com a espada erguida, segundo o costume, que obriga o comandante da guarda a assim fazer quando em cumprimento de um dever do cargo. Uma grande multidão de povo já se encontrava no palácio, e todos procuravam obter um lugar, porque não havia reservas nem para os senadores nem para os cavaleiros: cada qual se punha onde queria, misturando-se homens com mulheres e senhores com escravos — o imperador sentia prazer em ver essa desordem. Em seguida, fez um sacrifício a Augusto, em honra do qual os jogos eram celebrados; Aconteceu que uma gota de sangue da vítima caiu sobre as vestes de Asprenas, que era um dos senadores, o que lhe serviu de péssimo augúrio, pois ele foi morto no tumulto que se levantou em seguida. Caio riu-se à vontade, e notou-se, com espanto, como uma coisa extraordinária, que o imperador, contra a sua natureza, naquele dia demonstrava grande afabilidade e bom humor. Terminado o sacrifício, Caio, acompanhado por aqueles a quem mais estimava, foi sentar-se no teatro, no lugar que lhe fora preparado. O teatro era de madeira e construído todos os anos. Tinha duas portas: uma no exterior, que dava para a grande praça, e outra em frente ao pórtico, por onde os atores entravam e saíam sem incomodar os espectadores. Fizera-se também uma passagem dividida por uma cerca de madeira, onde os atores e os músicos se colocavam. Depois que todos tomaram os seus lugares, Chereas e os demais comandantes da guarda ficaram bem próximos do imperador, que se havia posto do lado direito do teatro. Batívio, senador, que havia sido pretor, perguntou baixinho a Clívio, que já fora cônsul e que estava sentado perto dele, se não tinha ouvido falar de nada. Tendo este respondido que não, Batívio acrescentou: "Vereis hoje representar-se uma peça que acabará com a tirania". Clívio retrucou: "Cale-se, para que algum grego não nos venha a escutar". Com essas palavras, ele fazia alusão a um verso de Homero. Em seguida, foi atirada ao público grande quantidade de frutas, e pássaros muito belos e raros também foram soltos. Caio sentia prazer em ver os pássaros disputando as frutas e o modo como o povo se esforçava para apanhá-los. Aconteceram em seguida duas coisas que poderiam passar por presságios: a primeira, que no teatro se representava um juiz, o qual, tendo sido acusado de um crime, fora punido com a pena de morte; a outra, que se apresentava a tragédia de Cinira, na qual ela e Mirra, sua filha, eram mortas. Ao redor dessas três pessoas, foi espalhada uma grande quantidade de sangue, que se havia trazido para esse fim, ao se lhes representar a morte. Acrescente-se a isso que fora naquele mesmo dia que Filipe, filho de Amintas, rei da Macedônia, tinha sido outrora morto por Pausânias, um de seus amigos, quando ia para o teatro. Como aquele era o último dia da festa, Caio estava para resolver se ficaria até o fim ou se iria tomar o seu banho e cear, para regressar em seguida, como de costume. Minuciano, que estava sentado perto dele e tinha visto Chereas sair, temendo que viesse a faltar a oportunidade de se executar o plano, levantou-se para ir animá-lo. Mas Caio o agarrou pelo manto e disse-lhe, de maneira obsequiosa: "Onde vais agora, homem de bem?" Essas palavras o detiveram, e ele tornou a sentar-se. Porém, não podendo vencer aquele temor, levantou-se uma segunda vez, e Caio não tentou mais retê-lo, pois imaginou que ele tivesse alguma necessidade urgente, que o obrigava a sair. Logo em seguida, Asprenas, que estava ciente de tudo, convenceu o imperador de que era melhor ir ao banho e cear, para depois voltar ao espetáculo. Chereas, no entanto, havia colocado cúmplices nos lugares mais próprios para o seu intento e, ansioso por causa da demora, pois já era a nona hora do dia, resolveu voltar ao teatro e terminar logo o trabalho. E, ainda que soubesse que esse gesto poderia custar a vida de algum senador ou cavaleiro, considerou que a liberdade pública era preferível à conservação da vida de alguns cidadãos. Mas quando ele se dirigia para o teatro, um rumor que ouviu deu-lhe a entender que Caio havia saído para ir ao palácio. Os conspiradores, nesse momento, romperam a multidão, como se fosse por ordem do imperador, mas na realidade era para matá-lo mais facilmente, quando ninguém mais estivesse entre eles e o soberano. Cláudio, seu tio, Marcos Vinício, que desposara a sua irmã, e Valério Asiático, procônsul, os quais, pela sua condição, não podiam ser impedidos de se retirar, caminhavam diante dele. Paulo Arúncio ia atrás dele. Depois de entrar no palácio, Caio deixou o caminho comum, que Cláudio e os que iam diante dele haviam tomado, onde os oficiais da casa esperavam para ir ao banho, e seguiu por um caminho escondido, a fim de ver a exibição de uns moços que lhe haviam trazido da Ásia para cantar hinos nas cerimônias e nos sacrifícios que ele havia instituído e para dançar no teatro as danças das quais Pirro é o autor. Chereas então aproximou-se para pedir-lhe a senha, e Caio não deixou de lhe dar, segundo o costume, uma palavra para ridicularizá-lo. Chereas revidou a injúria com outra e com um golpe de espada, que no entanto não foi mortal. Alguns querem crer que ele o fez de propósito, a fim de que, antes de morrer, Caio pudesse receber ainda outros golpes e para que o castigo pelos seus crimes lhe fosse mais doloroso. Isso, todavia, me parece pouco provável, pois não se costuma raciocinar em semelhantes ações. Se Chereas tinha mesmo essa intenção, estimo que ele tenha sido o mais tolo de todos os homens, deixando-se levar desse modo pelo ódio que nutria por Caio e preferindo essa vã satisfação a livrar a si mesmo e a todos os seus cúmplices do perigo em que se encontravam. Enquanto vivesse, Caio não ficaria sem defensores, ao passo que, estando morto, os conjurados poderiam escapar à sua vingança antes que houvesse ocasião de serem descobertos. Deixo, porém, a cada qual que faça o juízo que bem quiser. O golpe que Caio recebeu atingiu-o entre o pescoço e o ombro, e teria avançado mais se não tivesse encontrado o osso. Ele sentiu grande dor, mas não gritou nem chamou ninguém em seu auxílio. Soltou apenas um suspiro, talvez porque o medo o tenha feito perder a fala, ou porque desconfiava de todos ou ainda por causa de sua natural altivez. Gemendo, ele tentava fugir, quando Cornélio Sabino o segurou e o fez cair de joelhos. Os outros conspiradores então rodearam-no gritando: "Mais um! Mais um!" E acabaram de matá-lo. Dentre os muitos golpes que recebeu, diz-se que Áqüila desferiu o que livrou o império, por sua morte, daquela intolerável tirania. No entanto, cabe a Chereas a principal glória, pois ainda que vários outros tivessem tomado parte na empresa, ele foi o primeiro a conceber a idéia, a infundi-la nos outros e a propor os meios de executá-la. E depois, vendo-os assustados com a grandeza do perigo, renovou-lhes a coragem. Por fim, logo que se apresentou a ocasião, atacou o tirano, deu-lhe o primeiro golpe e o deixou semimorto aos demais, para que lhe tirassem o que ainda restava de vida. Assim, podemos dizer com verdade que se deve atribuir à sua coragem e à sua ação toda a honra que os seus cúmplices mereceram. Depois de tão grande feito, por causa do perigo em que os punha a morte de um imperador loucamente querido pela populaça e que mantinha muitos soldados, a dificuldade era retirar-se. Como lhes pareceu impossível voltar por onde haviam entrado, porque aquelas passagens eram muito estreitas e estavam cheias de oficiais e de guardas, que o dever do ofício reunira naquele dia de festa, saíram por outro caminho para o palácio de Germânico, cujo filho haviam acabado de matar. Esse palácio estava muito perto do palácio do imperador, ou melhor, fazia parte dele, tal como outros, construídos pelos imperadores precedentes, sendo que cada qual traziam o nome de seu construtor. Assim, tendo escapado da multidão, saíram com segurança, antes que a notícia da morte de Caio se houvesse divulgado. Os primeiros a perceber que Caio havia sido assassinado foram os alemães da guarda — a chamada a legião céltica. Eram todos soldados que ele havia escolhido entre os daquela nação para estar perto de sua pessoa. Dentre os povos bárbaros, eles são os mais coléricos porque, na maioria das vezes, não compreendem o que se passa. São homens extremamente robustos e, como de ordinário enfrentam os maiores ataques dos inimigos, contribuem não pouco para fazer pender a vitória para o lado daquele por quem combatem. A morte do imperador lhes foi muito sentida. Não porque lhe consideravam os méritos, mas pelo seu próprio interesse, pois ninguém era mais bem tratado que eles. Caio, para lhes conquistar o afeto, usava para com eles de grande prodigalidade. Eram então comandados por Sabino, que não fora elevado àquele cargo por sua virtude nem pela de seus antepassados, pois ele havia sido gladiador, mas por causa de sua força extraordinária. Tendo-o à frente, os soldados correram para todos os lados, de espada na mão, a fim de matar os que haviam assassinado o imperador. O primeiro que encontraram foi Asprenas, para o qual, como já dissemos, havia ocorrido um mau presságio, aquela gota de sangue da vítima que caíra sobre a sua túnica, e o fizeram em pedaços. Em seguida encontraram Norbano, cuja origem era tão ilustre que ele contava entre os seus antepassados vários generais. E, como não era menos forte que corajoso, quando viu que aqueles bárbaros não respeitariam a sua condição, arrancou a espada da mão de um deles, decidido a não morrer sem vender muito caro a vida, pois eles o haviam rodeado de todos os lados. Por fim, vencido pelo número, caiu varado de golpes. O terceiro dos senadores a experimentar a raiva dos alemães foi Anteio, o qual pagou com a vida o desejo de ver o corpo de Caio. Como o ódio que lhe votava não podia ser maior nem mais justo, porque esse cruel príncipe, não se contentando em lhe exilar o pai, mandara-o matar no seu desterro, ele saciava os olhos com aquele espetáculo, que lhe era assaz agradável, quando vários soldados vieram em sua direção. Fugiu para se esconder, mas não pôde evitar de cair nas mãos daqueles homens furiosos, que não poupavam nem os inocentes nem os culpados. Quando se espalhou a notícia de que o imperador acabara de ser morto, havia em todos os espíritos mais espanto que crédito. Os que havia muito tempo desejavam ardentemente a sua morte tinham dificuldade em acreditar, pois desconfiavam que a informação partira do próprio Caio. Outros não queriam crer porque não desejavam que fosse verdade e nem podiam imaginar que alguém tivesse pensado e muito menos executado tão temerário empreendimento. O número desses últimos era composto de soldados, mulheres, moços e escravos. De soldados porque, além do soldo, eles tinham parte na tirania e nos roubos do detestável imperador, que lhes permitia ofender impune e insolente-mente os mais ilustres cidadãos; de mulheres e moços porque eles se divertiam com os espetáculos, os combates de gladiadores e outros divertimentos em que Caio era pródigo, sob pretexto de querer contentar o povo, mas na verdade o fazia para satisfazer à própria crueldade e loucura; de escravos porque ele lhes dava liberdade não somente para desprezar, mas também para acusar falsamente os seus senhores, sem temor de qualquer castigo, pois nada era mais fácil que obter desse príncipe o perdão pelas calúnias — e eles sabiam que, dando notícia do dinheiro que os seus senhores possuíam, obteriam a liberdade e a oitava parte do confisco, destinada aos denunciadores. 797. As pessoas da nobreza — embora algumas, ou porque desejavam a morte do imperador ou porque tinham algum conhecimento da conspiração, acreditassem que a notícia era verdadeira — não ousavam manifestar a sua alegria nem mesmo demonstrar que escutavam o que se dizia, de modo que, se fossem enganados em suas esperanças, não pagassem caro pela exposição de seus sentimentos. Os mais bem informados sobre a conspiração eram os mais reservados, porque não se queriam tornar suspeitos àqueles que desejavam que Caio ainda vivesse, os quais não os deixariam viver se a notícia fosse falsa. Correu também insistentemente o boato de que o imperador havia sido ferido, mas não estava morto. Não se sabia, portanto, em que acreditar, pois os que davam as notícias ou eram suspeitos de favorecer a tirania ou a odiavam tanto que não se podia prestar fé ao que eles diziam, pois estes eram movidos, mais que qualquer outra coisa, pelo desejo de que fosse verdade. Aquele boato sucedeu outra notícia, que perturbou ainda mais a nobreza, pois dizia que Caio, sem permitir que lhe tratassem as feridas, se dirigia ensangüentado à praça, para falar ao povo. Essas notícias suscitaram movimentos diferentes, segundo as disposições de cada espírito, e ninguém ousava sair do lugar com medo de ser caluniado, porque todos sabiam que não se julgavam as ações conforme os pensamentos que se tinham verdadeiramente, mas pela maneira como os delatores e os juizes as interpretavam. Estando as coisas nesse pé, vieram os alemães e cercaram o teatro. Todos então imaginaram-se perdidos, acreditando que seriam degolados em seguida e julgando que corriam o mesmo perigo, tanto se permanecessem onde estavam quanto se optassem pela fuga. Assim, não sabiam o que fazer. Quando os alemães venceram a massa e chegaram ao teatro, ouviram-se os rumores confusos de mil vozes de pessoas, as quais rogavam que não lhes fizessem mal, pois, não importando de que modo acontecera a morte do imperador, eles não haviam absolutamente tomado parte nela. As lágrimas e os gemidos acompanhavam as palavras do povo, e eles tomavam os deuses como testemunhas de sua inocência. Nada esqueciam diante do temor que aquele iminente perigo lhes inspirava. Por maior que fosse o furor dos alemães, eles não conseguiram permanecer insensíveis a tantos gritos e lágrimas. Comoveram-se também ao ver a cabeça de Asprenas e as dos outros que eles haviam matado colocadas sobre um altar — por eles mesmos, porque as haviam trazido de onde se encontravam. O horrível espetáculo da infelicidade de tantas pessoas de classe não somente causava compaixão às pessoas da nobreza e ao povo como os fazia tremer, porque não tinham a certeza de que sairiam ilesos de tão grande perigo, enquanto a alegria daqueles que tinham motivo para odiar Caio era perturbada pelo temor de não saberem se continuariam vivos. Nesse mesmo tempo, um pregoeiro público, de nome Arúncio, que tinha uma voz muito forte e era muito rico e querido pelo povo, apareceu no teatro em vestes de luto e com todas as demonstrações de grande dor. Embora ele odiasse Caio, dissimulava a alegria que estava sentindo. E, juigando que importava dar a conhecer a todos que o príncipe realmente havia morrido, fez o anúncio em alta voz, a fim de que ninguém mais pudesse duvidar. Dessa maneira, ele conseguiu deter os alemães, e os oficiais ordenaram-lhes que recolocassem a espada na bainha. Essa declaração pública da morte do imperador foi a salvação de um grande número de pessoas. Até ali havia o risco de morrerem, pois a fúria dos alemães e a sua dedicação a Caio eram tão grandes que enquanto lhes restasse alguma esperança de lhe salvar a vida não haveria violência ou crueldade que não estivessem dispostos a praticar para vingar a conspiração. Mas a certeza de sua morte desarmou-lhes a cólera, porque não podiam mais lhe dar provas de seu afeto nem receber dele os costumeiros favores. Além disso, tinham agora motivo para temer um castigo da parte do senado, caso este viesse a governar. Nesse ínterim, Chereas, temendo que Minuciano sofresse alguma violência dos alemães, rogou com tanta insistência aos soldados que tivessem cuidado pela conservação de sua vida que eles o trouxeram até ele, vindo também Clemente. Então essa grande personagem e também outros senadores disseram a Chereas que a ação que ele acabava de praticar não podia ser mais justa; que não se podia louvar o suficiente o fato de ele haver organizado com tanta coragem aquele grande empreendimento e tê-lo tão valorosamente executado; que a tirania tem de próprio crescer em pouco tempo pelo prazer que sente em poder impunemente fazer mal a todos; que o ódio dos homens de bem que se insurgem contra ela, todavia, faz com que os tiranos percam repentina e miseravelmente a vida; que bem se via um exemplo disso na pessoa de Caio, pois não tinha receio de violar as leis nem de ofender os amigos, tornando-os inimigos; e que, assim, ainda que ele tivesse recebido a morte de suas mãos, na verdade ele próprio provocara o seu fim. Os guardas se retiraram do teatro, e os que se haviam reunido em grande número para assistir aos jogos, após tão grande tribulação, começaram a se levantar, a fim de se colocarem em segurança. Tiveram essa oportunidade quando um médico, de nome Arciom, ao qual haviam obrigado a curar alguns dos feridos, fez sair os seus amigos, sob o pretexto de que iriam buscar medicamentos, mas na realidade os estava afastando do perigo. 798. O senado reuniu-se em seguida no palácio. O povo acorreu em massa e com tumulto para a grande praça do mercado. Um e outro pediam castigo para os que haviam matado o imperador — o povo com ardor, e o senado, apenas na aparência. Uma tão grande comoção obrigou o senado a mandar buscar Valério Asiático, que fora cônsul. O povo lhe dizia, com impaciência, que não compreendiam como ainda não estavam presos os conspiradores. E, perguntando-lhe quem havia sido o autor do assassinato, ele respondeu: “Desejaria ter sido eu”. O senado publicou em seguida um decreto, pelo qual condenava a memória de Caio e ordenava a todos que se retirassem: os cidadãos romanos para as suas casas e os soldados para os seus quartéis. Prometiam aos primeiros uma grande diminuição de impostos, e aos últimos, recompensas, se eles permanecessem em seu dever. Isso porque havia o temor de que eles, caso se sentissem desgostosos, praticassem em Roma toda espécie de violência e, não se contentando em saquear as casas particulares, fossem levados a cometer sacrilégios, não poupando nem mesmo os Templos. Os senadores assistiram todos a essas deliberações, e os que haviam feito parte da conspiração não somente foram os primeiros a chegar como também tinham esperanças de que o senado retomasse a sua antiga autoridade. CAPÍTULO 2 OS SOLDADOS DELIBERAM ELEVAR CLÁUDIO, TIO DE CAIO, AO TRONO DO IMPÉRIO. DISCURSO DE SATURNINO NO SENADO EM FAVOR DA LIBERDADE. CHEREAS MANDA MATAR A IMPERATRIZ CESÔNIA, MULHER DE CAIO, E SUA FILHA. BOAS E MÁS QUALIDADES DE CAIO. OS SOLDADOS RESOLVEM CONSTITUIR CLÁUDIO IMPERADOR E LEVAM-NO AO CAMPO. O SENADO ENVIA DEPUTADOS PARA ROGAR-LHE QUE DESISTA DESSA INTENÇÃO. 799. Enquanto o senado deliberava, os soldados, por seu lado, também trocavam idéias. Consideradas todas as coisas, pareceu-lhes que, se o governo popular fosse restabelecido, seria incapaz de sustentar o peso da direção de tantos reinos e províncias. E, mesmo que fosse possível, eles não teriam nenhuma vantagem. Além disso, se acontecesse de algum dos principais do senado ser eleito imperador sem que eles tivessem contribuído para elevá-lo a esse supremo grau de honra, seriam considerados inimigos. Assim, julgando que nenhum outro era tão merecedor, escolheram Cláudio, tanto pela nobreza da origem, pois era tio de Caio, quanto pela maneira nobre como fora educado. E, convictos de que ele lhes demonstraria a sua gratidão com benefícios proporcionais à obrigação de que lhes seria devedor, resolveram ir buscá-lo em sua casa. Gneu Sentio Saturnino disso teve ciência no senado e, julgando que não havia tempo a perder, para demonstrar virtude e coragem, ergueu-se como se fora impelido por alguém — mas na verdade era por iniciativa própria — e falou com uma ousadia digna dos grandes homens que fizeram brilhar por toda a terra a glória da generosidade romana. Ele disse: "Estamos vendo, por fim, senhores, após uma servidão de tantos anos, despontar hoje, contra toda a esperança, a nossa liberdade. É verdade que não sabemos o quanto há de durar, porque depende da vontade de Deus a sua conservação, depois de Ele no-la conceder. Mas, ainda que tão grande ventura logo desapareça, não devemos deixar de estimá-la, pois não há homem de coragem que não sinta alegria em viver livre, num país livre, e desfrutar pelo menos durante algumas horas a doçura que nossos antepassados gozavam nos séculos em que a república florescia em todo o seu esplendor. Como nasci após essa liberdade haver sido suprimida, não vi esse tempo feliz, quando se estudavam as letras e se era treinado nos exercícios que podem formar o espírito e erguer o ânimo. Assim, tudo o que posso fazer é manifestar o meu amor por aquela que hoje se nos apresenta. Eis por que julgo que, abaixo dos deuses imortais, não há honra que não devamos tributar àqueles cuja generosidade e virtude nos fizeram rever a luz tão doce da liberdade. Pois, mesmo que a desfrutássemos durante um só dia, não seria isso para cada um de nós um grande bem? Para os velhos, porque morreriam sem tristeza, após uma mudança tão inesperada. Para os jovens, porque é para eles um exemplo que não poderiam deixar de imitar sem degenerar da virtude de seus antepassados, pois somente por meio de ações virtuosas podemos conquistar a liberdade. Das coisas passadas, posso falar apenas por referências de outros, mas as que vi não me permitem ignorar os males causados pela tirania. Sei que ela faz guerra aberta à virtude e não tolera os que possuem coragem e mérito, infunde o medo nos espíritos e leva-os à covarde bajulação, pois é quando não se administra mais pelas leis, e sim pelo humor do príncipe. Depois que Júlio César, calcando aos pés a ordem tão religiosamente observada por nossos pais, estabeleceu a sua injusta monarquia sobre as ruínas da República, não há calamidade que não tenha afligido a cidade de Roma. Os que a ele sucederam no soberano poder demonstraram também não ter outro propósito senão subverter a antiga disciplina. E, como só acreditavam que encontrariam segurança entre homens dispostos a cometer toda espécie de crimes para lhes obedecer, não há meios bárbaros de que não se tenham servido para oprimir as pessoas mais ilustres e mesmo para lhes tirar a vida. Entre esses intoleráveis senhores que nos fizeram gemer sob tão tirânica dominação, Caio podia vangloriar-se de superar a todos, pois não exercitava o seu furor apenas sobre os nossos cidadãos, mas também sobre os parentes e amigos, e não era menos ímpio para com os deuses. Pois é próprio dos tiranos não se contentarem em ser avaros, voluptuosos e soberbos. O seu maior prazer é exterminar os inimigos, e eles consideram como tais todos os que têm alma nobre. Nenhuma ponderação é capaz de os acalmar, pois, sabendo o quanto são odiosos aos que lhes estão sujeitos, acham que não se conservarão em segurança senão oprimin-do-os de tal modo que eles não possam livrar-se de tantas misérias. Agora, então, que disso nos livramos, com a vantagem de só dependermos de nós mesmos, a nossa união presente pode gerar segurança para o futuro. Quem nos impede de reerguer a glória de Roma e dar à República o seu antigo brilho e o primeiro esplendor? Podemos falar com liberdade contra as desordens e propor sem perigo tudo o que julgamos mais vantajoso para o bem público, pois sacudimos o jugo desses senhores prepotentes. Lembremo-nos de que nada favoreceu tanto a tirania em seu início quanto a covardia daqueles que a ela não se ousaram opor e que foram essa fraqueza e a mesquinhez de se preferir, como escravos, uma vida vergonhosa a uma morte honrosa que lançaram Roma neste abismo de infinitos males. Mas antes de todas as coisas, senhores, prestemos a honra devida aos que nos libertaram da escravidão, particularmente a Chereas, cujo proceder e cujo braço, com o auxílio dos deuses, nos deram a liberdade. Que recompensa não merece receber daqueles pelos quais não receou se expor a tal perigo? Ele tem mesmo vantagem sobre Bruto e Cássio, cuja virtude imitou, pois, enquanto a ação daqueles foi seguida de uma guerra que perturbou todo o império e o mundo inteiro, este, pela morte de um só homem, libertou-nos de todos os males". O discurso de Saturnino foi ouvido com grande prazer por todos os senadores e cavaleiros presentes, e o ardor com que falou o fez esquecer de que trazia no dedo um anel, onde havia uma pedra na qual estava gravada a imagem de Caio. Trebélio Máximo arrancou-o então, e no mesmo instante a pedra foi feita em pedaços. 800. A noite já ia adiantada, e Chereas pediu a senha aos cônsules. E eles a deram: "Liberdade". E não se cansavam de se rejubilar por haverem tornado a entrar no gozo daquele sinal de sua antiga autoridade. Chereas em seguida deu a senha aos oficiais de quatro coortes, os quais, preferindo a dominação legítima à tirania, haviam abraçado o partido do senado. 801. Pouco depois, o povo, por efeito da inconstância que lhe é peculiar, externou muita alegria pela esperança de reconquistar, com a liberdade, o poder que outrora havia desfrutado, e Chereas tornou-se deles muito estimado. 802. Como chefe do empreendimento que acabava de mudar a face do império, Chereas, julgando que haveria sempre motivo de temor enquanto existisse alguém da família de Caio, ordenou a Júlio Lupo, um dos oficiais da guarda, que fosse matar a imperatriz Cesônia e sua filha. Ele foi escolhido porque tinha parentesco com Clemente e também porque havia participado da conspiração. Alguns acharam crueldade assassinar uma mulher como se ela fosse culpada do sangue dos ilustres romanos que Caio — e ele somente, em seu furor — mandara derramar. Outros diziam, ao contrário, que ela era a causa principal dos males do império, pois fizera Caio tomar uma bebida, a fim de prendê-lo pelo amor, e a poção lhe perturbara o juízo. Por isso deviam considerá-la culpada de haver ministrado um veneno mortal a muitas pessoas de eminente virtude. Esse último sentimento prevaleceu, e Lupo partiu para matá-la. Encontrou Cesônia estendida por terra, junto ao corpo do marido — o qual estava privado de tudo, até mesmo do que não se recusa aos mortos — e manchada com o sangue que corria de suas feridas. A filha estava ao lado dela e a ouvia queixar-se amargamente de que Caio não quisera atender aos seus muitos avisos. Essas palavras foram e são ainda hoje diversamente interpretadas. Uns acreditam que ela queria dizer que havia aconselhado o imperador seu marido a mudar de proceder, adotando um estilo mais moderado, a fim de reconquistar o afeto dos romanos e para não levá-los, pelo desespero, a atentar contra a sua vida. Outros, ao contrário, julgam que essas palavras significavam que, tendo ouvido alguma notícia da conspiração, ela havia insistido com ele para que matasse imediatamente todos os conspiradores. A princesa, oprimida pela dor, julgava que Lupo viera ver o corpo do marido. Disse-lhe então, com lágrimas, suspirando, que se aproximasse um pouco mais. Mas quando percebeu que ele não respondia, não teve dificuldade para compreender o motivo que o trouxera ali. Deplorando a própria condição, apresentou-lhe o pescoço e insistiu que se consumasse logo o último ato daquela sanguinolenta tragédia. Esperou em seguida o golpe de morte com fortaleza admirável. Sua filha, que era ainda apenas uma criança, foi morta depois dela. 803. Foi esse o fim de Caio, após reinar durante três anos e oito meses. Ele já havia demonstrado, mesmo antes de ser imperador, o quanto era brutal, malvado, voluptuoso, protetor dos caluniadores, covarde e, por conseguinte, cruel. Considerava a maior vantagem da autoridade soberana poder abusar dela contra os inocentes e enriquecer-se com os despojos deles depois de os fazer injustamente perder a vida. Não podia tolerar que o considerassem apenas um homem, mas desejava loucamente ser reverenciado como um deus e vangloriava-se das tolas bajulações do povo. O freio que as leis e a virtude impõem às paixões desregradas era-lhe insuportável. Não havia amizade, por maior ou mais antiga que fosse, que lhe pudesse impedir de manchar as mãos no sangue, quando encolerizado. Todos os homens de bem passavam em seu espírito por inimigos. Por mais injustas que fossem as suas ordens, queria que fossem executadas imediatamente, sem a menor oposição. E, dentre os tantos vícios que o tornaram odioso, aquela abominável impudicícia, inaudita até então, que o levou a cometer incesto com a própria irmã, tornou-o detestável a todos. Durante o seu reinado, nada empreendeu de importante ou magnífico ou de que o império pudesse haurir alguma vantagem, exceto alguns portos e cais perto de Régio e na Sicília, para receber os navios que traziam trigo do Egito para a Itália, e que eram sem dúvida muito úteis ao povo. Ainda assim, eles não foram terminados, tanto pelo desleixo daqueles aos quais ele dera tal incumbência quanto porque ele preferia empregar o dinheiro em despesas vãs, entregando-se mais ao prazer que à realização de obras dignas de um grande imperador, que iria preferir o bem de seus súditos à sua satisfação particular. Quanto ao resto, era muito eloqüente, muito instruído nas letras gregas e romanas e compreendia facilmente todas as coisas. Respondia imediatamente aos questionamentos que lhe eram feitos, e, mesmo nos assuntos mais importantes, ninguém mais que ele era capaz de incutir o que empreendia sustentar, porque possuía uma grande inteligência e se havia preparado para não ser inferior a Germânico, seu pai, nem a Tibério, o qual a esse respeito excedia a todos os outros e tomara grande cuidado em instruí-lo. Mas essa boa educação não o impediu de perder-se quando subiu ao trono, pois é difícil para aquele que detém um poder absoluto conter a própria maldade. No começo de seu reinado, ele tinha como amigos pessoas de grande mérito, que o estavam levando a ações que lhe poderiam granjear boa reputação e glória. Mas ele os afastou pouco a pouco e, quando se abandonou a uma licenciosidade desenfreada, sentiu de tal modo aversão por eles que não teve vergonha de empregar os meios mais infames para causar-lhes a morte e satisfazer assim a sua ingratidão e crueldade. 804. Devemos agora falar de Cláudio, que, como dissemos, ia adiante de Caio quando este saía do teatro. Sabendo da morte do imperador e vendo aquela grande perturbação, ele foi esconder-se num canto muito escuro do palácio. No entanto, nenhum outro motivo senão a grandeza de sua origem lhe provocava temor, pois ele vivera até ali como um cidadão comum e procedera sempre com muita modéstia. Longe do barulho e do tumulto, ocupava-se com o estudo, principalmente dos autores gregos, sem se imiscuir de maneira alguma na política. A confusão, todavia, aumentava cada vez mais. O palácio estava cheio de soldados, que corriam para todos os lados com furor, sem saber o que queriam, e o povo também para lá acorria em massa. Então os guardas pretorianos, que estavam na primeira linha entre os soldados, se reuniram para deliberar sobre o que deviam fazer. A morte do imperador não lhes causava pesar, até achavam que ele bem a havia merecido, mas pensavam em tomar resoluções que lhes fossem vantajosas. Quanto aos alemães, não era a consideração do bem público que os incitava contra os que haviam assassinado Caio, e sim a própria paixão. O temor de Cláudio aumentou quando ele viu as cabeças de Asprenas e dos outros que os bárbaros haviam sacrificado à sua vingança. Manteve-se em seu esconderijo, onde só se podia chegar subindo alguns degraus. Um dos guardas do imperador, de nome Grato, avistou-o, mas, por causa da escuridão, não pôde reconhecê-lo, por isso aproximou-se e ordenou-lhe que saísse dali. Cláudio não quis obedecer. O guardou tirou-o à força e então o reconheceu, gritando aos companheiros: "Eis aqui Germânico.* Façamo-lo imperador". Ante essas palavras, o guarda o agarrou, para levá-lo, e Cláudio pensou que iria ser morto, em razão do ódio à memória de Caio. Assim, rogou-lhe que considerasse a sua inocência e lembrasse que ele não tivera absolutamente parte no que havia acontecido. Grato, nesse momento, tomou-o pela mão e, sorrindo, disse-lhe: "Não tenhais receio pela vossa vida, mas pensai apenas em demonstrar uma coragem digna do império, pois os deuses, cansados dos males que Caio causou a toda a terra, oferecem-no hoje à vossa virtude. Portanto, subi gloriosamente ao trono de vossos antepassados". Enquanto Grato falava, um grande número de soldados da guarda pretoriana reuniu-se em torno dele. O combate violento que se travara em seu coração entre o temor e a alegria não lhe permitia sequer caminhar, e então eles o carregaram nos ombros. Muitos, vendo-o naquele estado, julgaram que iam matá-lo. E, como sabiam que ele jamais havia tomado parte em coisa alguma e até mesmo algumas vezes correra perigo de vida sob o reinado de Caio, ficaram consternados pela sua desdita e protestaram, dizendo que competia aos cônsules julgá-lo. À medida que os soldados caminhavam, outros reuniam-se a eles, que continuavam a levar Cláudio, porque os que carregavam a liteira, julgando-o perdido ao vê-lo ser agarrado, haviam fugido. O povo abria caminho àquela multidão de soldados que enchia o palácio, o qual dizem estar na parte mais antiga de Roma. Um número maior de soldados uniu-se ainda a eles, e a alegria deles por ver Cláudio foi tão grande que disseram estar dispostos a tudo para elevá-lo ao trono do império, quer pelo amor e respeito que conservavam à memória de Germânico, seu pai, quer porque não ignoravam os males que a ambição desmedida dos maiorais do senado havia causado quando este ainda possuía autoridade. Crendo que era impossível restaurar aquela forma de governo, tinham de eleger um imperador, e importava escolher alguém que lhes ficaria devendo obrigação. Cláudio, portanto, ser-lhes-ia devedor daquele alto cargo, com todas as suas honras, e, como recompensa, não haveria favor que ele não lhes devesse conceder ou que não pudessem esperar dele. Depois que assim deliberaram, comunicaram a sua opinião aos que se haviam juntado a eles, e todos puseram-se de acordo num único desígnio: colocaram Cláudio no meio deles e o levaram ao acampamento para concluir aquele assunto importantíssimo sem que ninguém os pudesse impedir. __________________________ * Josefo chama Cláudio de Germânico, porque o imperador era filho de Germânico. 805. Enquanto isso se passava, o senado e o povo experimentavam sentimentos opostos. Aquele, vendo-se livre da servidão dos tiranos, queria retomar a antiga autoridade. Este, invejando-lhe essa honra, considerava o poder imperial um freio aos excessos dos políticos mais arrojados e uma proteção contra as suas violências. Por isso, regozijava-se com a resolução tomada pelos soldados em favor de Cláudio e esperava, por seu intermédio, evitar a guerra civil e os outros males que Roma sofrerá nos tempos de Pompeu. 806. O senado, logo que soube do que acontecia no acampamento, mandou dizer a Cláudio que não aceitasse ser eleito imperador pela violência; que deixasse o senado cuidar do governo e escolhesse alguém dentre eles, o qual, com a consistência dos outros senadores, agiria conforme as leis, no que se referia ao bem público; que ele recordasse os males que haviam afligido a cidade de Roma durante a dominação do tiranos e os perigos que ele mesmo correra sob o reinado de Caio; que seria estranho ele, após condenar a tirania nos outros, querer, por ambição, recolocar a sua pátria sob o jugo insuportável do qual acabava de ser libertada; que ele, ao contrário, se concordasse em acatar os sentimentos do senado e em viver como antes, demonstrando a costumeira virtude, receberia as maiores honras, porque elas lhe seriam prestadas voluntariamente e por pessoas livres; que, sujeitando-se às leis, obteria os louvores que bem merecem os homens de virtude; e que, caso ele não considerasse o que acontecera a Caio e perseverasse em seu intento, o senado estava resolvido a fazer-lhe oposição, pois, além do grande número de soldados que este possuía, poderia ainda armar uma grande quantidade de escravos, embora a sua confiança principal repousasse no socorro dos deuses, que sempre auxiliam os que combatem pela justiça — e nada era mais justo que defender a liberdade de seu país. Verânio e Brocco, os tribunos enviados como embaixadores, depois de falar a Cláudio, puseram-se de joelhos diante dele e suplicaram-lhe que não lançasse Roma numa guerra civil. E, vendo-o rodeado por uma multidão de soldados incomparavelmente mais numerosa que os partidários dos cônsules, rogaram-lhe, uma vez que estava resolvido a subir ao trono, que ao menos consentisse em recebê-lo das mãos do senado, pois era mais razoável e ser-Ihe-ia mais vantajoso ser elevado ao soberano poder por um consentimento geral que pela violência. CAPÍTULO 3 O REI AGRIPA FORTALECE CLÁUDIO NA RESOLUÇÃO DE ACEITAR O GOVERNO. OS SOLDADOS QUE TINHAM ABRAÇADO O PARTIDO DO SENADO, ABANDONAM-NO E SE UNEM AOS QUE PRESTARAM JURAMENTO A CLÁUDIO, NÃO OBSTANTE OS ESFORÇOS DE CHEREAS PARA IMPEDI-LOS. CLÁUDIO TORNA-SE IMPERADOR E CONDENA CHEREAS À MORTE. ELE A SOFRE COM MARAVILHOSA FIRMEZA. SABINO, UM DOS PRINCIPAIS CONJURADOS, SUICIDA-SE. 807. Cláudio, ciente de que o senado estava convencido de poder reconquistar a sua primitiva autoridade, respondeu com muita modéstia, para não chocar os sentimentos deles. Porém não demorou muito a superar os seus temores, em parte pela proteção que lhe prometiam os soldados e em parte pelo fato de Agripa já o haver exortado a não ser inimigo de si mesmo, recusando o oferecimento de um poder que lhe permitiria governar a maior parte da terra. Por fim, decidiu-se a tudo fazer, no que dependia dele, para secundar a sua boa estrela. Esse rei dos judeus, que devia a Caio a sua coroa, havia colocado o corpo do imperador sobre um leito, com toda a cortesia que o tempo lhe permitiu, dizendo aos guardas que ele não estava morto, que as feridas o faziam sofrer muitas dores e que ele tinha necessidade urgente de médicos. E, quando soube que os soldados haviam levado Cláudio, rompeu a multidão para ir ter com ele, encontran-do-o em tal aflição de espírito que parecia prestes a ceder a autoridade ao senado. Então Agripa restituiu-lhe a coragem e o animou a não perder aquela ocasião de subir ao trono do império. Mal havia ele inspirado em Cláudio tais sentimentos e voltado para casa, vieram dizer-lhe que o senado o estava convidando a tomar assento na companhia deles. Agripa perfumou a cabeça, para fazer pensar que saíra da mesa, e, fingindo nada saber do que se passava, perguntou, ao chegar, o que havia acontecido com Cláudio. Contaram-lhe então tudo o que havia sucedido e rogaram que ele manifestasse a sua opinião sobre o presente estado das coisas. Ele declarou que estava pronto a dar a vida para manter a dignidade do senado, mas julgava que eles deviam antes considerar o que lhes seria mais útil e agradável. Pois, se estavam resolvidos a retomar a soberana autoridade, precisariam de armas e de soldados, para não sucumbir em tão ingente empreendimento. Eles responderam que o senado possuía homens e armas, bem como dinheiro para fazer a guerra, e que poderiam ainda armar uma grande quantidade de escravos, aos quais dariam a liberdade. Agripa replicou: "É meu desejo, senhores, que o vosso intento se realize, tal como o desejais. Mas o cuidado que tenho pela vossa preservação me obriga a dizer-vos que vejo uma extrema diferença entre o grande número de soldados experientes que abraçaram o partido de Cláudio e os escravos de que falais, porque estes são homens desacostumados à disciplina e que mal sabem manejar uma espada. Por isso, sou de opinião que entreis em contato com Cláudio a fim de dissuadi-lo de sua pretensão ao império. E ofereço-me para ir com os vossos delegados". A proposta foi aprovada, e o príncipe partiu, acompanhado por alguns senadores. E, depois de uma conversa em particular com Cláudio a respeito da agitação que reinava no senado, aconselhou-o a falar como um príncipe que já se julga no trono. Cláudio respondeu aos delegados que não se admirava de ver que o senado estava ressentido da monarquia, depois de haverem sido tão maltratados sob a tirania dos imperadores precedentes, mas que sob o seu governo eles experimentariam uma dominação moderada que de império teria apenas o nome, e todas as coisas se orientariam conforme o parecer deles e a aprovação de todos. A esse respeito não podiam duvidar de sua palavra, pois eles mesmos eram testemunhas da maneira como ele vivera até ali, sem jamais incorrer num ato que lhes desse motivo para censura. Após despedir os emissários, discursou perante os soldados que se haviam unido a ele e obteve deles juramento de fidelidade. Depois distribuiu a cada um cinco mil dracmas e gratificou os oficiais na proporção do número de homens que comandavam, prometendo tratar favoravelmente todas as outras tropas, onde quer que estivessem. 808. No dia seguinte, pela manhã, antes do despontar do dia, os cônsules reuniram o senado no Templo de Júpiter, no Capitólio. Alguns senadores, porém, não se atreveram a sair de casa, e outros partiram para as suas casas de campo, porque, vendo o rumo que as coisas estavam tomando, preferiam uma servidão tranqüila a uma empresa tão perigosa como a de reconquistar a liberdade. Apenas uns cem deles compareceram à reunião. Enquanto deliberavam, ouviu-se à porta um grande rumor de soldados, os quais pediam que o senado escolhesse um imperador, aquele que dentre eles fosse o mais digno, a fim de impedir o prejuízo que o império sofreria, caso fosse repartido entre vários governantes. Esse pedido, tão contrário à esperança que o senado tivera de reconquistar a liberdade e o antigo poder, perturbou-os ainda mais, pois já estavam pressionados pelo temor de que Cláudio assumisse o trono. Havia no entanto alguns que, pela nobreza de seu nascimento ou por alianças matrimoniais com os césares, se achavam no direito de ansiar o supremo poder. Marcos Minúcio, um dos mais ilustres romanos, que desposara júlia, irmã de Caio, ofereceu-se para governar o império. Os cônsules, em vez de lhe responder, passaram a outros assuntos. Valério Asiático tinha o mesmo desejo que Minúcio, mas Minuciano. aue fizera parte da conspiração contra Caio, impediu que ele se declarasse. Isso porque se alguém chegasse a disputar abertamente o império a Cláudio haveria uma das mais terríveis carnificinas de que jamais se ouviu falar, pois, além de um grande número de gladiadores e das companhias de sentinela mantidas para fazer a ronda na cidade durante a noite, um grande número de remadores unir-se-ia também a eles. Essa extrema desordem, tão fácil de se prever, afastou vários senadores da pretensão ao império, fosse pelo temor do perigo em que Roma se encontrava, fosse pelo risco que eles mesmos correriam. 809. O dia apenas começava a raiar quando Chereas apareceu com os seus amigos e sinalizou aos soldados que lhes desejava falar. Em vez de atendê-lo, no entanto, eles puseram-se a gritar, exigindo que eles sem demora lhes dessem um imperador. Desse modo, o senado compreendeu o desprezo que aqueles soldados tinham pela autoridade deles, e isso anulava toda a possibilidade de se restaurar a antiga forma de governo. A falta de respeito dos soldados por aquela assembléia tão augusta também despertou a ira de Chereas e dos que o haviam ajudado na conspiração contra Caio. Não tolerando mais que continuassem a insistir num imperador, disse-lhes, encolerizado, que lhes daria um, contanto que lhe trouxessem uma ordem de Êutico. Êutico era um cocheiro a quem Caio muito havia estimado e de que se servia para os mais baixos serviços e o mais vis misteres. Acrescentou a isso diversas censuras, ameaçando mesmo trazer-lhes a cabeça de Cláudio e declarando que era coisa vergonhosa eles desejarem entregar o império a um tolo, após ele ter sido arrancado das mãos de um louco. Os soldados, porém, arrancaram das espadas sem se dignar escutá-lo e foram, com as suas bandeiras, procurar Cláudio a fim de se unirem aos demais que já lhe haviam prestado juramento. 810. O senado, vendo-se abandonado por aqueles que o deviam defender e sabendo que os cônsules não tinham qualquer autoridade, ficou bastante indeciso. O fato de haverem irritado Cláudio aumentou-lhe tanto o temor que o arrependimento por tal excesso os levou a mútuas censuras. No meio dessa balbúr-dia, Sabino, um dos que haviam matado Caio, adiantou-se e afirmou que os mataria todos, para não terem de suportar que Cláudio subisse ao trono e se iniciasse uma nova escravidão. Disse a Chereas, com grande ardor, que era estranho que ele, tendo sido o primeiro a atacar o tirano, agora se permitisse continuar a viver sem que a sua pátria houvesse reconquistado a liberdade. Chereas retrucou que não tinha amor à vida, mas queria antes saber quais eram os sentimentos de Cláudio. 811. Enquanto isso, os soldados se dirigiam de todas as partes ao acampamento para se unir a Cláudio. Quinto Pompeu, um dos cônsules, foi também com eles. Mas como era odioso aos soldados, porque havia exortado o senado a manter a liberdade, vieram a ele de espada na mão e o teriam matado se Cláudio não os impedisse. Após livrá-lo daquele perigo, convidou-o a sentar-se junto dele. Não houve a mesma consideração para com os senadores que o acompanhavam, pois eles foram proibidos de se aproximar de Cláudio para saudá-lo. Alguns chegaram a ser feridos, entre eles Apônio, e não houve um só que não tivesse corrido grave perigo de vida. O rei Agripa, entretanto, aconselhou Cláudio a tratar com gentileza aquelas pessoas, que eram as principais do império, porque do contrário não haveria mais ninguém da nobreza com quem ele pudesse governar. Ele aprovou essa advertência e pediu imediatamente ao senado que se reunisse em seu palácio, para onde ele se fez levar em liteira através da cidade, acompanhado pelos soldados, que afastavam o povo. 812. Por esse mesmo tempo, Chereas e Sabino, que haviam sido os mais influentes na conspiração, não tiveram receio de se apresentar em público, contra a ordem de Poliom, a quem Cláudio pouco antes nomeara capitão da guarda pretoriana. Mas Cláudio, logo que chegou ao palácio, reuniu os seus amigos e condenou Chereas à morte. Eles não podiam, no entanto, deixar de reconhecer que a ação que ele havia praticado fora gloriosa, porém o acusaram de traição e acharam que a sua morte traria segurança ao imperador. Levaram-no então ao suplício, com Lupo e vários outros conjurados. Conta-se que ele demonstrou maravilhosa firmeza e que, além de não alterar o rosto, censurou a fraqueza de Lupo, ao vê-lo chorar porque lhe haviam tirado a túnica: disse-lhe que um lobo* jamais sentia frio. No meio da grande multidão que o rodeava, ele perguntou ao soldado que o iria executar se ele estava bem treinado naquele ofício e se a sua espada estava bem afiada. Pediu depois que lhe trouxessem a espada com a qual havia matado Caio. Um único golpe decepou-lhe a cabeça. Lupo, no entanto, recebeu vários golpes, porque o medo fazia com que a balançasse. Alguns dias depois, celebrou-se a festa na qual os romanos fazem ofertas pelos parentes mortos, e o povo as lançou ao fogo em honra a Chereas, pedindo que ele lhes perdoasse a ingratidão. Dessa forma, chegou ao fim aquele que deixou célebre a sua memória por um empreendimento tão generosamente concebido, mantido com tanta perseverança e tão corajosamente executado. _________________________ * Lupo significa lobo, em latim. (N. do R.) 813. Quanto a Sabino, Cláudio não se contentou em perdoá-lo, mas o conservou no cargo, dizendo que não podia faltar à palavra dada aos que o haviam envolvido na conjuração. Mas esse generoso romano, incapaz de resignar-se a sobreviver à supressão da liberdade pública, matou-se com um golpe de espada, libertando-se de uma vida que a sua coragem tornaria insuportável. CAPÍTULO 4 O IMPERADOR CLÁUDIO CONFIRMA O REINO A AGRIPA E ACRESCENTA-LHE A JUDÉIA E SAMARIA. ENTREGA O REINO DA CÁLCIDA A HERODES, IRMÃO DE AGRIPA, E PROMULGA EDITOS FAVORÁVEIS AOS JUDEUS. 814. Os primeiros atos de Cláudio, após restaurar o soberano poder, foram a dispensa de todos os soldados que lhe eram suspeitos e a confirmação de Agripa no reino que este havia recebido de Caio. A esse respeito, promulgou um edito pelo qual, depois de lhe dedicar grandes honras e elogios, acrescentava aos seus territórios a Judéia e Samaria, achando que eles lhe pertenciam por justiça, porque haviam sido do rei Herodes, seu avô. Deu-lhe ainda, de sua parte, o reino de Abela, que pertencera a Lisânias, com todas as terras do monte Líbano. A aliança desse príncipe com povo romano foi gravado em uma lâmina de cobre que se colocou no meio da grande praça do mercado de Roma. 815. A Antíoco, que havia sido despojado de seu reino, o novo imperador entregou Comagena e uma parte da Cilícia. A Marco, filho de Alexandre Lisímaco, alabarche, por quem nutria um afeto particular e que tivera a direção de todos os negócios de Antônia, sua mãe, a qual Caio mandara prender, Cláudio deu por esposa Berenice, filha de Agripa. Marco, porém, morreu antes das núpcias. Então Agripa deu-a em casamento a Herodes, seu irmão, para o qual conseguiu de Cláudio o reino da Cálcida. 816. Aconteceu nesse mesmo tempo uma grande divergência entre os judeus e os gregos que moravam em Alexandria. Os primeiros, tendo sido muito oprimidos e maltratados pelos habitantes de Alexandria durante o reinado de Caio, logo que souberam da notícia de sua morte tomaram as armas. Caio escreveu ao governador do Egito que acalmasse aquela agitação, e enviou, a rogo dos reis Agripa e Herodes, um edito a Alexandria e à Síria. Os termos eram estes: "Tibério Cláudio César Augusto Germânico, príncipe da República, fez o edito que segue: Constando de diversos registros que os reis do Egito há muito tempo permitiram aos judeus que moram em Alexandria desfrutar os mesmos privilégios que os demais habitantes, Augusto, depois de anexar essa cidade ao império, confirmou-lhes esses mesmos direitos — e eles os usufruíram pacificamente sob Áqüila e outros governadores que lhe sucederam —, bem como a permissão, concedida por esse mesmo imperador, para que, quando o seu etnarca morresse, elegessem um outro. Permitiu-lhes também viver segundo as suas leis e no exercício de sua religião sem serem perturbados. Quando Caio quis fazer-se adorar como um deus, todavia, os outros habitantes de Alexandria tomaram essa ocasião para incitar o príncipe contra eles, porque se recusavam a obedecer a uma ordem tão ímpia. E, como nada seria mais injusto que persegui-los por esse motivo, é nosso desejo que eles sejam mantidos em seus privilégios, e ordenamos a uns e outros que vivam em paz, para o futuro, sem promover perturbação alguma". Esse mesmo imperador enviou outro edito a todas as províncias do Império Romano, cujo conteúdo era o seguinte: "Tibério Cláudio César Augusto Germânico, sumo sacerdote da República e cônsul designado pela segunda vez. Os reis Agripa e Herodes, que são nossos amigos muito particulares, rogaram-nos que permitíssemos aos judeus esparsos por todo o Império Romano viver segundo as suas leis, como de fato o permitimos. Nós, de boa mente, o concedemos aos que moram em Alexandria, não somente em consideração a dois tão grandes intercessores, mas também porque julgamos que o afeto e a fidelidade que os judeus sempre demonstraram pelo povo romano os tornam dignos de receber essa graça. Assim, é nosso desejo que nem mesmo nas cidades gregas eles sejam impedidos de usufruir esses favores, pois o divino Augusto os manteve, e que possam desfrutá-los no futuro em toda a extensão do império. Desse modo, por essa prova de nossa bondade, estarão eles também obrigados a respeitar a religião dos outros povos e a se contentar em viver essa plena liberdade. E, para que ninguém disso possa duvidar, ordenamos que o presente edito seja publicado não somente em toda a Itália, mas enviado por nossos oficiais aos reis e príncipes fora dela, e afixado em lugar visível durante trinta dias". CAPÍTULO 5 O REI AGRIPA RETORNA AO SEU REINO, COLOCA NO TESOURO DO TEMPLO A CADEIA DE OURO QUE ERA UMA LEMBRANÇA DE SUA PRISÃO E DESIGNA O NOVO SUMO SACERDOTE. IRRITA-SE COM A INSOLÊNCIA DOS DÓRIOS, QUE HAVIAM COLOCADO NA SINAGOGA UMA ESTÁTUA DO IMPERADOR. 817. Depois que esses editos, pelos quais o imperador Cláudio demonstrava tanta afeto pelo judeus, foram publicados e enviados a Alexandria e a todos os outros países sujeitos ao Império Romano, ele permitiu a Agripa, a quem havia cumulado de honras e benefícios, voltar ao seu reino, e entregou-lhe cartas de recomendação endereçadas aos governadores e aos intendentes das províncias. Logo que chegou a Jerusalém, Agripa cumpriu, com sacrifícios, os votos que fizera a Deus, obrigou os nazarenos a cortar o cabelo e realizou todas as outras coisas que a Lei determina. Ele também mandou colocar no Templo, no lugar onde é guardado o dinheiro consagrado a Deus, aquela cadeia de ouro com a qual o imperador Caio lhe presenteara e que era do mesmo peso do grilhão de ferro com que Tibério não tivera vergonha de prender suas mãos reais, a fim de que, estando expostas ao público, nelas se pudesse ver um ilustre exemplo das vicissitu-des da vida e saber que, quando elas privam os homens das honras que desfrutavam, Deus pode reerguê-los e restaurá-los, em uma prosperidade ainda maior. Não havia ninguém a quem essa cadeia assim consagrada não desse a conhecer que o príncipe, após ter sido posto na prisão por um motivo menor e contra o respeito devido a alguém de uma origem como a sua, dela não somente havia saído gloriosamente como também subira ao trono. Porque, assim como as potências mais elevadas caem fácil e repentinamente, as que estavam caídas erguem-se com mais glória, pela inconstância e pela revolução das coisas humanas. 818. Depois de cumprir todos os seus deveres para com Deus, o rei Agripa tirou o sumo sacerdócio de TeóFílon, filho de Anano, e entregou-a a Simão, cognominado Cantara, filho de Boeto, sumo sacerdote, cuja filha, como dissemos, Herodes, o Grande, havia desposado. Simão tivera dois irmãos que também haviam sido sumos sacerdotes, e vimos que outrora, sob o reinado dos macedônios, a mesma coisa aconteceu aos três filhos de Simão, sumo sacerdote, filho de Onias, que foram sumos sacerdotes, como o pai. Depois que Agripa dispôs tudo o que se referia ao supremo sacerdote, não quis deixar sem agradecimento o afeto que os habitantes de Jerusalém lhe haviam demonstrado. E, para mostrar-lhes a sua generosidade, perdoou os impostos que cada família devia pagar e honrou Silas, que jamais o havia abandonado nas dificuldades, com o cargo de general de suas tropas. 819. Pouco tempo depois, alguns moços da Dórida, demonstrando a sua temeridade e insolência, atreveram-se, sob o pretexto de piedade, a colocar uma estátua do imperador da sinagoga. E, como nada poderia ser mais contrário e injurioso às nossas leis, Agripa ficou tão irritado que foi imediatamente procurar Petrônio, que tinha o comando do exército na Síria. O governador mostrou que estava não menos surpreendido que ele ante tão grande impiedade e escreveu aos que haviam tido a ousadia de cometê-la nos termos que se seguem. CAPÍTULO 6 CARTA DE PETRÔNIO, GOVERNADOR DA SÍRIA, AOS DÓRIOS, ACERCA DA ESTÁTUA DO IMPERADOR QUE ELES COLOCARAM NA SINAGOGA. O REI AGRIPA ENTREGA O SUMO SACERDÓCIO A MATIAS. MARCOS É CONSTITUÍDO GOVERNADOR DA SÍRIA. 820. "Petrônio, governador, por Tibério Cláudio César Augusto Germânico, aos magistrados dórios. Eu soube que, após o edito de Cláudio César Augusto Germânico, que permite aos judeus viver segundo as suas leis, alguns dos vossos tiveram a insolência de profanar a sua sinagoga, colocando lá uma estátua. Eles ofenderam também à sua religião e à piedade da imperador, que deseja que cada divindade seja honrada no Templo que lhe for consagrado. A esse respeito não falarei do desprezo que se fez de minhas ordens, porque nisso se feriu até mesmo o respeito devido à autoridade de César, que não somente estima que os judeus observem os costumes de seus antepassados como ainda lhes concedeu um direito de burguesia semelhante ao dos gregos. Por isso, ordenei ao comandante Vitélio Próculo que me traga aqueles que dizem que foi por uma agitação popular e sem o vosso consentimento que se cometeu esse crime, a fim de que eu escute as suas justificativas. E não podereis dar-me testemunho melhor de que em nada tivestes parte que declarando a Próculo quem são os culpados e impedindo que, contra o desígnio do rei Agripa e o meu, aconteça alguma outra perturbação, como os espíritos perversos desejariam. Porque para mim e para o rei Agripa nada é mais importante que evitar que se dê aos judeus um motivo para tomarem armas com o pretexto de se defender. E, para eliminarmos toda possibilidade de dúvida quanto à vontade do imperador, anexo a esta carta a cópia de seu edito, que se refere aos habitantes de Alexandria e que o rei Agripa nos mostrou quando estávamos em nosso tribunal, a fim de que, conforme o desejo do imperador de que os judeus sejam mantidos nos favores que Augusto lhes concedeu e que todos vivam segundo a religião de seu país, impeçais tudo o que possa instigar alguma perturbação ou revolta". Esse sensato procedimento de Petrônio remediou a falta que se havia cometido, e por causa disso não mais se cometeram outras semelhantes. 821. O rei Agripa, depois disso, tirou o sumo sacerdócio de Simão Cantara e entregou-o a Jônatas, filho de Anano, julgando-o mais digno dele. Mas ele rogou que o rei o dispensasse do cargo, expressando-se nestes termos: "Sou-vos muito grato por me desejardes conceder tanta honra, mas Deus não me julga digno dela. É-me suficiente já haver recebido uma vez a veste sagrada, e eu não poderia agora retomá-lo tão inocentemente como fiz outrora. SeVossa Majestade desejar conceder essa dignidade a uma pessoa que a merece muito mais que eu e cuja virtude seria muito mais agradável a Deus, eu não hesitaria em vos propor o meu irmão". Essa resposta tão modesta comoveu Agripa de tal modo que ele deu o sumo sacerdócio a Matias, irmão de Jônatas. Algum tempo depois, Marcos sucedeu a Petrônio no governo da Síria. CAPÍTULO 7 A EXTREMA IMPRUDÊNCIA DE SILAS, GENERAL DAS TROPAS DE AGRIPA, LEVA ESSE PRÍNCIPE A PÔ-LO NUMA PRISÃO. FORTIFICA JERUSALÉM, MAS O IMPERADOR CLÁUDIO O PROÍBE DE CONTINUAR. SUAS EXCELENTES QUALIDADES. SEUS SOBERBOS EDIFÍCIOS. MOTIVO DE SUA AVERSÃO POR MARCOS, GOVERNADOR DA SÍRIA. ELE ENTREGA O SUMO SACERDÓCIO A ELIONEU. MORRE DE MANEIRA HORRÍVEL. DEIXA COMO SUCESSOR O SEU FILHO AGRIPA. HORRÍVEL INGRATIDÃO DOS HABITANTES DE CESARÉIA E DE SEBASTE PARA COM A SUA MEMÓRIA. O IMPERADOR CLÁUDIO ENVIA FADO PARA GOVERNAR AJUDÉIA, POR CAUSA DA MENORIDADE DE AGRIPA. 822. Silas, general das tropas do rei Agripa, como dissemos, lhe fora tão fiel durante as adversidades, que jamais se recusou a tomar parte com ele nos perigos e nunca deixou de se expor às situações mais arriscadas para lhe dar provas disso. Porém o mérito adquirido junto do rei por tantos serviços prestados concebeu nele tal confiança que ele não admitia ser tratado como subalterno. Esquecendo o respeito que devia ao soberano, falava-lhe sempre em tom de reprimenda e com uma liberdade que não se usa ao falar com os reis, e discorria sobre a sua infelicidade passada, exagerando na rememoração dos favores que lhe prestara e dos sofrimentos que experimentara por causa dele. Essa aborrecida e imprudente maneira de agir tornou-se insuportável ao príncipe, porque nada é mais enfadonho que a renovação das lembranças desagradáveis nem mais ridículo que a menção insistente dos favores e serviços que se prestou a alguém. Por fim, o descontentamento que Agripa sentiu foi tão grande que, cedendo à cólera mais que à razão, não somente privou Silas de seu cargo como também o encerrou numa prisão, na cidade de seu nascimento. Algum tempo depois, no entanto, acalmou-se, ao recordar os favores que dele recebera, e mandou chamá-lo para tomar parte num banquete que oferecia aos amigos. Silas, todavia, por ser incapaz de dissimular e porque estava convencido de que o rei lhe fizera uma grave injustiça, assim falou aos convidados: "Vós estais vendo a honra que o rei hoje me faz, mas ela não durará muito. Dela ele me irá privar, do mesmo modo como me destituiu — de maneira ultrajosa — do cargo que a minha fidelidade havia conquistado. Poderá ele persuadir-se de que eu deixarei de falar com liberdade? Como a minha consciência de nada me censura, publicarei sempre em alta voz as dificuldades de que o livrei e as amarguras que experimentei em prol de sua conservação e para a sua glória, bem como as cadeias e a escuridão de um cárcere que me foram dadas como recompensa. Tão grande injúria não é daquelas que se podem esquecer, e dela não me recordarei somente durante o resto de minha vida, mas também após a minha morte". Esse homem, tão imprudente quanto fiel, não se contentando em falar desse modo aos convidados, rogou que o dissessem ao rei. E este, percebendo então que aquela loucura era incurável, tornou a mandá-lo para a prisão. 823. Agripa dirigiu depois os seus cuidados a Jerusalém. Empregou o dinheiro público para aumentar e reedificar os muros da nova cidade, e a teria tornado tão forte que ela seria inexpugnável. Porém Marcos, governador da Síria, avisou o imperador, e este ordenou a Agripa que não continuasse o trabalho, e ele não ousou desobedecer. 824. Esse rei dos judeus era tão liberal e benéfico e tão afeiçoado aos seus súditos que não lhes poupava despesa alguma. E, por suas louváveis ações, alcançou celebridade e crédito junto deles. Era muito diferente de Herodes, seu avô, que era cruel e preferia os gregos aos judeus, como se pode julgar pelas vultosas somas que ele investiu para construir e embelezar cidades, Templos, teatros, banhos e outros suntuosos edifícios fora de seu país, sem jamais se ter dignado empreender algo semelhante na Judéia. Agripa, no entanto, era manso e afável para com todos. Tratava bem os seus súditos e os estrangeiros e tinha uma satisfação particular em aliviar os aflitos. Fazia a sua moradia ordinariamente em Jerusalém, e não se passava um dia sem que ele oferecesse sacrifícios a Deus, como ordenam as nossas leis, pois ele era muito religioso e observava os costumes de nossos antepassados. 825. Durante uma viagem que ele fez a Cesaréia, um doutor da lei, chamado Simão, teve a ousadia de acusá-lo publicamente, em Jerusalém, de ser um viciado, ao qual se devia recusar a entrada no Templo, pois tal só era permitida às pessoas castas. O governador da cidade avisou Agripa do ocorrido, e ele solicitou-lhe que fosse buscar aquele homem. Simão foi avisado, e, quando chegou a Cesaréia, o príncipe já se encontrava no teatro. Agripa convidou-o a sentar-se junto de si e falou-lhe com voz suave e sem se irritar: "Dizei-me, eu vos peço, quais são os vícios de que me acusais?" Aquele homem ficou tão confuso que, não sabendo o que responder, suplicou ao rei que o perdoasse, e este o perdoou no mesmo instante, dizendo que os reis devem preferir a clemência ao rigor e fazer com que a cólera seja vencida pela moderação. A sua bondade foi ainda além, pois ele despediu Simão com presentes. 826. Muitas cidades sentiram os efeitos da generosidade desse soberano. Ele nada poupou para erigir em Berito um suntuoso teatro e um anfiteatro, banhos e galerias que não lhe eram inferiores em beleza. Diversos concertos de música e outros divertimentos tiveram lugar pela primeira vez nesse teatro. Com o propósito de divertir o povo e para que se visse no meio da paz uma imagem da guerra, mandaram vir ao anfiteatro mil e quatrocentos homens condenados à morte, que foram divididos em dois grupos. O combate foi tão obstinado e sangrento que, de todo esse grande número, nem um só ficou com vida. 827. Depois disso, ele foi de Berito a Tiberíades, cidade da Galiléia. E os príncipes seus vizinhos — Antíoco, rei de Comagena; Sampsigeram, rei de Emesa: Cotis, rei da Pequena Armênia; Polemom, príncipe do Ponto; Herodes, rei da Cálcida, irmão de Agripa — vieram procurá-lo, porque muito o estimavam. Ele, por sua vez, tratou-os com a bondade e a magnificência correspondentes à dignidade de receber visitas tão honrosas. Quando estavam todos reunidos, Marco, governador da Síria, veio também visitá-lo. Agripa, querendo prestar-lhe a honra que era devida ao poder e à grandeza romana, foi encontrá-lo sete estádios antes, o que foi a primeira causa de desentendimento entre eles, pois aqueles reis que tinham vindo visitar Agripa estavam com ele no mesmo carro, e Marcos considerou aquela união prejudicial ao império, declarando que deviam todos regressar aos seus territórios. Isso deixou Agripa muito ofendido, motivo pelo qual daí em diante se tornaram inimigos. 828. Nesse mesmo tempo, ele tirou o sumo sacerdócio de Matias e entregou-a a Elioneu, filho de Citeu. E, no terceiro ano de seu reinado, celebrou na cidade de Cesaréia, antes conhecida como a torre de Estratão, jogos solenes em honra ao imperador. Os principais do reino e toda a nobreza da província reuniram-se nessa festa. No segundo dia dos espetáculos, Agripa chegou bem cedo pela manhã ao teatro. Usava uma veste trabalhada com muita arte, cujo forro era de prata, e, quando o sol o iluminava com os seus raios, emitia tão vivos reflexos de luz que não se podia olhar para ele sem se sentir tomado por um respeito misto de temor. Então alguns mesquinhos bajuladores, com palavras melífluas, mas que destilam veneno mortal sobre o coração dos príncipes, começaram a dizer que até então haviam considerado o seu rei um simples homem, porém dali em diante o iriam reverenciar como a um deus, rogando-lhe que se lhes mostrasse favorável, pois parecia que ele não era como os demais, de condição mortal. Agripa tolerou essa impiedade, que deveria ter sido castigada com muito rigor. E logo ele levantou os olhos e viu uma coruja por sobre a sua cabeça, pousada numa corda estendida no ar, e lembrou-se de que aquela ave era agora um presságio de sua desgraça, tal como outrora havia sido o prenuncio de sua prosperidade. Soltou então um profundo suspiro, ao mesmo tempo que começou a sentir as entranhas roídas por uma dor horrível. E, voltando-se para os seus amigos, disse-lhes: "Aquele que pretendeis fazer acreditar que é imortal está prestes a morrer. A providência divina veio desmascarar a vossa mentira. Mas é preciso aceitar as determinações de Deus, apesar de eu ter sido muito feliz, a ponto de não haver príncipe de quem eu invejasse a felicidade". Dizendo essas palavras, ele sentiu que as dores aumentavam. Levaram-no ao palácio, e a notícia de que ele estava prestes a exalar o último suspiro espalhou-se imediatamente. Logo todo o povo, com a cabeça coberta por um saco, segundo o costume de nossos pais, fez orações a Deus pela sua saúde, e todo o ar ressoava com gritos e lamentações. O príncipe, que estava no quarto mais alto do palácio, vendo-os de lá prostrados em terra, não pôde reter as lágrimas. As dores, porém, continuaram por cinco dias a fio e o levaram desta vida, aos cinqüenta e quatro anos de idade e sete de reinado. Foram quatro anos sob o imperador Caio, dos quais nos três primeiros ele governou apenas a tetrarquia que pertencera a Filipe, sendo-lhe acrescentada no quarto ano a de Herodes. Nos três anos em que reinou sob Cláudio, esse imperador deu-lhe também a judéia, Samaria e Cesaréia. E, embora as suas rendas fossem muito altas,* ele era tão liberal e magnânimo que se via obrigado a pedir emprestado grandes somas. ___________________________ * "Mil e duzentas vezes dez mil", diz o texto grego, sem nada mais especificar. 829. Antes que a notícia de sua morte se tivesse divulgado, Cheicias, general das tropas, e Herodes, o príncipe da Cálcida, ambos inimigos de Silas, mandaram que Aristo o matasse na prisão, fingido ter recebido ordem do rei para isso. 830. O príncipe, que possuía grandes qualidades, deixou, ao morrer, um filho de dezessete anos, chamado Agripa, como ele, e três filhas, das quais a mais velha, de nome Berenice, que então contava dezesseis anos, havia desposado Herodes, seu tio. Mariana, que era a segunda, de dez anos, era noiva de Júlio Arqueiau, filho de Cheicias. E a terceira, de nome Drusila, que tinha apenas seis anos de idade, era noiva de Epifânio, filho de Arqueiau, rei de Comagena. 831. Quando a notícia da morte do rei Agripa se tornou pública, os habitantes de Cesaréia e de Sebaste esqueceram todos os benefícios que dele haviam recebido. A sua horrível ingratidão levou-os a querer enxovalhar a sua memória com injúrias e ultrajes que eu não teria coragem de referir aqui. Então os vândalos (e entre eles alguns soldados), que eram em grande número no meio do povo, tiveram a insolência de arrancar do palácio as estátuas das princesas filhas do rei e levá-las a lugares infames, onde uma vergonhosa prostituição reúne as infelizes vítimas da impudicícia pública. E, depois que foram expostas à vista de todos, acrescentaram-lhes todas as ofensas e indignidades que imaginaram. Esses pérfidos indivíduos chegaram a promover banquetes nas ruas, onde, com coroas de flores sobre a cabeça e cabelos perfumados, ofereceram sacrifícios a Charom e beberam à saúde uns dos outros, demonstrando grande alegria pela morte do soberano. Ações tão insolentes e ofensivas foram a prova que eles deram de sua ingratidão, depois dos muitos benefícios que deviam a Herodes, o Grande, seu avô, que não somente construíra aquelas cidades como também as havia embelezado com suntuosos Templos e com aqueles portos admiráveis que as tornaram tão célebres. 832. Nessa época, o jovem Agripa se encontrava em Roma, sendo educado junto ao imperador. Cláudio ficou muito sentido com a morte de Agripa e enfurecido contra os habitantes de Sebaste e Cesaréia. A fim de cumprir o seu juramento, pensou em mandar imediatamente o jovem príncipe para tomar posse do reino. Porém os amigos e libertos, que tinham grande autoridade perante ele, o fizeram mudar de idéia, alertando-o de que era perigoso conceder o governo de um reino tão extenso a um jovem que não tinha experiência suficiente para administrá-lo, quando a tarefa já era árdua até mesmo para um homem maduro. Assim, ele decidiu enviar outro governador para a Judéia, o qual teria autoridade em todo o reino. Sabedor de que Marcos e o falecido rei Agripa se haviam desentendido, julgou que prestaria melhor essa honra à memória do príncipe entregando o cargo a um amigo, em vez de a um inimigo. Assim, enviou Cúspio Fado, recomendando-lhe, antes de tudo, que castigasse severamente os habitantes de Cesaréia e Sebaste pelos ultrajes que haviam feito à memória de Agripa e às princesas filhas dele. Ordenou-lhe também que enviasse ao Ponto as cinco coortes e o resto dos soldados que estavam naquelas duas cidades e pusesse em seu lugar um corpo retirado das legiões romanas da Síria. A última ordem, no entanto, não foi executada, pois aqueles enviaram delegados ao imperador, os quais lhe acalmaram o espírito e obtiveram dele permissão para ficar na Judéia. E isso foi o princípio de muitos males que depois vieram a afligi-la e a semente da guerra que sucedeu sob o governo de Floro. Vespasiano estava tão convencido de ser esse o motivo que, após subjugar o país, removeu-os da província, como relataremos em seguida Livro Vigésimo CAPÍTULO 1 O IMPERADOR CLÁUDIO DESTITUI MARCOS DO CARGO DE GOVERNADOR DA SÍRIA. LONGINO O SUBSTITUI. FADO, GOVERNADOR DA JUDÉIA, CASTIGA OS SEDICIOSOS E LADRÕES QUE PERTURBAM A PROVÍNCIA E ORDENA AOS JUDEUS QUE REPONHAM NA FORTALEZA ANTÔNIA AS VESTES SAGRADAS DO SUMO SACERDOTE. O IMPERADOR REVOGA ESSA ORDEM A PEDIDO DO JOVEM AGRIPA. 833. Depois da morte do rei Agripa, o Grande, de que acabamos de falar no livro precedente, o imperador Cláudio, para honrar a sua memória e manifestar o quanto o havia amado, tirou de Marcos o governo da Síria, como este mesmo lhe havia muitas vezes solicitado, e o entregou a Longino. 834. Nesse mesmo tempo, Fado, que havia sido nomeado para a judéia, foi exercer o cargo. Existia então uma séria polêmica entre os judeus que habitavam além do Jordão e os de Filadélfia, com relação aos limites da aldeia de Mia, cujos habitantes eram de temperamento guerreiro. Os judeus haviam pegado em armas sem o consentimento de seus magistrados e matado vários dentre os de Filadéfia. Ele ficou tão irritado ao vê-los querendo fazer justiça por si mesmos, sem esperar o seu parecer, que depois de mandar prender Aníbal, Areram e Eieazar, os principais autores da sedição, condenou à morte o primeiro e exilou os outros dois. 835. Algum tempo depois, mandou também prender Ptolomeu, chefe dos ladrões que tantos males haviam causado aos idumeus e aos árabes. Condenou-o à morte e expurgou assim toda a judéia desses inimigos da segurança pública. Reuniu depois os sacerdotes e os maiorais de Jerusalém para ordenar-lhes, da parte do imperador, que recolocassem na fortaleza Antônia as vestes sagradas, de que somente os sumos sacerdotes podem se servir, a fim de que lá ficassem e fossem guardados pelos romanos, como outrora. Com receio, porém, de que essa ordem os levasse a uma revolta, levou consigo algumas tropas a Jerusalém. Os sacerdotes e os que os acompanhavam não ousaram contestar a ordem, mas rogaram a Longino e a Fado que lhes fosse permitido enviar embaixadores ao imperador com uma petição para que a guarda da veste sacerdotal permanecesse com eles e que nada se mudasse enquanto aguardavam a resposta. Eles foram atendidos, sob a condição de que deixassem os filhos como reféns, no que eles concordaram sem dificuldade. Depois disso, partiram os embaixadores, e o jovem Agripa, filho do rei Agripa, o Grande, que ainda estava em Roma, ao saber o motivo que os levava até ali, rogou ao imperador que consentisse naquele pedido e enviasse mensagem a Fado. Cláudio mandou vir os embaixadores e disse-lhes que concedia o que eles desejavam, mas que agradecessem a Agripa, pois era em consideração a ele e ao seu pedido que lhes outorgava aquela graça. Entregou-lhes em seguida uma carta, que reproduzo aqui: "Cláudio César Germânico, príncipe da República pela quinta vez, cônsul pela quarta vez, imperador pela décima e pai da Pátria. Aos magistrados, ao senado, ao povo de Jerusalém e a toda a nação dos judeus, saudação. Tendo os vossos embaixadores — que me foram apresentados por Agripa, o qual foi educado e instruído em minha companhia, e a quem muito estimo — me agradecido pelo cuidado que dispenso à vossa nação e me solicitado com grande insistência a manutenção da guarda dos ornamentos de vosso sumo sacerdote e da coroa, tal como Vitélio, que me é muito caro, fez antes de mim, consenti em seu pedido. Fiz isso tanto por piedade quanto porque acho justo permitir a cada qual viver conforme a religião de seu país e também pelo afeto particular que o rei Herodes e o jovem Agripa têm por mim e pelas vossas necessidades, sendo que tenho com eles grande amizade. Estou escrevendo sobre esse assunto a Cúspio Fado, por Cornélio, filho de Cero, Trifo, filho de Têudio, Doroteu, filho de Natanael, e João, filho de Jotre. Esta carta é datada do quarto ano das calendas de julho, sendo os cônsules Rufo e Pompeu Silvano". 836. Herodes, príncipe da Cálcida e irmão do falecido rei Agripa, o Grande, pediu então ao imperador Cláudio, e obteve dele, poder sobre o Templo e sobre o tesouro sagrado e o direito de escolher o sumo sacerdote. Essa autoridade permaneceu com ele e com os seus descendentes até o fim da guerra dos judeus. Esse príncipe tirou o sumo sacerdócio de Cantara, e entregou-o a José, filho de Caneu. CAPÍTULO 2 IZATE, REI DOS ADIABENIANOS, E A RAINHA HELENA, SUA MÃE, ABRAÇAM A RELIGIÃO DOS JUDEUS. SUA EXCELSA PIEDADE E GRANDES FEITOS DESSE PRÍNCIPE QUE DEUS PROTEGE VISIVELMENTE. FADO, GOVERNADOR DA JUDÉIA, MANDA CASTIGAR UM HOMEM QUE ENGANAVA O POVO E OS QUE O TINHAM SEGUIDO. 837. Por esse tempo, a rainha Helena e Izate, seu filho, rei dos adiabenianos, abraçaram a religião dos judeus, pelo motivo que vou expor. Monobazo, cognominado Bazeu, rei daquela nação, ficou possuído de uma paixão violenta por aquela princesa, que era sua irmã, e a desposou. Ela ficou grávida, e, estando ele deitado junto dela, adormecido, pôs a mão sobre o ventre da esposa e então ouviu uma voz que lhe ordenava que a retirasse, para não ferir a criança concebida, a qual, por uma determinação particular de Deus, deveria ser muito feliz. Ele despertou muito perturbado e contou a esposa o que havia escutado. Quando o menino veio ao mundo, deu-lhe o nome de Izate. Tinha ele já outro filho daquela princesa, de nome Monobazo, como ele, e ainda outros, de outras mulheres. Mas a sua ternura por Izate era tão grande que todos notaram que, mesmo que fosse aquele o único filho, não o teria amado mais. O grande amor do rei por Izate causou inveja aos outros irmãos. Eles não se conformavam que o pai o preferisse. E Monobazo não podia se mostrar descontente pelo fato de eles estarem manifestando um sentimento que não provinha de malícia, mas somente do desejo que cada qual possuía de ocupar o primeiro lugar no seu coração. Para livrar Izate do perigo que a ira de seus irmãos dava motivo para temer, enviou-o com ricos presentes a Abemeric, rei de Spazim, confiando-lhe a sua proteção. Esse príncipe recebeu-o muito bem e teve por ele grande afeto, tanto que lhe deu em casamento a princesa Samacho, sua filha, bem como uma província de grande rendimento. Estava Monobazo já muito velho e, percebendo que lhe restava pouco tempo de vida, desejou, antes de morrer, ver ainda uma vez aquele filho que lhe era tão caro. Mandou buscá-lo e, após demonstrar-lhe toda a ternura que um pai pode sentir, presenteou-o com uma província de nome Ceron, muito fértil e rica de plantas odoríferas e onde se vêem ainda hoje os restos da arca que salvou Noé do dilúvio. Izate lá ficou até a morte do rei seu pai, e então a rainha Helena, depois de reunir todos os maiorais do reino e todos os chefes dos soldados, disse-lhes: "Não ignorais, sem dúvida, que o falecido rei meu marido queria Izate como seu sucessor, julgando-o o mais digno dessa honra. Mas, a esse respeito, desejo saber a vossa opinião, porque nenhum príncipe será feliz se não subir ao trono por um consentimento unânime, que lhe permita reinar no coração de todos os súditos". A sábia princesa falara assim para conhecer os sentimentos de seus convidados. E todos eles, depois de a ouvir, prostraram-se diante dela, segundo o costume da nação, e responderam que não podiam reprovar uma resolução tomada pelo falecido rei. Se ele havia preferido Izate aos demais irmãos, obedecer-Ihe-iam com alegria e, se ela quisesse, até mesmo matariam todos os outros irmãos e parentes, a fim de que, não restando mais ninguém para odiá-lo e invejar-lhe a coroa, ele reinasse em completa segurança. A rainha agradeceu a dedicação que eles demonstravam a ela e a Izate, mas disse que não julgava conveniente eliminar os outros irmãos antes de ele chegar e se pronunciar sobre o assunto. Todos aprovaram, mas disseram que era prudente conservá-los prisioneiros até que ele retornasse, para garantir que nada tentassem contra ele na sua ausência, e que por enquanto se desse o governo a alguém que fosse da inteira confiança da princesa. Ela então colocou a coroa sobre a cabeça de Monobazo, irmão mais velho de Izate, e entregou-lhe o anel sobre o qual estava o selo do falecido rei e o veste real, a que eles chamam de sampsere, concedendo-lhe o poder de agir na qualidade de vice-rei até a chegada do irmão. E, logo que este chegou, Monobazo entregou-lhe imediatamente o poder. Antes de sua ascensão ao trono, Izate morava no castelo de Spazim, e um negociante judeu, de nome Ananias, iniciara algumas damas da corte no conhecimento do Deus verdadeiro e as persuadira a prestar-lhe o mesmo culto que os judeus. Por meio delas, conseguiu aproximar-se de Izate e inculcou-lhe os mesmos sentimentos. Assim, quando o rei seu pai mandou chamá-lo para vê-lo antes de morrer, Izate obrigou Ananias a acompanhá-lo na viagem. Aconteceu que naquele mesmo tempo um outro judeu instruíra também a rainha Helena na nossa religião. Izate, já embebido pelo espírito de piedade e feliz por ter sido escolhido para rei por consentimento unânime, não se agradou em ver os irmãos e parentes encarcerados. Julgou que seria crueldade matá-los ou conservá-los na prisão, mas temia que, se os pusesse em liberdade, eles procurassem vingar a injúria recebida. Para equilibrar os dois extremos, enviou uma parte deles, com os filhos, para Roma, entregando-os como reféns ao imperador Cláudio, e a outra parte, sob a mesma condição, enviou a Artabano, rei dos partos. Quando esse virtuoso príncipe soube que a rainha sua mãe estava também, como ele, afeiçoada à religião dos judeus, achou por bem não protelar mais o seu desejo de professá-la. E, como sabia que ninguém pode ser verdadeiramente judeu sem se circuncidar, dispôs-se a fazê-lo. Mas a princesa, ao saber disso, procurou demovê-lo de seu intento, fazendo com que atentasse para o perigo a que se iria expor, pelo descontentamento que suscitaria entre os súditos, os quais nunca iriam admitir que ele abraçasse uma religião estrangeira e nem aceitariam um judeu como rei. Esses argumentos contiveram o seu ímpeto, e, quando ele relatou a Ananias o que ela dissera, declarou-lhe também que o despediria se não o fizesse. Ananias então quis se afastar, pois temia ser castigado, já que era o orientador do rei naquela questão, acrescentando que não era necessário que ele se circuncidasse para servir a Deus e prestar-lhe o culto que a religião dos judeus obrigava, porque a adoração a Deus era de natureza superior à da circuncisão. E, se era para evitar que os seus súditos se revoltassem, ele sem dúvida seria perdoado por não cumprir aquele ritual. Assim, Ananias confirmou o que a rainha dissera ao rei, e este ficou convencido, mas não de todo. Algum tempo depois, veio da Galiléia outro judeu, de nome Eleazar, que era muito instruído nas coisas da nossa religião. Quando foi saudar o rei, encontrou-o a ler os livros de Moisés e disse-lhe: "Ó rei! Acaso ignorais a injúria que cometeis contra a Lei e contra o próprio Deus? Julgais que é suficiente conhecer os seus mandamentos, sem pô-los em prática? Quereis ficar para sempre incircunciso? Se não sabeis ainda que a Lei ordena a circuncisão, lede-a, e vereis que grande pecado é negligenciá-la". O rei ficou tão impressionado com essas palavras que, sem mais delongas, retirou-se a um quarto, mandou chamar um cirurgião e assim foi circuncidado. Logo depois, mandou chamar a rainha sua mãe e Ananias e contou-lhes o que fizera. O terror tomou conta deles, porque temiam que os súditos, não querendo ser governados por um príncipe de uma religião contrária à deles, se revoltassem e lhe tirassem o reino. Temiam também por eles mesmos, pois haviam inspirado nele aqueles sentimentos. Mas Deus não somente livrou esse religioso príncipe de todos os perigos de que parecia estar ameaçado como livrou também os seus filhos no momento em que as coisas pareciam mais desesperadas. Deus mostrou que todos os que põem nEle a sua confiança e são piedosos podem esperar dEle todas as coisas, como a continuação desta história irá mostrar. A rainha Helena, vendo que por uma providência particular de Deus o seu filho, o rei Izate, governava em profunda paz e que a sua felicidade era admirada não somente pelos estrangeiros, mas também pelos seus súditos, desejou ir adorar a suprema Majestade e oferecer-lhe sacrifícios no mais célebre de todos os Templos, construído em sua honra, em Jerusalém. O filho não somente lhe deu alegremente a permissão como também acompanhou-a durante uma parte do caminho. E ela chegou a Jerusalém com um soberbo séquito e grande quantidade de dinheiro. A sua visita foi muito vantajosa para os habitantes da cidade, porque naquela época a carestia era tão grande que muitos morriam de fome. A rainha, para remediar esse mal, mandou comprar grande quantidade de trigo em Alexandria e figos secos na ilha de Chipre. Distribuiu-os aos pobres e granjeou assim entre os judeus a fama de generosa, como de fato merecia, depois de tão grande caridade. O rei seu filho foi também generoso, pois, ao saber que a fome continuava, enviou grandes auxílios aos maiorais de Jerusalém, para que fossem entregues em favor dos pobres. Mas deixarei para mais adiante o relato dos benefícios de que nossa cidade é devedora a esse príncipe e à princesa. Artabano, rei dos partos, sabendo que os governadores das províncias de seu reino estavam conspirando contra ele e julgando que não estava mais seguro entre eles, resolveu ir procurar o rei Izate para se aconselhar com ele sobre o que devia fazer e até mesmo tentar, por meio dele, voltar a se estabelecer em seus domínios. Partiu então com os parentes e os principais servidores, cerca de mil pessoas. Encontrou Izate pelo caminho e não teve dificuldade em reconhecê-lo pelo seu séquito, mas Izate não o reconheceu. Artabano prostrou-se diante dele, segundo o costume de seu país, e falou-lhe nestes termos: "Não me desprezeis, virtuoso príncipe, por me verdes neste estado de súplica, obrigado a abandonar o meu reino. Um grande revés de sorte reduziu-me a este estado, e vim implorar o vosso auxílio. Pensei em quão pouco devemos contar com as grandezas da terra e refleti sobre vós mesmo, considerando a quantos acidentes estamos expostos. Preciso de vosso auxílio, e esse socorro será benéfico a vós também, pois a vossa recusa em ajudar-me na vingança dos crimes de meus súditos iria fortalecer a ousadia e a revolta de outros povos contra os seus reis". Artabano falava com o rosto triste, e as lágrimas acompanhavam suas palavras. Izate, que conhecia a sua condição, desceu do cavalo e respondeu-lhe: "Tende coragem, grande príncipe! Não vos deixeis abater pela má sorte, como se fosse sem remédio. Tenho esperança de que bem depressa a vereis terminada. Encontrareis em mim um amigo e aliado, muito mais afeiçoado e fiel do que imaginastes, pois ou vos recolocarei em vosso reino ou vos cederei o meu". Depois que assim falou, fez Artabano subir ao seu cavalo e dispôs-se a segui-lo a pé, para homenagear um rei que ele sabia ser possuidor de maior honra. Artabano, porém, não consentiu. Jurou por toda a sua prosperidade que jamais o permitiria. Por fim, conseguiu convencer Izate a montar novamente e foi caminhando diante dele. Acompanhou-o até o palácio, onde não houve honra que não lhe fosse prestada. O rei Izate dava-lhe sempre o primeiro lugar nas assembléias e nos banquetes, porque não o considerava no estado em que se encontrava então, mas em sua antiga dignidade, e dizia-lhe sabiamente que as mudanças de sorte são comuns a todos os homens. Escreveu em seguida aos maiorais dos partos para exortá-los a voltar à obediência ao seu rei, ao mesmo tempo em que empenhava a sua palavra, com promessa de confirmá-la por juramento, se eles o desejassem, na garantia de que aquele príncipe esqueceria todo o passado. Eles responderam que gostariam de atendê-lo, mas que isso já não estava em seu poder, porque haviam entregado a coroa a Cinamo e não a poderiam tomar de volta sem suscitar uma guerra civil. Cinamo veio a saber o que se passava e ficou comovido ao ser informado das intenções de Artabano, porque havia sido educado com ele e conhecia a sua generosidade. Desse modo, escreveu-lhe dizendo que ele podia, sob a sua palavra, voltar com toda a segurança e que até mesmo estavam pedindo que o fizesse. Quanto a ele, Cinamo, de todo o coração lhe colocaria na mão o cetro com que havia sido honrado. Artabano não teve dificuldade em confiar nele. Partiu, e Cinamo veio recebê-lo, o qual, prostrando-se diante dele, saudou-o como rei e tirou a coroa da cabeça para entregá-la a Artabano, que assim reconquistou o reino, com o auxílio de Izate. As honras que Artabano prestou ao seu ajudador testemunharam a sua gratidão, pois lhe permitiu usar a tiara reta e deitar-se num leito de ouro, o que só pode ser feito pelos reis dos partos, e deu-lhe uma província, chamada Niside, que outrora pertencera ao rei da Armênia, na qual os macedônios haviam construído uma cidade, chamada Antioquia, que mais tarde veio a chamar-se Migdônia. Artabano morreu pouco depois. Vardan, seu filho e sucessor, tentou induzir o rei Izate a se unir a ele para fazer guerra aos romanos, porém não conseguiu persuadi-lo, pois este conhecia muito bem o poder deles para iludir-se com o resultado de tal empresa. E, como Izate havia mandado cinco de seus filhos a Jerusalém para que aprendessem a nossa língua e se instruíssem nos nossos costumes, ao mesmo tempo em que a rainha Helena, sua mãe, fora adorar o verdadeiro Deus, no Templo, como dissemos, ele estava mais contido quanto a determinadas alianças. O sábio príncipe fez o que pôde para dissuadir Vardan desse empreendimento, advertindo-o do fabuloso exército dos romanos e de suas temíveis ações na guerra. Em vez de receber bem essas admoestações, todavia, ele se sentiu ofendido e declarou guerra a Izate. No entanto Deus, que protegia Izate, assegurou-lhe o seu auxílio: os partos, quando se convenceram de que ele estava resolvido a atacar os romanos, mataram-no e puseram Gotarso, seu irmão, no lugar dele. Algum tempo depois, esse rei também foi morto à traição, e Vologeso, seu irmão, substituiu-o. Esse príncipe, que tinha dois irmãos do mesmo pai, deu a Pacoro, o mais velho, o reino da Média e a Tiridate, o mais novo, o reino da Armênia. Nesse mesmo tempo, Monobazo, irmão do rei Izate, e seus parentes, vendo que a piedade para com Deus tornava-o o mais feliz dos príncipes, cogitaram em também abandonar a sua religião e abraçar a dos judeus. Os grandes do país, todavia, vieram a sabê-lo e ficaram muito irados, mas resolveram dissimular, até que se encontrasse uma oportunidade favorável para matá-los. Escreveram a Abia, rei dos árabes, e prometeram-lhe uma grande soma de dinheiro, caso viesse com um grande exército fazer guerra ao seu rei, com a garantia de passarem para o seu lado logo que se iniciasse a batalha, porque estavam resolvidos a castigá-lo pelo desprezo que demonstrara pela religião de seu país. Eles confirmaram a promessa com um juramento e rogaram-lhe insistentemente que se apressasse. O rei árabe veio com um grande exército, e Izate marchou contra ele, mas no momento do combate se viu abandonado pelos seus homens, como se um terror repentino os tivesse levado a fugir. Izate não teve dificuldade em compreender que fora traído pelos grandes. Não se admirou, todavia. Retirou-se para o seu acampamento com os fugitivos, onde, depois de identificar os traidores, os responsáveis por tão vergonhoso acordo com o inimigo, mandou castigá-los como mereciam. No dia seguinte, travou combate com o inimigo, matou um grande número deles e pôs o resto em fuga. Perseguiu Abia até o castelo de Arsame, o qual tomou de assalto e o saqueou, levando de lá muitos despojos e voltando glorioso a Adiabene. A única coisa que faltou ao seu triunfo foi trazer Abia vivo, porque este se suicidara, para não ser levado como escravo. Os grandes, que haviam conspirado contra Izate, viram assim frustradas as suas esperanças. Deus entregou-os todos nas mãos dele, mas eles insistiam em sua perfídia. Escreveram a Vologeso, rei dos partos, pedindo-lhe que o mandasse matar e lhes desse por rei alguém de sua nação, porque não podiam consentir que ele reinasse após abandonar as leis de seu país para seguir as dos estrangeiros. Vologeso, ante tal insistência, deliberou fazer guerra a Izate, embora este não lhe tivesse dado motivo para isso. Começou por abolir as graças que o rei Artabano, seu pai, lhe havia concedido e ameaçou em seguida entrar com armas em seu país, caso ele deixasse de fazer o que lhe estava sendo ordenado. Izate ficou perturbado com essa surpreendente notícia, mas julgou humilhante renunciar às honras que com justiça merecera. E, mesmo que o fizesse, Vologeso não o deixaria em paz. Assim, resolveu depositar toda a sua confiança no auxílio Todo-poderoso de Deus. Enviou a esposa e os filhos para um castelo muito bem defendido, recolheu toda a forragem que restava ainda nos campos e pôs se à espera dos inimigos. O rei das partos, com muitas tropas de cavalaria e infantaria, chegou mais depressa do que se poderia imaginar e acampou às margens do rio que separa Diabene da Média. Izate acampou próximo dele com seis mil cavaleiros. Vologeso mandou-lhe dizer por um arauto que viera atacá-lo com todas as tropas de seu reino, o qual se estendia desde o Eufrates até as montanhas dos bactrianos, para castigá-lo pela desobediência ao seu senhor e que nem mesmo o Deus que ele adorava seria capaz de o impedir. Izate, horrorizado diante de tão grande blasfêmia, respondeu que não duvidava de que possuía tropas muito inferiores às dos partos; todavia, estava ciente de que o poder de Deus era infinitamente maior que o de todos os homens juntos. Após despedir o arauto, ele cobriu a cabeça com cinza e jejuou, ordenando a mulher e aos filhos que jejuassem também. Prostrado em terra diante da majestade de Deus e banhado em lágrimas, rogou-lhe deste modo: "Não foi em vão, Senhor, que me lancei nos braços de vossa misericórdia. Eu vos reconheço como único Senhor do universo. Vinde em meu auxílio, meu Deus, não somente para me defender de meus inimigos como também para castigá-los pela sua ousadia e pelas horríveis blasfêmias que ousaram proferir contra o vosso supremo poder". Tão fervorosa oração acompanhada de lágrimas não ficou sem efeito. Deus ouviu-o tão prontamente que Vologeso, tendo sabido na noite seguinte que os dácios e os saceenses, encorajados pela sua ausência, haviam entrado em seu reino e lá faziam grande devastação, partiu para combatê-los e assim voltou sem nada ter podido executar de seu desígnio contra Izate, a quem Deus protegera de modo tão evidente. Pouco tempo depois, morreu esse religioso príncipe, na idade de cinqüenta e cinco anos, dos quais reinou vinte e quatro. E, embora tivesse quatro filhos, deixou Monobazo, seu irmão mais velho, como sucessor, em gratidão pelo favor de lhe haver conservado o reino depois da morte de seu pai. Essa grande prova de gratidão muito consolou a rainha Helena em sua grande dor pela perda de tão caro e virtuoso filho. Ela sobreviveu a ele pouco tempo, morrendo quando vinha para encontrar-se com seu filho Monobazo, que enviou os ossos dela e os de Izate a Jerusalém, para serem colocados em três pirâmides que a princesa mandara construir a três estádios da cidade. Dos feitos de Monobazo, falaremos mais adiante. 838. Quando Fado era governador da judéia, um mago de nome Teudas convenceu uma grande multidão de povo a tomar os próprios bens e a segui-lo até o Jordão, dizendo que era profeta e que deteria, com uma única palavra, o curso do rio e os faria passar a pé enxuto. Ele assim enganou muita gente. Mas Fado castigou esse impostor e, por sua loucura, a todos os que se haviam deixado enganar. Enviou contra eles alguns soldados de cavalaria, que mataram uma parte deles de surpresa e fizeram vários prisioneiros, estando Teudas entre eles, a quem cortaram a cabeça, que foi levada a Jerusalém. Foi isso o que aconteceu de mais notável durante o governo de Cúspio Fado. CAPÍTULO 3 TIBÉRIO ALEXANDRE SUCEDE A FADO NO CARGO DE GOVERNADOR DA JUDÉIA, E CUMANO, A ALEXANDRE. MORTE DE HERODES, REI DA CÁLCIDA. SEUS FILHOS. O IMPERADOR CLÁUDIO ENTREGA SEUS DOMÍNIOS A AGRIPA. 839. Fado teve como sucessor no cargo de governador da Judéia Tibério Alexandre, filho de Alexandre, alabarche, de Alexandria, que era o mais rico de toda aquela grande cidade e que não fora ímpio como o filho, que abandonou a nossa religião. Foi no seu tempo que sobreveio a Jerusalém aquela grande carestia, na qual a rainha Helena mostrou a sua caridade. Alexandre mandou crucificar Tiago e Simão, filhos de Judas, da Galiléia. Judas foi quem, na época em que Cirênio fazia o recenseamento dos judeus, incitou o povo a se revoltar contra os romanos. 840. Herodes, rei da Cálcida, tirou o sumo sacerdócio de José, filho de Camidas, e deu-a a Ananias, filho de Nebedeu. Cumano sucedeu a Tibério Alexandre no cargo, e ao mesmo tempo Herodes, rei da Cálcida, irmão do rei Agripa, o Grande, de que acabamos de falar, morreu, no oitavo ano do reinado do imperador Cláudio. Ele deixou de sua primeira mulher um filho chamado Aristóbulo e de Berenice, sua outra mulher, filha do rei Agripa, seu irmão, dois outros filhos, cujos nomes eram Berenício e Hircano. O imperador Cláudio entregou o princi-pado de Herodes a Agripa. Durante a administração de Cumano, houve uma grande revolta em Jerusalém, que custou a vida a vários judeus, mas primeiro vou descrever as circunstâncias que levaram a ela. CAPÍTULO 4 HORRÍVEL INSOLÊNCIA DE UM SOLDADO DAS TROPAS ROMANAS CAUSA EM JERUSALÉM A MORTE DE VINTE MIL JUDEUS. INSOLÊNCIA DE OUTRO SOLDADO. 841. Aproximava-se a festa da Páscoa, na qual os judeus só comem pão sem fermento, e uma grande multidão de povo acorria de todos os lados. Cumano, para impedir que houvesse alguma desordem, colocou uma companhia de soldados para montar guarda à porta do Templo, como sempre fizeram os seus predecessores em semelhantes ocasiões. No quarto dia da festa, porém, um soldado teve a insolência de pôr a descoberto, diante de todos, o que o pudor e a educação obrigam a esconder. Tão horrível desfaçatez irritou de tal modo o povo, que todos começaram a clamar que não era somente aos judeus que ele injuriava, mas ao próprio Deus, e os mais exaltados começaram a ofender Cumano, dizendo que fora ele quem mandara o soldado cometer tamanha impiedade. Cumano ficou muito ofendido com essas palavras: todavia, não deixou de exortar o povo a conter a sua exaltação. No entanto, percebendo que eles, em vez de obedecer, ainda lhe diziam mais injúrias, ordenou a todas as tropas que se dirigissem com armas à fortaleza Antônia, que, como já dissemos, ficava sobranceira ao Templo. O povo, então, espantado por ver aproximar-se um tão grande número de soldados, pôs-se em fuga. Como as ruas eram muito estreitas e eles, aterrorizados, imaginavam que os soldados os estavam perseguindo, apertaram-se de tal modo que mais de vinte mil morreram sufocados. Assim, a alegria dessa grande festa converteu-se em tristeza. Cessaram as orações. Abandonaram-se os sacrifícios. Ouviam-se apenas gemidos, lamentos. E a causa de toda essa desolação deveu-se ao impudor sacrílego de um único homem. 842. Essa tragédia ainda era lamentada quando sobreveio outra confusão. Alguns dos que haviam fugido, na ocasião do tumulto, encontraram a cem estádios de Jerusalém um homem de nome Estêvão, que era doméstico do imperador, assaltaram-no e apoderaram-se de tudo o que ele trazia consigo. Cumano, logo que soube disso, enviou soldados com ordem de devastar as aldeias vizinhas e trazer-lhe aprisionados os principais habitantes. Um soldado encontrou numa dessas aldeias os livros de Moisés e rasgou-os na presença de todos, proferindo ainda mil ofensas contra as nossas leis e contra a nossa nação. Os judeus não puderam tolerar tal ofensa e foram em grande número encontrar-se com Cumano, em Cesaréia, para rogar-lhe que castigasse tão grande injúria, feita antes ao próprio Deus que a eles. O governador, vendo-os tão exaltados e temendo uma revolta, a conselho de amigos mandou matar o soldado que fizera semelhante ultraje às nossas leis e assim acalmou uma grande perturbação. CAPÍTULO 5 GRANDE DISSENSÃO ENTRE OS JUDEUS DA GALILÉIA E OS SAMARITANOS, QUE SUBORNAM CUMANO, GOVERNADOR DAJUDÉIA. QUADRATO, GOVERNADOR DA SÍRIA, MANDA-O A ROMA COM ANANIAS, SUMO SACERDOTE, E VÁRIOS OUTROS PARA SE JUSTIFICAR PERANTE O IMPERADOR. O IMPERADOR CONDENA OS SAMARITANOS, ENVIA CUMANO AO EXÍLIO E NOMEIA FÉLIX GOVERNADOR DAJUDÉIA. ENTREGA A AGRIPA A TETRARQUIA QUE FORA DE FILIPE, BEM COMO BATANEA, TRACONITES E ABILA, E TIRA-LHE A CÁLCIDA. CASAMENTO DAS IRMÃS DE AGRIPA. MORTE DO IMPERADOR CLÁUDIO. NERO SUCEDE-O NO IMPÉRIO. ELE ENTREGA A PEQUENA ARMÊNIA A ARISTÓBULO, FILHO DE HERODES, REI DA CÁLCIDA, E A AGRIPA CONCEDE UMA PARTE DA GALILÉIA, TIBERÍADES, TARIQUÉIA E JULÍADA. 843. Aconteceu nesse mesmo tempo uma grande divergência entre os samaritanos e os judeus, pelo fato que vou narrar. Os judeus que, nos dias de festa solene, vinham da Galiléia a Jerusalém costumavam passar pelas terras de Samaria. E alguns deles tiveram uma desavença com os habitantes de Nays, aldeia situada no Grande Campo e que estava sujeita aos samaritanos, e vários judeus foram mortos. Os principais da Galiléia foram queixar-se a Cumano, pedindo-lhe justiça. Porém, vendo que ele não lhes dava atenção, porque os samaritanos o haviam subornado com dinheiro, exortaram os outros judeus a pegar em armas para reconquistar a liberdade, dizendo que a servidão já era bastante rude por si mesma, para que ainda se lhe acrescentassem injustiças e ultrajes. Os magistrados esforçaram-se para acalmá-los, prometendo-lhes obrigar Cumano a castigar os autores dos assassinatos, mas eles não os quiseram escutar. Tomaram então as armas e chamaram em seu auxílio Eleazar, filho de Dineu, que havia muitos anos se entregara ao roubo e escondia-se nas montanhas, devastando e incendiando as aldeias dependentes de Samaria. Cumano, apenas o soube, marchou contra eles com a cavalaria de Sebaste, quatro coortes e numerosos samaritanos, matando vários deles e fazendo muitos prisioneiros. Os cidadãos mais influentes de Jerusalém, vendo as coisas nesse estado e imaginando que esse grande mal poderia ter conseqüências ainda mais vergonhosas, revestiram-se de um saco, puseram cinza na cabeça e tudo fizeram para acalmar o espírito de muitos dos seus, a quem, com pesar, viam abandonar-se ao desespero. Fizeram-lhes ver que, se não deixassem as armas e não se retirassem para as suas casas, lá permanecendo tranqüilos e sossegados, seriam a causa da ruína completa de sua nação e veriam o Templo incendiado e as suas mulheres e filhos transformados em escravos. Essas razões os persuadiram. Os que dissemos que viviam do roubo, porém, retiraram-se aos lugares fortificados, onde estavam antes. E desde então a Judéia ficou cheia de ladrões. Os mais ilustres dos samaritanos foram em seguida à cidade de Tiro procurar Numídio Quadrato, governador da Síria, para lhe pedir que fizesse justiça contra os judeus que devastavam as suas terras e incendiavam as suas aldeias. Disseram-lhe que, por maior que fosse o prejuízo que estivessem tomando, não lhes era isso tão penoso quanto o descaso que o povo fazia do poder dos romanos. E tocava somente a ele julgar as desordens que se sucediam nas províncias a ele sujeitas. Eles não podiam tolerar que a nação judaica agisse como se o império não tivesse governadores que pudessem manter a autoridade. Os judeus disseram, em resposta, que os samaritanos é que haviam sido a causa daquela sedição e do morticínio que se sucedera em seguida e que Cumano era mais culpado que qualquer outro, porque, em vez de castiqá-los, se deixara subornar pelos presentes que deles recebera. Quadrato, depois de escutá-los, deixou para decidir a questão quando estivesse na Judéia e conhecesse exatamente toda a verdade. Algum tempo depois, foi ele à Samaria, onde se pleiteou a causa em sua presença. Ele ficou convencido de que os samaritanos haviam sido os autores da perturbação. Soube também que alguns judeus haviam tentado suscitar outras sedições. Após mandar crucificar aqueles que Cumano conservava na prisão, foi para a aldeia de Lida, que é tão grande quanto uma cidade, onde, estando em seu tribunal, ouviu pela segunda vez os samaritanos. Tendo sabido de um deles que Dorto, homem que ocupava uma alta posição entre os judeus, e quatro outros haviam incitado os de sua casa à revolta, mandou matar todos os cinco e enviou Ananias, sumo sacerdote, e o capitão Anano como prisioneiros a Roma, para se justificarem diante do imperador. Mandou também para lá os principais samaritanos e judeus, o próprio Cumano e um oficial de campo, de nome Celer. Porém, temendo outra amotinação entre os judeus, foi para Jerusalém. Lá encontrou tudo em paz, estando todos ocupados em oferecer sacrifícios a Deus, nos dias de festa, segundo o costume de nossos antepassados. Assim, ele julgou que nada havia a temer, e voltou a Antioquia. Cumano e os samaritanos chegaram a Roma, e foi marcado o dia para que defendessem a sua causa. Eles conquistaram com dinheiro favor dos libertos e dos amigos do imperador, e teriam por esse meio feito condenar os judeus se Agripa, que então estava em Roma, não tivesse conseguido que a imperatriz Agripina rogasse ao imperador seu marido que se inteirasse do assunto e mandasse castigar todos os culpados daquela sedição. Assim, o imperador Cláudio, após ouvir ambas as partes, achou que os samaritanos haviam sido a causa principal de toda aquela perturbação e mandou matar a todos os que tinham vindo se justificar. Enviou Cumano ao exílio e Celer, a Jerusalém, a fim de que fosse arrastado pelas ruas, na presença de todo o povo, até expirar. Por fim, nomeou Cláudio Félix, irmão de Palas, governador da Judéia. 844. O imperador, no décimo segundo ano de seu reinado, deu a Agripa a tetrarquia que pertencera a Filipe, bem como Batanea, Traconites e Abila, que integrara a tetrarquia de Lísias, mas tirou-lhe a Cálcida, que governara por três ou quatro anos. Agripa, depois desses favores recebidos de Cláudio, casou sua irmã Drusila com Aziza, rei de Emesa, que se fizera judeu, pois antes ela fora prometida a Epifânio, filho do rei Antíoco, ante a palavra de que ele abraçaria a nossa religião. Como ele não a cumpriu, deu-se então motivo para o rompimento do contrato. Quanto a Mariana, uma outra de suas irmãs desposou Arquelau, filho de Chelcias, ao qual havia sido prometida pelo rei Agripa, o Grande, seu pai, e desse casamento nasceu uma filha, de nome Berenice. Pouco tempo depois, Drusila abandonou o rei Aziza, seu marido, o que se deu por este motivo: Sendo ela a mais bela mulher de seu tempo, Félix, governador da Judéia, de quem acabamos de falar, apenas a viu e concebeu por ela uma violenta paixão, chegando a propor-lhe, por meio de um judeu de nome Simão, cíprio de nascimento, muito seu amigo e perito em magia, que abandonasse o marido para desposá-lo, prometendo torná-la a mulher mais feliz do mundo. Ela, agindo com imprudência, e também para ser livrar do tormento que Berenice, sua irmã, lhe causava por invejar a sua beleza, consentiu na proposta e não teve receio de abandonar, por esse motivo, a sua religião. De Félix, ela teve um filho chamado Agripa, que morreu ainda jovem, com sua mulher, na erupção do Vesúvio, sob o reinado de Tito, como diremos a seu tempo. Berenice, a mais velha das três irmãs de Agripa, ficou algum tempo viúva após a morte de Herodes, que era ao mesmo tempo seu marido e seu tio. Mas, ante a notícia que se divulgou de que ela mantinha relações incestuosas com o irmão, propôs a Polemon, rei da Cilícia, que abraçasse a religião dos judeus e a despo-sasse, acreditando que assim provaria que era boato o que se andava dizendo. O soberano consentiu, porque ela era muito rica, mas não viveram muito tempo juntos. Ela abandonou-o por motivo de impudicícia, ao que se diz, e ele, vendo-se rejeitado, deixou também a nossa religião. Mariana não foi mais virtuosa que suas irmãs. Abandonou Arquelau, seu marido, para desposar Demétrio, alabarche, o mais ilustre e rico dentre os judeus de Alexandria. Dela ele teve um filho de nome Agripino. De todas essas pessoas, falaremos mais detalhadamente. 845. O imperador Cláudio morreu, após reinar treze anos, oito meses e vinte dias. Alguns acreditavam que Agripina, sua mulher, o mandou envenenar. Ela era filha de Germânico, irmão de Cláudio. Em primeiras núpcias, havia desposado Domício Enobarbo, um dos mais ilustres romanos. Havia já muito tempo que ela estava viúva, quando Cláudio a desposou e adotou o filho que ela tivera de Domício, chamado também Domício, como seu pai, a quem ele deu o nome de Nero. Antes, Cláudio havia desposado Messalina, que ele mandou matar por ciúme, e dela teve Britânico e Otávia.* Quanto à sua filha Antônia,** que era a mais velha de todos os seus filhos e que tivera de Petina, uma de suas outras mulheres, ele a fez casar-se com Nero. ___________________________ * Esse nome não consta do texto grego. Trata-se de uma filha chamada Otávia, como Tácito registra e a continuação há de mostrar, e não um filho de nome Otávio. ** Esse nome também não consta do texto grego, que chama esta outra filha de Otávia, quando na verdade ela se chamava Antônia, como Tácito o refere. 846. Agripina, receando que o império, que ela desejava assegurar seu filho para Nero, fosse ter às mãos de Britânico, antes chamado Germânico, que já era um estadista, logo que o imperador seu marido morreu, enviou Nero ao acampamento dos guardas pretorianos. Ele foi levado por Burrho, seu comandante, por outros importantes oficiais e pelos libertos de Cláudio, que desfrutavam grande prestígio, e lá ele foi declarado imperador. Um dos primeiros atos de Nero após ser elevado ao trono foi mandar envenenar Britânico secretamente. Alguns anos depois, ele mandou matar a própria mãe, recompensando-a dessa forma por ela lhe ter dado a vida e por tê-lo feito reinar sobre a maior parte do mundo. Também mandou matar Otávia, sua mulher, filha do imperador Cláudio, e várias pessoas ilustres, acusando-as de conspiração contra ele. Não entrarei em detalhes porque não faltam historiadores que escrevam sobre os feitos desse príncipe, sendo que alguns falaram em seu favor pelo fato de ele lhes haver concedido benefícios e outros, sem temer, como os primeiros, ferir a verdade, denegriram a sua memória de maneira ultrajosa devido ao ódio que tinham por ele. Mas não me admiro, pois aqueles que escreveram a história dos imperadores precedentes agiram do mesmo modo, embora, vindo muito tempo depois deles, não pudessem ter motivos para amá-los ou para odiá-los. Quanto a mim, que estou resolvido a jamais me afastar da verdade, contentar-me-ei em tocar somente de passagem naquilo que interessa ao meu assunto. Só tratarei em particular o que diz respeito à nossa nação, sem dissimular as faltas que cometemos ou os males que nos aconteceram. Precisamos agora retomar a continuação de nossa história. 847. Aziza, rei de Emesa, morreu no primeiro ano do reinado de Nero. Seu irmão sucedeu-o. Nero entregou a Pequena Armênia a Aristóbulo, filho de Herodes, rei da Cálcida. A Agripa, concedeu uma parte da Galiléia. Foi seu desejo também que Tiberíades e Tariquéia lhe fossem sujeitas, e igualmente Julíada, que está além do Jordão, e seu território, que consta de quatorze aldeias. CAPÍTULO 6 FÉLIX, GOVERNADOR DAJUDÉIA, MANDA ASSASSINAR ELEAZAR, SUMO SACERDOTE, E OS SEUS ASSASSINOS COMETEM OUTROS CRIMES, ATÉ MESMO NO TEMPLO. LADRÕES E FALSOS PROFETAS CASTIGADOS. GRANDE DIVERGÊNCIA ENTRE OS JUDEUS E OS OUTROS HABITANTES DE CESARÉIA. O REI AGRIPA CONSTITUI ISMAEL SUMO SACERDOTE. VIOLÊNCIAS DOS SUMOS SACERDOTES. 848. Os negócios na Judéia iam de mal a pior. Estava cheia de ladrões e de magos que enganavam o povo, e não se passava um dia sem que Félix mandasse castigar alguém. Um dos mais destacados entre os ladrões era Eleazar, filho de Dineu, que era seguido por um numeroso bando de homens semelhantes a ele. Félix intimou-o a vir procurá-lo, com promessa de não lhe fazer mal algum, mas quando ele apareceu, prendeu-o e o enviou a Roma. O governador odiava Jônatas, sumo sacerdote, porque este o repreendia pelo seu mau proceder. Então, para que nenhuma censura recaísse sobre ele, porque fora a seu pedido que o imperador lhe concedera aquele governo, resolveu desfazer-se de Jônatas, pois nada é mais insuportável aos maus que as advertências. Para realizar o seu intento, prometeu uma grande quantia a um certo Dora, de Jerusalém, a quem Jônatas considerava um amigo íntimo. Esse homem perverso, para cumprir o acordo de matar Jônatas, assalariou alguns ladrões. Eles vieram à cidade sob pretexto de devoção, mas com punhais escondidos sob as vestes, e, misturados aos servidores de Jônatas, mataram-no. Esses assassinos não foram castigados por esse crime e continuaram a aparecer do mesmo modo nas festas que aconteceram depois. Misturando-se à multidão, matavam também aqueles que odiavam ou os que haviam determinado matar a troco de dinheiro. Não se contentavam em cometer os assassinatos na cidade, mas protagonizando uma das mais detestáveis impiedades e um dos mais horríveis sacrilégios, matavam até no Templo. Quem, portanto, há de se admirar de que Deus tenha olhado para Jerusalém com vistas de cólera? Sua Casa sagrada perdera a pureza que a tornava venerável, e Ele então enviou os romanos para castigar com ferro e fogo a miserável cidade e levar escravizados os seus habitantes, com as suas mulheres e filhos, de modo que esse terrível castigo nos faça refletir. 849. Enquanto os ladrões enchiam Jerusalém de crimes, os magos, por seu lado, enganavam o povo e o levavam ao deserto, prometendo lhe mostrar milagres e prodígios. Mas Félix castigou-os imediatamente, por sua loucura; mandou prender e matar a vários. Por esse mesmo tempo veio um homem do Egito a Jerusalém, que se vangloriava de ser profeta. Persuadiu a um grande número de pessoas que o seguisse ao monte das Oliveiras, que estava muito perto da cidade, apenas distante uns cinco estádios e garantiu-lhes que, depois de ter ele proferido algumas palavras, veriam cair os muros de Jerusalém, sem que mais fossem necessárias as portas para lá se entrar. Logo que Félix soube disso, foi atacá-los com um grande número soldados; uns quatrocentos foram mortos e duzentos feitos prisioneiros, mas o impostor egípcio salvou-se. O castigo infligido aos ladrões não assustou os que ficaram; continuaram a excitar o povo a se revoltar contra os romanos, dizendo que não era mais possível tolerar um jugo tão insuportável, e pilhavam e incendiavam as aldeias dos que não queriam segui-los. 850. Aconteceu, nesse mesmo tempo, uma grande perturbação em Cesaréia, entre os judeus e seus habitantes, com relação à precedência. Os judeus pretendiam-na, porque Herodes, um de seus reis, tinha construído a cidade: os sírios afirmavam que deviam ser preferidos, porque ela subsistia desde muito tempo sob o nome de Torre de Estratão, quando ali não havia um só judeu. Os governadores das províncias tomaram conhecimento dessa divergência e mandaram vergastar com várias os que nela haviam tomado parte, de ambos os lados. Mas os judeus, que confiavam nas suas riquezas, recomeçaram a desprezar e a maltratar com palavras, os sírios. Entre estes, havia vários de Cesaréia e de Sebaste, que serviam nas tropas romanas, as quais lhes respondiam insolentemente. Das palavras, passaram às pedradas e vários foram mesmo mortos, muitos feridos, de parte a parte: os judeus levaram a melhor. Félix, vendo que essa divergência já havia tomado um aspecto de guerra, rogou aos judeus que se moderassem; mas, como não lhe obedeciam, ele mandou soldados contra eles, os quais mataram a muitos e prenderam também a vários, saquearam, sem que eles pudessem impedir, suas terras e suas casas, onde encontraram grandes riquezas. Os mais ilustres e os mais sensatos dos judeus, vendo tão grande desordem, temendo-lhe as conseqüências, rogaram a Félix que ordenasse aos soldados que se retirassem, para que os que se tinham deixado levar inconsideradamente pela paixão, refletissem e não continuassem a lutar; e ele concordou. 851. Nesse mesmo tempo o rei Agripa deu o sumo sacerdócio a Ismael, filho de Fabeu, e os supremos-sacerdotes iniciaram então uma luta com os sacerdotes ordinários e os chefes de Jerusalém. Todos se faziam acompanhar por soldados armados, que eram escolhidos entre os mais revoltosos e os mais obstinados. Começavam por se injuriarem mutuamente, depois passavam às pedradas, sem que nem se decide separá-los; parecia que não havia magistrados da cidade que tivessem o poder de impedi-los fazer, com plena liberdade, tudo o que lhes agradava. A imprudência e a ousadia dos sumos sacerdotes foi tão longe, que eles mandavam seus homens às granjas, retirar as décimas que pertenciam aos sacerdotes, alguns dos quais, sendo mui pobres, morriam de fome; a injustiça era assim espezinhada pela violência desses facciosos. CAPÍTULO 7 FESTO SUCEDE A FÉLIX NO GOVERNO DA JUDÉIA. OS HABITANTES DE CESARÉIA OBTÊM DO IMPERADOR NERO A REVOGAÇÃO DO DIREITO DE BURGUESIA QUE OS JUDEUS TINHAM NAQUELA CIDADE. O REI AGRIPA MANDA CONSTRUIR UM EDIFÍCIO DE ONDE SE VIA O QUE SE PASSAVA NO TEMPLO. OS DE JERUSALÉM MANDAM FAZER UM MURO MUITO GRANDE PARA IMPEDI-LO E OBTÊM DO IMPERADOR QUE O MESMO SEJA MANTIDO. 852. Pórcio Festo fora mandado pelo imperador Nero para substituir Félix, no governo da Judéia; os judeus de Cesaréia mandaram embaixadores a Roma, para acusar Félix e ele teria sem dúvida sido castigado pelos maus tratos que havia infligido aos judeus, se Nero não lhe tivesse perdoado a pedido de Pallas, seu irmão, que então gozava de grande prestígio junto dele. Dois dos principais sírios de Cesaréia conquistaram, por meio de uma grande soma de dinheiro, Berilo, que tendo sido preceptor de Nero, era então seu secretário para a correspondência grega e, por seu meio, obtiveram uma carta, pela qual era revogado o direito de burguesia de que os judeus gozavam igualmente com os sírios em Cesaréia. Pode-se dizer que essa carta foi a causa de nossos males e da nossa infelicidade, pois os judeus de Cesaréia, ficaram tão irritados que se exasperaram ainda mais e essa perturbação não cessou, até que se transformou em guerra. 853. Quando Festo chegou à Judéia, encontrou-a num estado deplorável, pelos males que aqueles ladrões causavam. Pilhavam e incendiavam tudo; dava-se o nome de Sicários aos mais cruéis dentre eles, cujo número era bem grande porque eles usavam espadas curtas como as dos persas, e recurvas, como punhais que os romanos chamam de siques. Espalhavam crimes por todos os lugares, misturando-se, como dissemos, nos dias de festa, com o povo que vinha de todas as partes a Jerusalém; por devoção, matavam impunemente a quem lhes parecia. Atacavam mesmo as aldeias daqueles que odiavam, saqueavam-nas e as incendiavam. 854. Um impostor, que tinha o ofício de mago, levou grande quantidade de homens com ele, para o deserto, prometendo livrá-los de toda a sorte de males. Festo mandou contra eles a cavalaria e a infantaria, que os dizimaram. 855. O rei Agripa mandou então construir um grande edifício perto do pórtico do palácio real de Jerusalém, que era obra dos príncipes asmoneus; como aquele lugar era muito elevado, o panorama era belíssimo, pois de lá se descortinava toda a cidade e Agripa podia haver, do seu quarto, tudo o que se fazia no interior do Templo. Os chefes de Jerusalém ficaram muito descontentes com isso, porque nossas leis não permitem ver o que se passa no Templo e, principalmente, no momento dos sacrifícios. Para impedi-lo, eles mandaram construir acima das muralhas que estavam na parte interior do mesmo, do lado do ocidente, um muro tão alto que nada mais se podia ver, do quarto do rei, não somente o que estava em frente, mas também nas galerias, de fora do Templo, do lado do ocidente, onde os romanos montavam guarda nos dias de festa, para a conservação do Templo. Agripa ficou muito ofendido, e Festo, ainda mais. Ele ordenou-lhes que, derrubassem o muro, mas os judeus rogaram-lhe que permitisse recorrer ao imperador, porque a morte lhes seria mais suave do que ver destruir-se uma parte do Templo. Ele lhes permitiu; foram então mandados a Roma, dez dos mais ilustres habitantes, com Israel, sumo sacerdote, e Cheléas, guarda do sagrado tesouro. Nero escutou-os e a imperatriz Popéia, sua mulher, que era piedosa, empenhou-se em seu favor; perante o marido, não somente lhes perdoou o que haviam feito, mas concedeu-lhes que o muro, que tinham feito construir, fosse conservado. A princesa mandou regressar os dez embaixadores e reteve como reféns somente Cheléas e Ismael. O rei Agripa deu em seguida o sumo sacerdócio a José, cognominado Caby, filho de Simão, sumo sacerdote. CAPÍTULO 8 ALBINO SUCEDE A FESTO NO GOVERNO DAJUDÉIA E O REIAGRIPA DÁ E TIRA DIVERSAS VEZES O SUMO SACERDÓCIO. ANANO, SUMO SACERDOTE, MANDA MATAR TIAGO. AGRIPA ENGRANDECE E EMBELEZA A CIDADE DE CESARÉIA DE FILIPE E A CHAMA NERONIANA. GRAÇAS QUE ELE CONCEDE AOS LEVITAS. RELAÇÃO DE TODOS OS SUMOS SACERDOTES DESDE AARÃO. 856. Morrendo Festo, Nero deu o governo da Judéia a Albino e o rei Agripa tirou o sumo sacerdócio de José para dá-lo a Anano. Anano, o pai, foi considerado como um dos homens mais felizes do mundo, pios gozou quanto quis dessa grande dignidade e teve cinco filhos que a possuíram também depois dele; o que jamais aconteceu a qualquer outro. Anano, um dos de que nós falamos agora, era homem ousado e empreendedor, da seita dos saduceus, que, como dissemos, são os mais severos de todos judeus e os mais rigorosos nos julgamentos. Ele aproveitou o tempo da morte de Festo, e Albino ainda não tinha chegado, para reunir um conselho, diante do qual fez comparecer Tiago, irmão de Jesus, chamado Cristo, e alguns outros; acusou-os de terem desobedecido às leis e os condenou ao apedrejamento. Esse ato desagradou muito a todos os habitantes de Jerusalém, que eram piedosos e tinham verdadeiro amor pela observância de nossas leis. Mandaram secretamente pedir ao rei Agripa que ordenasse a Anano, nada mais fazer de semelhante, pois o que ele fizera, não se podia desculpar. Alguns deles foram à presença de Albino, que então tinha partido de Alexandria, para informá-lo do que se havia passado e dizer-lhe que Anano não podia nem devia ter reunido aquele conselho sem sua licença. Ele aceitou estas desculpas e escreveu a Anano, encoleriza-do, ameaçando mandar castigá-lo. Agripa, vendo-o tão irritado, tirou-lhe o sumo sacerdócio, que exercera somente durante quatro meses, e a deu a Jesus, filho de Daneu. 857. Quando Albino chegou a Jerusalém, empregou todo o seu cuidado em restituir a calma à província pela morte de uma grande parte dos ladrões. Nesse mesmo tempo, Ananias, que era um sacerdote de mérito, conquistava o coração de todos. Não havia quem não o honrasse pela sua liberalidade; não se passava um dia sem que ele não desse presentes a Albino e ao sumo sacerdote. Mas ele tinha servos tão maus que iam pelas granjas com outros que não eram melhores do que eles, tomar à força as décimas, que pertenciam aos sacerdotes e batiam nos que se recusavam dá-las. Outros faziam também a mesma coisa; assim, os sacerdotes, que não tinham outro meio de vida, achavam-se reduzidos aos extremos, sem que ninguém se resolvesse dar um remédio a isso. Durante uma festa, esses assassinos de que acabamos de falar, entraram à noite na cidade e prenderam o secretário de um oficial do exército, que era filho do sacerdote Ananias, amarraram-no, levaram-no e mandaram dizer ao pai dele que o soltariam, desde que obtivesse de Albino a liberdade de dez dos seus companheiros, que estavam presos. Esse plano deu resultado. Albino, vendo a necessidade em que Ananias se encontrava de lhe fazer esse pedido, concedeu-lho; isso foi causa de muitos males, porque os ladrões sempre encontravam novos meios de apanhar parentes de Ananias e só os restituíam com semelhantes trocas. Assim, seu número cresceu ainda mais, sua ousadia aumentou também na mesma proporção e mil males eles causavam a toda a província. 858. O rei Agripa aumentou a cidade de Cesaréia de Felipe e a chamou de Neroniana, em homenagem a Nero. Mandou também construir em Berita um magnífico teatro, onde dava todos os anos espetáculos ao povo; mandou distribuir trigo e óleo aos habitantes, e, para embelezar a cidade, mandou levar a maior parte de tudo o que havia de mais raro no resto de seu reino, para lá; bem como uma grande quantidade de excelentes estátuas dos maiores personagens da antigüidade. Tal magnificência tornou-o odioso aos seus súditos, porque eles não podiam tolerar que ele despojasse suas cidades dos seus mais belos ornamentos, para embelezar uma cidade estrangeira. 859. Ele tirou ainda o sumo sacerdócio de Jesus, filho de Daneu, para dá-lo Jesus, filho de Gamaliel. Mas como ele não a deixou de boa vontade, produziu-se entre eles uma grande divergência. Eles faziam-se acompanhar de homens armados, chegavam freqüentemente às injúrias e das injúrias, aos fatos. 860. Ananias continuava a ser o mais ilustre dos sacerdotes, quer por suas grandes riquezas, quer pela sua liberalidade, que lhe granjeava, cada vez mais, novos amigos. Costobaro e Saul tinham conseguido um grande número de soldados e, como eram de sangue real e parentes do rei, tornaram-se ilustres; mas eram violentos e sempre prontos a oprimir os mais fracos. Foi então que começou a ruína da nossa nação, pois as coisas iam de mal a pior. 861. Quando Albino soube que Géssio Floro vinha para substituí-lo, pareceu querer obsequiar os habitantes de Jerusalém. Assim, mandou trazer todos os prisioneiros, condenou à morte todos os que realmente eram culpados de crime capital, mandou para a prisão os que lá tinham sido postos por faltas leves e depois lhes deu a liberdade, a troco de dinheiro. Assim esvaziou as prisões, e ao mesmo tempo todo o país ficou cheio de ladrões. 862. Os da tribo de Levi, cuja função era cantar hinos em louvor a Deus, obtiveram do rei Agripa, que determinasse em seu conselho, que eles poderiam usar a estola de linho, o que só era permitido aos sacerdotes. Disseram-lhe para isso que, tendo jamais gozado daquela graça, ser-lhe-ia glorioso conceder-lha. Mas ele permitiu ao mesmo tempo à outra parte da tribo, que era empregada no serviço do Templo, que também entoasse, como os demais, hinos e cânticos. Todas essas coisas eram contrárias às nossas leis e jamais foram violadas sem que Deus lhes desse um severo castigo. 863. As obras do Templo, então, estavam terminadas; assim, dezoito mil operários que ali eram empregados e pagos pontualmente, ficaram sem trabalho; os habitantes de Jerusalém, quiseram dar-lhes uma ocupação e um meio de vida; como eles nada desejavam conservar de todo o sagrado tesouro do Templo, para que os romanos dele não se apoderassem, propuseram ao rei Agripa reconstruir a galeria que está do lado do ocidente. Essa galeria estava fora do Templo, num profundo vale, tão profundo que seus muros tinham quatrocentas côvados de altura e eram construídos de pedra quadrada, muito branca, de vinte côvados de comprimento e de seis de grossura sendo ainda obra de Salomão, que, por primeiro, construíra o Templo. Mas Agripa, ao qual o imperador Cláudio tinha encarregado de tudo o que se referia às reparações desse edifício sagrado, considerando a magnitude da empresa, tanto pelo tempo como pela quantidade de dinheiro que seria necessário empregar-se para isso e que, as maiores obras se destróem facilmente, não quis dar-lhes consentimento, mas permitiu-lhes, se o quisessem, mandar pavimentar sua cidade, com pedras brancas. Tirou em seguida o sumo sacerdócio, a Jesus, filho da Gamaliel e o deu a Matias, filho de TeóFílon, sob cujo sacerdócio, a guerra dos judeus começou. 864. A este propósito, julgo conveniente aqui a série dos sumos sacerdotes, elevados a esta honra até o fim desta a guerra. O primeiro foi Aarão, irmão de Moisés. Seus filhos sucederam-no e essa grande dignidade sempre permaneceu na sua família, sem que nenhum outro que não seus descendentes, nem mesmo reis, tenham sido escolhidos para exercê-lo. Houve oitenta e três, desde Aarão até Fanazo, que os sediciosos elevaram a esse cargo e treze dentre eles o tiveram desde o tempo em que Moisés elevou um Tabernáculo a Deus no deserto até que o povo entrou na Judéia, onde Salomão construiu o Templo; no começo só se provia a essa dignidade depois da morte daquele que a exercia; mas, em seguida, foram substituídos, mesmo antes de morrer. Estes treze, eram todos descendentes dos filhos de Aarão e sucederam-se uns aos outros. O governo de nossa nação era então, aristocrático. A autoridade depois foi posta nas mãos de um só. Por fim, passou para a pessoa dos reis; havia seiscentos e doze anos que nossa nação tinha deixado o Egito, sob o comando de Moisés, quando Salomão construiu o Templo. Dezoito outros grandes sacerdotes sucederam a estes treze, durante quatrocentos e sessenta e seis anos, seis meses e dez dias, que se passaram sob o reinado dos reis, desde Salomão, até que Nabucodonosor, rei de Babilônia, depois de ter tomado Jerusalém e incendiado o Templo, levou o povo escravo para Babilônia e com eles, Josedeque, sumo sacerdote. Depois do cativeiro de setenta e dois anos, Ciro, rei da Pérsia, permitiu aos judeus regressar ao seu país, reconstruir o Templo, sendo então Jesus, filho de Josedeque, sumo sacerdote. Quinze dos seus descendentes, todos sumos sacerdotes, como ele, durante quatrocentos e quatorze anos governaram a República, até que o rei Antioco Eupator e Lísias, general de seu exército, tendo feito morrer Onias, em Beroé, o qual era sumo sacerdote, deram esse cargo a Jacim, da família de Aarão, não, porém, da mesma família, que o possuíra antes e dele privaram o filho de Onias, que tinha o seu mesmo nome. Esse jovem Onias foi para o Egito onde, tendo caído nas boas graças do rei Ptolomeu e da rainha Cleópatra, sua mulher, permitiram-lhe construir em Heliópolis, um Templo semelhante ao de Jerusalém, do qual ele foi feito sumo sacerdote, como já dissemos. Jacim morreu no fim de três anos e o sumo sacerdócio ficou vago durante sete anos. Quando nossa nação revoltou-se contra os macedônios e escolheu para príncipe os da família dos asmoneus,* Jônatas, um deles, foi escolhido com unânime consentimento, para exercer esse grande cargo. Exerceu-o por sete anos; Trifom fê-lo morrer à traição e Simão, seu irmão, sucedeu-o. Simão foi assassinado por seu genro num banquete e Hircano, seu filho, foi elevado àquela honra. Dela ficou de posse, durante trinta e um anos e morreu em idade muito avançada. Judas, seu filho, cognominado Aristóbulo, sucedeu-o e foi o primeiro que teve o título de rei. Só reinou um ano e Alexandre, seu irmão, sucedeu-o no reino e no sumo sacerdócio. Reinou vinte e sete anos e deixou ao morrer, Alexandra, sua mulher, como regente, com o poder de estabelecer no cargo de sumo sacerdote, aquele, dos filhos, que bem quisesse. Ela deu-o a Hircano, que o exerceu durante os nove anos em que ela reinou, mas depois que ela morreu, Aristóbulo, seu irmão, que era mais moço do que ele, fez-lhe guerra, venceu-o, obrigou-o a viver vida privada e usurpou-lhe ao mesmo tempo, o reino e o sumo sacerdócio. Gozou durante três anos de um e de outro, mas Pompeu, depois de ter tomado Jerusalém, levou-o prisioneiro a Roma, com seus filhos, e restabeleceu Hircano no cargo de sumo sacerdote e de príncipe do judeus, sem, todavia, dar-lhe o título de rei. Dele gozou durante vinte e três anos, além dos nove, de que falamos, mas, no fim desse tempo, Pacoro e Barzafarnes, generais do exército dos partos, vieram de além do Eufrates, fizeram-lhe guerra, levaram-no prisioneiro e constituíram rei dos judeus a Antígono, filho de Aristóbulo. Três anos e três meses depois, esse príncipe foi aprisionado em Jerusalém, por Herodes e por Sósio que o enviaram a Antônio, o qual lhe mandou cortar a cabeça em Antioquia. ____________________________ * Isto não está no grego, pois ali deve estar Judas, e não Jônatas, como se vê no artigo 491. Mas o que se diz em seguida de Jônatas é verdade, como se vê nos artigos 525 e529. Herodes, feito rei pelos romanos, não escolheu mais, para sumos sacerdotes os da família dos asmoneus, mas honrava indiferentemente com esse cargo, os mesmos sacerdotes e até outros menos ilustres, exceto quando o deu a Aristóbulo, neto de Hircano, aprisionado pelos partos e irmão de Mariana, sua mulher, por causa do afeto que o povo tinha por ele e do respeito que se conservava pela memória de Hircano. Mas ele via a simpatia que todos tinham por esse jovem príncipe; começou a sentir medo e, então, fê-lo afogar em Jerico, da maneira como descrevemos, e não quis mais elevar a essa honra a nenhum da família dos asmoneus. Arqueiau, filho de Herodes, e os romanos, que em seguida se tornaram senhores da Judéia, fizeram do mesmo modo. Assim, durante os cento e sete anos que se passaram desde o começo do reino de Herodes até o tempo em que Tito incendiou Jerusalém e o Templo, houve vinte e oito sumos sacerdotes, alguns dos quais exerceram o cargo sob o reinado de Herodes. Depois da morte deste e de Arqueiau, a maneira de governar entre os de sua nação tornou-se aristocracia e eram os sumos sacerdotes que tinham a principal autoridade. CAPÍTULO 9 FLORO SUCEDE A ALBINO NO GOVERNO DA JUDÉIA; SUA AVAREZA E CRUELDADE SÃO CAUSA DA GUERRA DOS JUDEUS CONTRA OS ROMANOS. FIM DESTA HISTÓRIA. 865. Géssio Floro, que era de Clazomene, foi, para infelicidade de nossa nação, escolhido por Nero para suceder a Albino, no governo da Judéia e Cleópatra, sua mulher, que ele levou consigo e que não lhe ficava atrás em maldade, tinha-o feito obter esse favor por meio da imperatriz Popéa, que tinha muito afeto por ela. Ele abusou tão insolentemente do poder, que muitos vieram a sentir a ausência de Albino; aquele se escondia para fazer o mal; Floro fazia-o por vaidade. Parecia que só fora enviado para fazer triunfar a injustiça e cobrir de ultrajes nossa nação. Seus roubos e suas crueldades não tinham limites: seu coração era insensível à piedade; os grandes lucros não o faziam desprezar os pequenos; de tudo se apoderava; partilhava mesmo dos roubos e vendia aos ladrões a impunidade de seus crimes, a esse preço. Assim, os males que os judeus suportavam iam além de tudo o que se pode imaginar. Eles eram obrigados a abandonar seu país e suas santas cerimônias e fugir para terras estrangeiras; não havia países, por mais bárbaros que fossem, onde eles não pudessem viver mais tranqüilos. Que mais direi? Basta afirmar que Floro nos obrigou a tomar as armas contra os romanos, para perecer-mos todos juntamente e de uma vez, que não uns após outros, separadamente, sobre um governo tão intolerável? Assim, dois anos depois que se tirânico governador havia chegado à Judéia, no décimo segundo ano do reinado de Nero, começou essa funesta guerra e os que tiveram a curiosidade de saber tudo o que então se passou em particular, poderão ler a história que nós dela escrevemos. 866. Terminarei aqui, portanto, a das antigüidades de nossa nação, que trata do que se passou, desde a criação do mundo até este décimo segundo ano do reinado de Nero. Podemos ver aí tudo o que aconteceu aos judeus, durante tantos séculos, tanto no Egito, como na Palestina e na Síria; o que eles sofreram sob os assírios e os babilônios; de que modo foram tratados pelos persas e pelos macedônios e, por fim, pelos romanos. Também relatei a série de todos os sumos sacerdotes, durante dois mil anos, todos os feitos de nossos reis e daqueles que quando não havia mais reis, tiveram a suprema autoridade, segundo o que encontrei escrito nos livros santos, como eu havia prometido no começo desta obra. Ouso afirmar que nenhum outro, quer judeu, quer estrangeiro, teria podido dar esta história aos gregos, escrita com tanta exatidão. Os da minha nação estão de acordo em que eu sou bem instruído no que se refere aos nossos costumes e às nossas tradições; não tenho motivo de lastimar o tempo que empreguei em aprender a língua grega, embora não a pronuncie com perfeição, o que nos é muito difícil, porque não nos aplicamos bastante a isso; entre nós, não apreciamos muito àqueles que aprendem várias línguas. Consideramos esse estudo como profanos, pois convém tanto aos escravos como aos livres, e somente consideramos sábios os que adquirem um grande conhecimento das nossas leis e das escrituras sagradas, que eles são capazes de explicar, o que é coisa tão rara, que somente uns dois ou três, conseguiram essa glória. 867. Quero esperar que não se achará mau que eu escreva brevemente alguma coisa da minha descendência e das principais ações de minha vida, enquanto há pessoas vivas que podem confirmar ou contestar a verdade; terminarei assim essas antigüidades, que contém vinte livros e sessenta mil linhas. Se Deus me conservar a vida, direi abreviada as causas da guerra e tudo o que aconteceu até este dia, que está justamente no décimo terceiro ano, do reinado do imperador Domiciano e no qüinquagésimo sexto de minha idade. Prometi também escrever quatro livros das opiniões dos judeus e dos sentimentos que eles têm de Deus, de sua essência, de suas leis e das coisas que nos permitem como ou nos proíbem.

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